Desafiando o inimigo

Quando Luísa chegou à cozinha para se limpar Franco ficou parado atrás com as mãos na cintura a observando.

- Me deixe conversar a sós com minha filha. – Franco se dirigiu a Berta.

Luísa assentiu com a cabeça e a babá se retirou apreensiva.

- Como eu já disse, nem pense em sair daqui. Tire essas ideias da cabeça desse sujeitinho.

- Tudo bem. – Luísa cortou a conversa mole. – Como elas estão?

- Não interessa.

O padrasto chegava mais perto e a garota deu alguns passos para trás abrindo a porta corrediça do jardim.

- Vou ficar do jeito que você quiser, mas me deixe em paz, por favor. – Ela disse como se já estivesse entediada com toda a situação.

- Você não está em posição de pedir alguma coisa.

Antes que o homem chegasse mais perto Jonas apareceu rosnando. O cão se colocou na frente da menina, Franco não se intimidou e foi para cima do animal para chutá-lo. O cachorro latiu feroz mostrando os dentes e o padrasto se assustou. Luísa sorriu sem querer e Daniel apareceu puxando Jonas irredutível em sua investida.

Franco voltou para a companhia de Justino. Luísa teve uma crise de risos silenciosos e satisfeita, ficou vermelha como um tomate.

- Está tudo bem? – Perguntou Daniel a encarando com aqueles olhos cor de mel profundos.

Não era nem um pouco parecido com o pai.

- Não. – Falou Luísa sorrindo com uma lágrima solitária lhe escorrendo pelo canto do olho. – Tenho certeza que ele não vai deixar isso barato.

- Ele não tentará algo comigo aqui.

Ela sorriu com a inocência do marido, realmente ele não conhecia o sogro. Isso acabou lhe dando a certeza de que ele era alheio ao que acontecia por trás de tudo.

- Você é muito bonita, principalmente sorrindo. – A frase saiu espontânea, Daniel estava distraído a observando com mais atenção.

Imediatamente a garota parou de rir e voltou para a sala. Seu padrasto ainda parecia furioso com os olhos mais vermelhos de tanto álcool.

- Estou lhe dizendo, fique calmo, já conversei com meu filho e ele não fará mais nada. – Justino falava baixo com Franco. – Eu conheço meu filho. Vamos ficar em paz, amigo. O que vai adiantar fazer uma confusão e tornar esse espetáculo maior? Quanto menos estardalhaços fizermos, é melhor.

O clima ficou mais pacífico por causa de Justino e Daniel voltou se desculpando por seu cachorro.

- Meu genro! – Franco riu alto passando o braço pelo pescoço de Daniel. Luísa começou a ficar assustada. – Seu pai e eu dormiremos aqui hoje. O tempo está ficando ruim e não é bom um homem bêbado pegar a estrada nessas condições...

Justino lançou um olhar desesperado ao filho que não teve como negar. O coração de Luísa disparou, queria morrer. Sabia que a investida do cachorro não sairia de graça, embora ainda tenha valido a pena para afastá-lo.

A menina aproveitou que Franco estava distraído pendurado no pescoço de Daniel e correu para a cozinha.

- Berta, por favor, você precisa dormir aqui comigo, eu não posso ficar sozinha com três homens. Por favor! – Luísa tremia convulsivamente.

- Meu neto...

A babá não terminou de falar e Daniel apareceu.

- Ela tem razão. Não pode trazer seu neto para dormir aqui? Traga ele. Sei que estou arriscando trazendo uma criança, mas faça isso. – Daniel também pedia.

- Mas eu chegaria de madrugada aqui.

- Vá agora então, Berta. Eu cuido dela, prometo. Vá rápido e volte com seu neto. – Daniel puxou a carteira do bolso e pegou dinheiro. – Tome, pegue um táxi para conseguir voltar o mais rápido possível.

- O caminho é de mais ou menos uma hora, então devo estar de volta em duas horas e meia.

Berta correu saindo pela passagem do jardim para os outros homens não a questionarem pelo caminho. Os dois voltaram para a companhia de seus pais.

O dia escurecia rápido de propósito, Luísa não queria dormir com o padrasto. Seus pensamentos se voltavam, a todo momento, na faca escondida. Talvez fosse a oportunidade de matar Franco, em vez de atentar contra sua própria vida. A garota fez de tudo para colocar sua atenção na TV ligada no canal de notícias e então, um acidente foi noticiado e a previsão de chuva atrapalharia o trânsito na avenida principal em suas duas faixas. Luísa abaixou a cabeça e fechou os olhos, estava perdida.

Provavelmente Berta estaria presa sem poder ir ou voltar no trânsito. Sua única esperança agora era Daniel.

- Viu só, meu genro. Fizemos bem em ficar. – Ria-se Franco. – Agora estaríamos presos nesse inferno. Luísa, arrume um espaço em seu quarto que o Pai vai protegê-la essa noite.

Luísa correu para o andar de cima. Essa noite seria a decisão final, um dos dois morreria.

- Deixem que eu converso com ela. – O padrasto foi atrás.

Daniel pensou em segui-los, mas o pai o segurou pelo braço.

A garota sabia que era Franco subindo, conhecia até mesmo suas passadas. Decidiu enfrentá-lo, pelo menos dessa vez não seria fraca, deveria proteger a si mesma. Não deixou ele começar e falou furiosa entre dentes.

- Eu não vou deixar você me dominar, já chega! – Ela apontava o dedo e ele deu um tapa afastando.

- Cale a boca...

- Não, cale você. – Ela estava com mais ódio que o normal. – Você não vai encostar um dedo em mim, antes disso eu grito até morrer, bato com a minha cabeça na parede, faço qualquer coisa, mas viva você não me pega.

- Sua filha...

- Não adianta me ameaçar porque se eu morrer não vai adiantar nada sua vingança contra elas e eu não ligo a mínima. Se eu morrer acaba tudo e eu não tenho mais medo.

Franco levantou o braço e tentou lhe dar um tapa que foi bloqueado. Luísa segurou o braço do padrasto e o empurrou contra o início das escadas. O homem estava ligeiramente bêbado, mas se segurou.

- Você é ruim? Lembre-se que sou muito pior. Você não me conhece, não mesmo. – Luísa deu as costas e ele a puxou pela camiseta.

Ela se desvencilhou.

- Está se achando muito esperta. Vou colocar câmeras para vigiar você o dia inteiro. – Ele alterou um pouco a voz.

- Isso mesmo, coloque câmeras até no banheiro, assim tudo fica gravado e vou ter provas contra você. – Ela riu ainda tremendo incontrolavelmente. – Vai me vigiar, mas não vai poder ficar aqui as vinte e quatro horas. Vai me ver fazer tudo que não quer que eu faça, vou fazer você morrer de tanto ódio de mim...

A garota o empurrou novamente e entrou no quarto. Franco a pegou pelos cabelos e ela lhe deu uma cotovelada. Antes de brigarem aos socos Justino chamou do corredor e Daniel vinha atrás.

- Está tudo bem compadre? O que ela tem?

Franco a jogou na cama e saiu fechando a porta atrás de si.

- Passando mal. – Dava para sentir sua voz abalada. – Foi se deitar.

Luísa pensou em deixar a faca preparada para golpeá-lo a escondendo no cós da calça. Aquilo era um pesadelo para ela, se sentia de volta ao apartamento onde morava com o padrasto. Pela primeira vez em dias ela conseguiu não chorar e estava satisfeita, mesmo sabendo que talvez pagasse caro pelo desafio.

Daniel abriu a porta do quarto de Luísa meia hora depois. Ela não se assustou, aparentemente de guarda armada e tensa. Estava sentada na cama abraçando as pernas e o marido lhe trouxe uma xícara de chá.

- Obrigada. – Pediu, agarrando a xícara com as duas mãos. – Mas e Franco?

- Ele foi embora, recebeu uma ligação logo que a deixou aqui. – A voz de Daniel soava gentil. – Berta me ligou pedindo desculpas e perguntando por você. Há meia hora atrás ainda estava presa na estrada. Eu disse para que ficasse em casa. Seria arriscado trazer o menino a essa hora.

- Tudo bem. – Ela bebericou um pouco do chá.

- Aconteceu alguma coisa muito ruim. Franco saiu furioso e xingando muito. Pensando bem, ele está sempre nervoso.

- Deve ter sido algo muito grave, para perder a oportunidade de ficar comigo. – Ela soprou o chá quente e olhou para Daniel após pensar em sua mãe. – Deve ter sido minha mãe. Você não ouviu o que ele falou ao telefone? Ele só me deixaria se minha mãe fizesse alguma coisa, ele não suporta que ela saia sem avisar.

- Aparentemente ele falava com um homem, mas quando xingou parecia ser dirigido a mulheres.

- Com certeza, eram as duas. Será que seu pai sabe? – Agora ela estava ávida por notícias das duas.

- Posso tentar ver com ele, mas duvido que vá me contar alguma coisa depois de hoje. Ele percebeu que eu a estava defendendo. – Ele inspirou e soltou o ar completando: - Bom, vou colocar Jonas dentro de casa, ele ficou ao lado de fora. Tente dormir um pouco.

Ela não conseguiria dormir, nem se tentasse. Pensou sobre sua atitude mais cedo com relação a matar seu padrasto. A coragem de cometer tal ato passou rapidamente, não se tornaria uma assassina. Não tinha coragem...

- Posso ficar com ele aqui? – Perguntou Luísa antes de Daniel fechar a porta.

- Claro.

O rapaz saiu e voltou rápido com o cão.

- Não pode latir, está bem? – Daniel dava ordens ao amigo agachado no chão. – Cuide bem dela. Boa noite, Luísa.

- Boa noite e obrigada de novo. – Ela não resistiu a sorrir para ele.

Ela acabou colocando a faca de volta no esconderijo embaixo na cama.

A manhã demorou uma eternidade para chegar. Luísa acordava várias vezes por causa dos sonhos com sua mãe e irmã. Seu cérebro estava cansado.

Jonas arranhava as unhas no chão, animado para sair. Ela o libertou e voltou para a cama. Daniel foi até seu quarto verificar como estava. Vê-la naquele estado amoleceu ainda mais seu coração. Precisava ser protegida. Era domingo e Berta não voltaria para trabalhar e ele também estava esgotado.

Luísa sonhava com a briga que teve com Franco, onde não conseguia ter movimentos rápidos o suficiente para se defender e tentava alcançar a faca no esconderijo. Acabou acordando com uma sensação ruim que atingia a boca de seu estômago. Passava de três horas da tarde e a essa altura seu padrasto já deveria ter feito alguma coisa. A arritmia cardíaca lhe atacou. O que estava pensando quando desafiou o padrasto? Deixou a raiva lhe subir a cabeça. Luísa respirava forte repetidas vezes. Ficaria louca se não soubesse o que acontecia fora daquela casa.

Daniel bateu na porta do quarto da esposa enquanto ela entrava em pânico.

- Vai querer escolher alguma coisa para almoçar? – Perguntou ele do lado de fora.

Ela abriu a porta num solavanco.

- Daniel, você tem como saber o que meu padrasto está fazendo?

Ele a encarou em dúvida.

- Seu pai consegue ligar para ele? – Insistiu ela.

- O que aconteceu? – Ele também mostrava preocupação.

- Nós brigamos ontem. Se seu pai não chegasse a tempo nós dois teríamos lutado. Eu preciso saber se minha mãe e irmã estão bem.

O marido sacou o celular do bolso da calça e ofereceu a ela.

- Tente ligar para elas.

- Não posso, se ele confiscou o telefone delas vai saber que tentamos ligar.

Daniel suspirou e digitou o número do pai saindo em direção a sala.

Por causa da chuva que caíra de madrugada, o clima ficava mais frio. Luísa sentou na cama puxando os cabelos, tremendo de frio e ansiedade. Seus dedos estavam congelados, assim como os pés. Precisava saber o que acontecia fora de sua prisão.

- Eu disse a meu pai que você estava passando mal e pedi que ligasse para Franco, mas ele não atende. – Daniel falou se aproximando e sentando ao lado.

- Estou perdida. – Luísa riu de si mesma. – Daniel, eu desisto. De verdade, vou desistir de lutar.

Daniel foi tomado de compaixão.

- Então fuja, eu dou cobertura. Dou o dinheiro que precisar, mas vá para longe disso. – Ele a observava com um olhar penoso, não sabia como consolá-la. – Não faço ideia do tamanho desse problema e parece que você sofre muito. Se é assim, vá embora. Posso conseguir que saia do país.

- Obrigada, mas não é tão simples. Ele tem minha mãe e minha irmã nas mãos dele, qualquer passo em falso elas morrem. Na verdade ele só não as matou ainda porque eu fiz quatro denúncias contra ele e disse que um amigo me ajudou, então qualquer coisa que faça a elas ele será suspeito. Embora não adiante muito, serviu para atrasar os planos. Se não fosse isso ele já as teria assassinado para ter o caminho livre comigo. E você e seu pai, também ficariam com problemas. Não quero meter você nisso. – Ela olhou Daniel nos olhos. – Quer saber? Eu cansei de lutar, minhas forças se esgotaram. Vou me entregar a ele de vez e você ficará livre de mim.

Daniel não soube como reagir àquele desabafo.

- Posso ficar sozinha um pouco? Preciso me preparar psicologicamente.

Luísa estava sem forças para fazer qualquer coisa. Tomou um banho gelado demorado, quem sabe para mrrer de hipotermia, e voltou para a cama. Ficou horas abraçada ao travesseiro, a barriga roncava. Tentou não dar atenção e dormiu. Sonhou novamente com seu padrasto deitado num quarto escuro sem mobília e enrolado num lençol. Acordou assustada e com dor no peito. Passou tanto nervoso nas ultimas horas que sentia dor no estômago também, sua gastrite nervosa estava dando as caras. A dor estava insuportável, mas lhe aliviava os pensamentos.

Era incrível como o tempo passava rápido quando tudo estava em paz e passava tão devagar quando estava infeliz. Já era noite de domingo e Daniel mais uma vez bateu à porta.

- Vai tentar morrer de fome? – Ele trazia uma tigela de salada de frutas com chocolate.

- O que é isso? – Luísa sorria mais uma vez.

- Meu pai ligou de novo para Franco e ele disse que não se importa que esteja passando mal, mandou até um recado malcriado.

- Qual? – Ela arregalou os olhos esperando ouvir o pior.

- “Que morra”. – Ele também sorriu. – É, acho que está livre por um tempo. A briga deve ter sido feia pra ele ficar chateado assim. Eu achei que ele viria correndo nessa situação.

- Eu disse que me mataria se ele encostasse em mim. Logo depois seu pai diz que estou passando mal. Ele deve achar que tentei mesmo o suicídio e não vai se aproximar ou já se vingou de mim fazendo outra coisa que só saberei futuramente.

- Ele já abusou de você? – A pergunta de Daniel foi direta.

- Não diretamente. Apesar de ser desse jeito, ainda não foi ao extremo. Ele deve ter algum tipo de fantasia de conto de fadas. Um vez me disse que eu precisava saber o que era um homem de verdade.

- Você é muito forte para aguentar isso durante tantos anos. Sua mãe não fala nada sobre isso?

- Não, eu já tentei conversar com ela sobre isso, mas ela acha que é impressão minha. Ela acha que eu fugi de casa por causa das drogas. Pelo menos ele a fez acreditar nisso.

- E sua irmã?

- Ela está segura. Somos filhas de pais diferentes, não tem a mesma fisionomia que eu, não chama a atenção dele. Conversei muitas vezes com ela, nunca tentou nada do jeito que fazia comigo.

- Eu vi Franco acariciando você, deduzi que ele era mais abusado do que imaginava. – Agora havia tristeza na voz de Daniel e Luísa se sentiu abraçada emocionalmente por ele e sentiu confiança.

- Ele já me beijou, gosta de me acariciar, pegava em minhas parte íntimas se eu me distraía, sempre contava piadinhas obscenas de mal gosto, me observava dormindo ou me beijava enquanto dormia. – Ela deu de ombros.

Daniel ficou de boca aberta escutando, horrorizado.

- Tem certeza que sua mãe nunca percebeu isso? Esse cara tem que ser preso. Ele é um monstro. É o ser mais sujo que já vi. Meu Deus, como você conseguiu aguentar tudo isso sem enlouquecer? Como nunca se revoltou? Como?

- Eu não sei... – Ela sorriu.

- Você gosta dele? – A próxima pergunta foi uma pancada, a fez se sentir enojada.

- É claro que não. Eu já pensei em matá-lo muitas vezes. Mas nunca tive coragem de verdade. Eu não sei mais o que passa pela minha cabeça. Me sinto muito confusa.

- E não tem medo de outros homens?

- Não, por incrível que pareça é só dele. Se eu ouço alguém com a voz parecida ou a fisionomia, ou o barulho do motor do carro dele... Isso tudo me deixa com medo. Só o que é relacionado a ele. Outros homens são normais pra mim, ele é o monstro. – Ela olhou para as próprias mãos. – Só de falar dele eu tenho esses tremeliques. Foi uma coisa que adquiri com o tempo. Só de ouvir aquela voz eu não consigo parar de tremer, é involuntário, não posso controlar.

- Eu sinto muito. Se eu puder fazer alguma coisa por você é só dizer. Afinal de contas, sou seu marido. Conta comigo. Quando ele vir vou grudar em você, prometo não tirar os olhos.

- Não quero que se dê mal por isso, não é necessário, de verdade.

Daniel a pegou de surpresa e a abraçou forte.

     - Não desista de lutar, não se entregue tão fácil. - Falou ele.

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Comments

euamoCeo

euamoCeo

É só ela matar ele!!!

2020-10-20

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