O Vilarejo

O Vilarejo

O Vazio

Eu acordei no meio da escuridão. Tudo ao meu redor era confuso, uma névoa densa que parecia me sufocar. O som de sirenes distantes ecoava, um lamento frio que se misturava ao ruído abafado da chuva caindo sobre o asfalto. Tentei me mexer, mas meu corpo estava rígido, pesado, como se estivesse preso a algo invisível. Então, aos poucos, a escuridão começou a se dissipar, e eu senti a dor.

Era um tipo de dor que não vinha de fora, mas de dentro. Uma sensação de vazio profundo. Não consegui entender imediatamente, mas havia algo que faltava em mim. O que era? Tentei me lembrar de quem eu era, onde estava, o que tinha acontecido, mas... nada. A única coisa que surgia era a noite. A chuva. E o som das sirenes.

Minha visão foi clareando aos poucos, e eu vi as luzes vermelhas e azuis refletidas no vidro quebrado do carro. Eu estava deitada de lado, meu corpo preso pelo cinto de segurança. O carro estava virado, e eu podia sentir o cheiro de gasolina e ferro. Tentei soltar o cinto, mas minha mão direita estava fraca demais. Sangue escorria pelo meu rosto, misturando-se com a chuva que entrava pelo para-brisa estilhaçado. Estava sozinha, no meio do que parecia ser uma estrada deserta.

Ouvi passos e uma voz abafada, alguém falando de longe. Tentei chamar, mas minha garganta estava seca, o som que saiu foi apenas um sussurro. A dor na cabeça latejava, e minha visão ficou embaçada novamente. Quando fechei os olhos, a escuridão me envolveu outra vez.

Acordei em um lugar diferente. O cheiro de hospital me atingiu assim que abri os olhos. Era um quarto pequeno, iluminado apenas por uma luz amarela fraca que pendia do teto. O som de máquinas ao meu redor era perturbador, e o ar frio parecia perfurar minha pele. Eu estava deitada em uma cama, conectada a aparelhos que monitoravam meus batimentos cardíacos. Olhei em volta, tentando entender o que tinha acontecido.

Uma enfermeira entrou na sala. Ela tinha uma expressão de cansaço, mas seus olhos pareciam gentis.

— Você está acordada — ela disse suavemente, enquanto se aproximava para verificar os monitores. — Como está se sentindo?

Eu tentei falar, mas minha garganta parecia feita de areia. Ao invés de palavras, um gemido fraco saiu da minha boca.

— Não se preocupe — disse ela, com um sorriso encorajador. — Você teve um acidente de carro. Foi um milagre termos conseguido chegar a tempo.

Acidente. As palavras dela flutuaram na minha mente como se fossem de outra língua. Eu deveria lembrar do acidente, mas tudo o que via eram fragmentos desconexos: a chuva, as luzes da ambulância, e a sensação esmagadora de vazio.

— Qual é o seu nome? — perguntou a enfermeira.

Meu nome? Deveria ser fácil responder essa pergunta. Mas quando tentei acessar essa informação na minha mente, não encontrei nada. Um pânico silencioso começou a se formar no meu peito. Quem eu era?

— Eu… eu não sei — sussurrei, a voz fraca, mas carregada de pavor.

Ela franziu a testa, mas tentou manter a calma.

— Não se preocupe — disse ela, enquanto anotava algo em sua prancheta. — Isso pode acontecer. Vamos fazer alguns exames mais tarde, e tenho certeza de que a memória voltará com o tempo.

Ela tentou me tranquilizar, mas meu coração disparou. Era como se eu tivesse sido apagada. Nada, absolutamente nada, me vinha à mente. Não sabia de onde eu vinha, quem eu era, ou o que tinha acontecido antes daquele acidente. Só havia o presente. O aqui e o agora. E o vazio.

Algum tempo depois, um médico entrou no quarto. Ele explicou que meu corpo estava curado de ferimentos leves, mas minha memória... isso era outra questão. Falaram em amnésia, talvez temporária, talvez não. Eles me disseram que eu não carregava qualquer documento no carro, nada que indicasse quem eu era. Sem celular, sem carteira, sem qualquer pista.

Eu era uma desconhecida.

Dias se passaram e, apesar dos exames, nada mudou. As autoridades tentaram encontrar informações sobre mim, mas não havia nenhum relatório de desaparecimento que combinasse com minha descrição. Eu estava sozinha em um limbo, uma vida que não existia em lugar nenhum.

Até que, em uma manhã, enquanto a enfermeira trocava minhas bandagens, notei algo que parecia ter passado despercebido antes. No meu pulso direito, havia uma tatuagem. Pequena, mas intricada. Era um símbolo que eu não reconhecia, como um desenho antigo, formado por linhas entrelaçadas, algo entre o místico e o tribal.

— O que é isso? — perguntei, apontando para o meu pulso.

A enfermeira olhou com curiosidade.

— Parece ser uma tatuagem, mas é um desenho estranho. Você lembra de tê-la feito?

Neguei com a cabeça. Como poderia lembrar? Aquela era a única coisa tangível sobre o meu passado. Algo que estava ali, gravado na minha pele, mas sem significado para mim.

Após sair do hospital, senti uma estranha desconexão com o mundo ao meu redor. Cada pessoa que cruzava meu caminho parecia ter uma vida, uma história. Eu não tinha nada além daquele símbolo em meu pulso. A tatuagem era a única pista concreta que eu possuía, mas eu não fazia ideia de onde começar a procurar.

Nos primeiros dias, fui tomada por uma sensação constante de deslocamento. Eu olhava meu reflexo no espelho, mas não conseguia reconhecer a mulher que via ali. Passei horas tentando forçar lembranças, mas era como tentar agarrar fumaça. Tudo se dissipava assim que eu chegava perto de algo que parecia familiar.

Toda vez que olhava para a tatuagem, o desconforto crescia. O símbolo era simples, mas carregava um peso que eu não podia explicar. Talvez tivesse algum significado pessoal, talvez fosse algo que eu tivesse escolhido por um motivo importante… ou talvez fosse um vestígio de algo mais sombrio.

À noite, os pesadelos começaram. Não eram claros, como as lembranças nebulosas que não conseguia acessar, mas fragmentados. Eu me via correndo por uma estrada escura, gritando por ajuda, enquanto figuras indistintas me observavam de longe. Sempre acordava com a sensação de estar sendo observada.

Nos dias seguintes, comecei a procurar por respostas, mas sem qualquer direção, era como procurar uma agulha em um palheiro. Visitei estúdios de tatuagem, mostrei o símbolo, mas ninguém parecia reconhecê-lo. E assim, eu continuava presa naquele vazio.

Cada dia que passava sem respostas apenas aumentava a sensação de que algo importante me escapava. Algo que estava bem ali, à minha frente, mas que eu ainda não conseguia enxergar.

O que eu tinha certeza, porém, era que não conseguiria viver assim por muito tempo.

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Maria Socorro Netos

Maria Socorro Netos

comecei ler agora 08/12/2024

2024-12-09

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