Eu acordei no meio da escuridão. Tudo ao meu redor era confuso, uma névoa densa que parecia me sufocar. O som de sirenes distantes ecoava, um lamento frio que se misturava ao ruído abafado da chuva caindo sobre o asfalto. Tentei me mexer, mas meu corpo estava rígido, pesado, como se estivesse preso a algo invisível. Então, aos poucos, a escuridão começou a se dissipar, e eu senti a dor.
Era um tipo de dor que não vinha de fora, mas de dentro. Uma sensação de vazio profundo. Não consegui entender imediatamente, mas havia algo que faltava em mim. O que era? Tentei me lembrar de quem eu era, onde estava, o que tinha acontecido, mas... nada. A única coisa que surgia era a noite. A chuva. E o som das sirenes.
Minha visão foi clareando aos poucos, e eu vi as luzes vermelhas e azuis refletidas no vidro quebrado do carro. Eu estava deitada de lado, meu corpo preso pelo cinto de segurança. O carro estava virado, e eu podia sentir o cheiro de gasolina e ferro. Tentei soltar o cinto, mas minha mão direita estava fraca demais. Sangue escorria pelo meu rosto, misturando-se com a chuva que entrava pelo para-brisa estilhaçado. Estava sozinha, no meio do que parecia ser uma estrada deserta.
Ouvi passos e uma voz abafada, alguém falando de longe. Tentei chamar, mas minha garganta estava seca, o som que saiu foi apenas um sussurro. A dor na cabeça latejava, e minha visão ficou embaçada novamente. Quando fechei os olhos, a escuridão me envolveu outra vez.
Acordei em um lugar diferente. O cheiro de hospital me atingiu assim que abri os olhos. Era um quarto pequeno, iluminado apenas por uma luz amarela fraca que pendia do teto. O som de máquinas ao meu redor era perturbador, e o ar frio parecia perfurar minha pele. Eu estava deitada em uma cama, conectada a aparelhos que monitoravam meus batimentos cardíacos. Olhei em volta, tentando entender o que tinha acontecido.
Uma enfermeira entrou na sala. Ela tinha uma expressão de cansaço, mas seus olhos pareciam gentis.
— Você está acordada — ela disse suavemente, enquanto se aproximava para verificar os monitores. — Como está se sentindo?
Eu tentei falar, mas minha garganta parecia feita de areia. Ao invés de palavras, um gemido fraco saiu da minha boca.
— Não se preocupe — disse ela, com um sorriso encorajador. — Você teve um acidente de carro. Foi um milagre termos conseguido chegar a tempo.
Acidente. As palavras dela flutuaram na minha mente como se fossem de outra língua. Eu deveria lembrar do acidente, mas tudo o que via eram fragmentos desconexos: a chuva, as luzes da ambulância, e a sensação esmagadora de vazio.
— Qual é o seu nome? — perguntou a enfermeira.
Meu nome? Deveria ser fácil responder essa pergunta. Mas quando tentei acessar essa informação na minha mente, não encontrei nada. Um pânico silencioso começou a se formar no meu peito. Quem eu era?
— Eu… eu não sei — sussurrei, a voz fraca, mas carregada de pavor.
Ela franziu a testa, mas tentou manter a calma.
— Não se preocupe — disse ela, enquanto anotava algo em sua prancheta. — Isso pode acontecer. Vamos fazer alguns exames mais tarde, e tenho certeza de que a memória voltará com o tempo.
Ela tentou me tranquilizar, mas meu coração disparou. Era como se eu tivesse sido apagada. Nada, absolutamente nada, me vinha à mente. Não sabia de onde eu vinha, quem eu era, ou o que tinha acontecido antes daquele acidente. Só havia o presente. O aqui e o agora. E o vazio.
Algum tempo depois, um médico entrou no quarto. Ele explicou que meu corpo estava curado de ferimentos leves, mas minha memória... isso era outra questão. Falaram em amnésia, talvez temporária, talvez não. Eles me disseram que eu não carregava qualquer documento no carro, nada que indicasse quem eu era. Sem celular, sem carteira, sem qualquer pista.
Eu era uma desconhecida.
Dias se passaram e, apesar dos exames, nada mudou. As autoridades tentaram encontrar informações sobre mim, mas não havia nenhum relatório de desaparecimento que combinasse com minha descrição. Eu estava sozinha em um limbo, uma vida que não existia em lugar nenhum.
Até que, em uma manhã, enquanto a enfermeira trocava minhas bandagens, notei algo que parecia ter passado despercebido antes. No meu pulso direito, havia uma tatuagem. Pequena, mas intricada. Era um símbolo que eu não reconhecia, como um desenho antigo, formado por linhas entrelaçadas, algo entre o místico e o tribal.
— O que é isso? — perguntei, apontando para o meu pulso.
A enfermeira olhou com curiosidade.
— Parece ser uma tatuagem, mas é um desenho estranho. Você lembra de tê-la feito?
Neguei com a cabeça. Como poderia lembrar? Aquela era a única coisa tangível sobre o meu passado. Algo que estava ali, gravado na minha pele, mas sem significado para mim.
Após sair do hospital, senti uma estranha desconexão com o mundo ao meu redor. Cada pessoa que cruzava meu caminho parecia ter uma vida, uma história. Eu não tinha nada além daquele símbolo em meu pulso. A tatuagem era a única pista concreta que eu possuía, mas eu não fazia ideia de onde começar a procurar.
Nos primeiros dias, fui tomada por uma sensação constante de deslocamento. Eu olhava meu reflexo no espelho, mas não conseguia reconhecer a mulher que via ali. Passei horas tentando forçar lembranças, mas era como tentar agarrar fumaça. Tudo se dissipava assim que eu chegava perto de algo que parecia familiar.
Toda vez que olhava para a tatuagem, o desconforto crescia. O símbolo era simples, mas carregava um peso que eu não podia explicar. Talvez tivesse algum significado pessoal, talvez fosse algo que eu tivesse escolhido por um motivo importante… ou talvez fosse um vestígio de algo mais sombrio.
À noite, os pesadelos começaram. Não eram claros, como as lembranças nebulosas que não conseguia acessar, mas fragmentados. Eu me via correndo por uma estrada escura, gritando por ajuda, enquanto figuras indistintas me observavam de longe. Sempre acordava com a sensação de estar sendo observada.
Nos dias seguintes, comecei a procurar por respostas, mas sem qualquer direção, era como procurar uma agulha em um palheiro. Visitei estúdios de tatuagem, mostrei o símbolo, mas ninguém parecia reconhecê-lo. E assim, eu continuava presa naquele vazio.
Cada dia que passava sem respostas apenas aumentava a sensação de que algo importante me escapava. Algo que estava bem ali, à minha frente, mas que eu ainda não conseguia enxergar.
O que eu tinha certeza, porém, era que não conseguiria viver assim por muito tempo.
A água quente escorria sobre mim, enquanto o vapor lentamente preenchia o pequeno banheiro do apartamento. Era reconfortante, mas temporário. Fechei os olhos, tentando me desligar dos pensamentos constantes que dominavam minha mente desde o acidente, mas, inevitavelmente, eles voltavam para o mesmo ponto.
Olhei para o meu pulso, a água escorrendo sobre a tatuagem. Aquele pequeno símbolo. Simples, mas perturbador. Eu o observava há dias, tentando fazer algum tipo de conexão, esperando que, em algum momento, a lembrança do porquê ele estava ali simplesmente surgisse. Mas nada acontecia. Era como tentar encaixar uma peça de quebra-cabeça em um lugar onde ela claramente não pertencia. Eu não sabia o que aquilo significava. Não sabia se tinha algum propósito ou se era apenas um vestígio aleatório do meu passado.
Suspirei e esfreguei os dedos sobre o símbolo, mas mesmo aquele toque não provocava qualquer memória. Eu não sentia uma conexão real com aquilo, como se não pertencesse a mim. Era parte do meu corpo, mas, ao mesmo tempo, era uma marca de algo que não reconhecia. Algo alheio. Algo esquecido.
Desliguei o chuveiro e me enrolei na toalha, saindo para o quarto ainda envolto pelo vapor. Apesar de todas as incertezas, eu estava grata por ter conseguido algum apoio para tentar reorganizar minha vida. Eu não sabia meu nome, de onde vinha, ou o que tinha acontecido comigo, mas o governo me ofereceu ajuda para conseguir uma identificação temporária. Eles entenderam a gravidade do meu caso, mas, como a memória ainda não tinha voltado e não havia informações sobre parentes ou conhecidos, eu estava em uma espécie de limbo.
Mesmo assim, deram-me condições para começar de novo, até que algo mais concreto surgisse. Eu tinha conseguido um pequeno apartamento, um espaço simples e básico, mas confortável o suficiente para eu tentar me estabilizar. Além disso, arrumaram acompanhamento psicológico semanal. Hoje seria minha primeira sessão.
Por mais que eu fosse grata pela ajuda, algo em mim resistia a esse acompanhamento. Parte de mim tinha medo do que seria revelado durante essas conversas. Medo de que, em algum momento, a verdade sobre quem eu era emergisse de uma forma que eu não estava preparada para lidar. No entanto, fugir disso não resolveria nada. Minha mente estava vazia, e eu não podia continuar vivendo como se essa ausência fosse normal.
Me vesti com simplicidade, pegando uma calça jeans e uma blusa leve. No espelho, minha expressão parecia cansada, apesar de eu ter dormido a noite inteira. Os pesadelos ainda rondavam minhas noites, mas não o suficiente para me acordar. Eu sabia que eles estavam lá, sussurrando sob a superfície.
Olhei para o relógio. Faltava uma hora para minha sessão. Sentei-me na beirada da cama, de frente para a janela, onde o sol tímido de início de tarde iluminava o quarto. Havia uma calma exterior que não combinava com a tormenta interior que eu sentia todos os dias. O relógio parecia se mover lentamente, arrastando-me para o inevitável.
Peguei meu caderno de anotações na mesa ao lado e o abri na primeira página. Estava em branco, como a minha mente. A ideia era registrar qualquer coisa que viesse à tona, uma estratégia sugerida pela enfermeira que me acompanhou durante minha recuperação no hospital. Mas até agora, as páginas permaneciam intactas.
Ao menos eu teria algo para contar na sessão?
Deitei o caderno de volta na mesa e me levantei. Decidi sair um pouco antes e andar até o consultório, mesmo que fosse um caminho curto. Talvez o ar fresco me ajudasse a acalmar os nervos.
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O consultório da Dra. Helena era simples, mas acolhedor. Havia uma poltrona confortável em um canto, algumas plantas espalhadas e uma estante cheia de livros. Assim que entrei, senti uma mistura de ansiedade e alívio. Um espaço neutro, onde eu poderia tentar entender o que estava acontecendo comigo, mas ao mesmo tempo, um lugar onde eu teria que me abrir sobre coisas que eu nem sabia se queria confrontar.
Dra. Helena era uma mulher loira de meia-idade, de sorriso gentil e olhos atentos. Ela me recebeu com um aceno e me convidou a sentar na poltrona enquanto ela ocupava a cadeira em frente.
— Como você está se sentindo? — foi a primeira pergunta dela, um tom suave, mas firme. Havia uma pasta no seu colo, com o símbolo do governo na capa. Possivelmente, um relatório com o pouco histórico que eu tinha.
Respirei fundo. O que eu deveria dizer? Que estava perdida? Que não conseguia sequer me identificar no espelho? Que, todas as noites, antes de dormir, a única coisa que me conectava a algum tipo de vida passada era uma tatuagem que eu nem lembrava de ter feito?
— Um pouco confusa, para ser sincera — respondi, optando por uma versão simplificada da verdade.
Ela acenou com a cabeça, como se esperasse essa resposta.
— Isso é completamente normal, considerando o que você passou. O que importa agora é que estamos aqui para entender o que está causando essa confusão e, aos poucos, começar a reconstruir as partes que estão faltando.
Parte de mim queria acreditar nisso, mas outra parte temia que não houvesse nada para reconstruir. E se essa confusão fosse tudo o que restava?
Dra. Helena me observou por um momento, antes de falar novamente.
— Sei que essa é uma pergunta difícil, mas gostaria que me falasse um pouco sobre o que sente quando olha para essa tatuagem.
A pergunta me pegou de surpresa. Eu não esperava que ela abordasse a tatuagem tão diretamente, tão cedo. Automaticamente, minha mão foi para o pulso, como se eu precisasse tocá-la para responder.
— Não sei — comecei, hesitante. — É como... se ela estivesse aqui, mas não fizesse parte de mim. Não consigo entender por que a tenho, ou o que significa. E isso me incomoda.
Ela continuou me olhando atentamente, incentivando-me a continuar.
— Acho que... é a única coisa que tenho do meu passado. Mas, ao mesmo tempo, é a coisa que mais me confunde.
Dra. Helena fez uma anotação rápida em seu caderno e depois voltou sua atenção para mim.
— Vamos explorar isso aos poucos. Você não precisa ter todas as respostas agora. Por enquanto, o mais importante é reconhecer o que você está sentindo. A partir daí, começamos a construir um caminho.
Eu acenei, mas as palavras dela me atingiram de forma diferente do que eu esperava. Talvez eu estivesse querendo todas as respostas de uma vez. Talvez fosse essa a origem da minha frustração. Mas, de alguma forma, aquele espaço, aquela conversa, fez com que eu me sentisse um pouco menos perdida.
Eu sabia que ela ia me fazer perguntas, e que, inevitavelmente, eu teria que falar mais sobre o que estava acontecendo dentro de mim. Mas ainda era estranho estar ali, diante de uma pessoa que sabia mais sobre a minha mente, meu corpo e meu comportamento do que eu mesma.
Ela ergueu os olhos do caderno, mantendo seu tom calmo e amigável.
— A tatuagem é uma representação física do seu passado — disse ela, como se isso fosse óbvio, mas não para mim. — Porém, nosso foco não é apenas o símbolo em si, mas o que ele provoca em você emocionalmente. Quando você a vê, o que sente de verdade? Existe alguma sensação específica que surge além da confusão?
Essa pergunta me pegou de surpresa. Não era algo em que eu tinha pensado. Eu olhava para a tatuagem várias vezes ao dia, mas raramente me permitia sentir qualquer coisa sobre ela, além da frustração de não saber seu significado.
Olhei para o meu pulso novamente, tentando encontrar uma resposta.
— Acho que… fico inquieta — comecei, lentamente. — É como se ela estivesse ligada a algo importante, a algo que não quero lembrar. Ao mesmo tempo, ela é tudo que eu tenho, então eu me prendo a ela, como se fosse minha única âncora.
Dra. Helena acenou, parecendo satisfeita com minha resposta.
— Inquietação é uma palavra forte — disse ela, tomando nota novamente. — Vamos explorar essa sensação. Inquietação geralmente vem de um lugar de conflito interno. Algo dentro de você está resistindo a encarar esse símbolo, mas, ao mesmo tempo, você sabe que ele guarda uma verdade. Talvez, uma parte de você ainda não esteja pronta para confrontar essa verdade.
Eu refleti sobre isso. Talvez fosse verdade. Talvez, de alguma forma, eu estivesse evitando lidar com o que a tatuagem representava, porque, no fundo, eu temia o que ela poderia me revelar. Não era só a curiosidade de não saber quem eu era. Havia algo mais profundo, uma angústia que eu não conseguia colocar em palavras.
Ela deixou o silêncio preencher o ambiente por alguns instantes antes de continuar.
— Vamos voltar um pouco — sugeriu, cruzando as mãos sobre o colo. — Você disse que essa tatuagem é sua única âncora. Como você lida com essa ideia de ter apenas uma âncora, e ela ser tão nebulosa?
Eu respirei fundo, hesitando por um momento. Não queria soar desesperada, mas havia uma verdade crua naquilo.
— Me sinto perdida, para ser sincera — admiti, sentindo a garganta apertar ao falar isso em voz alta. — Às vezes, sinto como se fosse flutuar para longe. Como se, sem a tatuagem, eu realmente não existisse. É assustador, porque ela é a única prova física de que eu tinha uma vida antes disso. Mas também é… insuficiente. É como se não fosse o bastante para me segurar.
Dra. Helena ouviu atentamente, o olhar dela nunca deixando o meu. Eu tinha a sensação de que ela sabia exatamente o que dizer, mas estava me dando espaço para encontrar as palavras.
— Esse sentimento de perda de identidade — ela começou, escolhendo as palavras com cuidado — é uma reação completamente normal em casos como o seu. O que você descreveu — a sensação de que sua identidade está suspensa, flutuando, sem um ponto de ancoragem sólido — é o que chamamos de dissociação. Em vez de se agarrar a uma ideia ou memória concreta, sua mente está tentando encontrar algo em que se apoiar, mas como não há uma memória clara, você se sente vulnerável.
Ela fez outra pausa, permitindo que suas palavras se assentassem em minha mente.
— O que precisamos entender — continuou — é que, por mais que a tatuagem pareça importante, ela não é a única coisa que define quem você é. Você ainda está aqui, mesmo que não tenha todas as respostas agora. O seu passado é parte de você, mas não é a única coisa que importa. Seu presente e as decisões que você faz daqui para frente também contam.
Essas palavras me fizeram parar. De certa forma, eu sabia que ela estava certa. Estava tão obcecada com o que eu não lembrava que não estava vivendo o presente. Eu tinha me colocado em uma espécie de suspensão, esperando que minha memória voltasse para preencher as lacunas, sem me permitir seguir em frente até lá.
— Isso faz sentido — eu disse, com um pequeno aceno. — Mas ainda sinto como se estivesse à deriva.
Dra. Helena sorriu levemente, como se soubesse que essa luta interior levaria tempo.
— Isso é esperado, e vai levar tempo para mudar. O que precisamos fazer agora é focar no que você pode controlar. Pequenos passos. Não vamos forçar a memória, mas vamos explorar como você pode começar a construir uma nova vida, mesmo que a antiga ainda seja um mistério. É aqui que o processo de reconstrução começa.
Ela fez outra anotação, e senti o peso das suas palavras me envolver. Pequenos passos. Eu queria respostas grandes e imediatas, mas sabia que não seria assim. Estava claro que essa jornada seria longa, e talvez cheia de armadilhas que eu nem sabia que existiam.
Dra. Helena colocou a caneta sobre a mesa e se inclinou ligeiramente para frente.
— Vou sugerir que, nos próximos dias, você tente fazer coisas simples que lhe tragam algum tipo de ancoragem emocional. Pode ser algo que você goste de fazer, mesmo que não tenha certeza se fazia parte da sua vida antes. Algo que faça você se sentir conectada ao presente. E, ao mesmo tempo, vamos continuar explorando o que a tatuagem representa para você, mas sem pressa. Você precisa de tempo para se reconectar com seu eu atual.
Eu acenei, absorvendo o que ela disse. A sessão estava chegando ao fim, mas já me sentia um pouco mais centrada do que quando entrei.
— Eu vou tentar — respondi, ainda um pouco incerta, mas mais disposta a fazer o que ela sugeriu.
Dra. Helena sorriu, se levantando da cadeira e me acompanhando até a porta.
— Lembre-se, você não está sozinha nisso. Estaremos aqui todas as semanas para continuar esse processo.
Saí do consultório com a mente em turbilhão, mas com a sensação de que, talvez, não estivesse tão perdida quanto pensava. Eu ainda tinha muitas perguntas, ainda não sabia quem eu era, mas, pela primeira vez, senti que talvez houvesse um caminho. E, por enquanto, isso seria o suficiente.
Cinco dias haviam se passado desde a minha primeira consulta com a Dra. Helena, e a cada dia, eu me esforçava para seguir sua orientação de viver no presente. Tentar descobrir algo que me conectasse ao agora. Não tinha sido fácil. Ainda me sentia à deriva, sem saber quem eu era antes do acidente, mas percebi que me perder em suposições e fantasias só me afastava mais do que eu precisava fazer: viver o presente.
Foi então que comecei a explorar a cidade com mais atenção. A pequena cidade, rodeada pelas montanhas e sempre envolta por uma neblina gélida, me intrigava de uma maneira que eu não conseguia explicar. Apesar de seu tamanho, ela tinha uma história pulsante em suas ruas de pedras antigas e nos prédios de madeira escura. Era a quinta de sete cidades, todos pequenos distritos conectados por uma estrada longa e sinuosa que cortava as montanhas.
O acidente que mudou minha vida ocorreu no início dessa estrada, perto da sexta cidade, um lugar ainda mais isolado e quase esquecido. E, apesar de todos os meus esforços para não pensar nisso, havia algo que me atraía para aquela estrada. Uma curiosidade perigosa e persistente.
Em uma das minhas caminhadas, encontrei a biblioteca local. Era um edifício antigo, com janelas altas que pareciam já ter visto décadas de invernos rigorosos. O ar dentro era espesso com o cheiro de papel envelhecido e madeira úmida. Logo ao entrar, senti uma estranha sensação de familiaridade, como se estivesse no lugar certo, mesmo sem saber por quê.
Passei os dedos pelas lombadas dos livros, sem muita intenção no começo, mas algo começou a me puxar para eles. Comecei a pegar volumes aleatórios das estantes, folheando suas páginas e me perdendo em histórias que não eram as minhas. Histórias de outras pessoas, de outras épocas. Havia algo reconfortante em ler sobre vidas que já haviam sido vividas, como se, de alguma forma, eu pudesse encontrar um espelho nelas.
Foi então que descobri meu gosto pela leitura. Talvez eu sempre tivesse esse hábito e ele fosse parte de quem eu era antes do acidente, ou talvez fosse algo novo. Não sabia, e talvez isso não importasse. Sentar-me em uma das cadeiras de madeira velha e mergulhar em páginas cheias de histórias tornou-se uma fuga bem-vinda da incerteza que minha vida tinha se tornado.
Comecei a me interessar por livros históricos, particularmente sobre a região em que agora morava. Queria entender mais sobre a cidade, sobre os distritos que a cercavam, e, quem sabe, encontrar alguma pista sobre mim mesma. Em um desses livros, encontrei informações sobre as sete cidades conectadas pela antiga estrada. A cidade onde eu vivia, a quinta, era relativamente conhecida, mas a sexta — onde meu acidente ocorreu — era descrita como menor e mais isolada, quase uma extensão da estrada, sem grandes atrativos ou importância histórica.
A sétima cidade, no entanto, foi o que mais me intrigou. Não havia quase nenhuma menção a ela nos livros que encontrei, apenas uma nota vaga mencionando que o último registro oficial daquele lugar era de 1974. Desde então, era como se a cidade simplesmente tivesse desaparecido. Não constava em mapas, e não havia relatos recentes sobre ela. Era como se, de algum modo, a cidade tivesse deixado de existir.
Olhando para as páginas, senti um arrepio. Como uma cidade inteira poderia desaparecer sem deixar rastro? E por que ninguém parecia falar sobre isso? A ausência de informações apenas aumentava a minha curiosidade, mas eu sabia que não deveria me perder nesse mistério. Não ainda.
Apesar de minha crescente fascinação, havia uma frustração que se mantinha constante: eu não podia levar os livros para casa. Sem documentos, eu era apenas uma visitante sem identidade, e a política da biblioteca era clara. A bibliotecária, uma mulher de olhar severo, nunca deixava de me lembrar disso quando eu tentava assinar algum empréstimo. Assim, todo o conhecimento que eu queria levar comigo ficava preso ali, nas prateleiras da biblioteca. Era um detalhe simples, mas que me impedia de aprofundar minhas leituras como eu gostaria. Isso, no entanto, não me impediu de continuar voltando.
Naquele dia, após horas de leitura, fechei o livro sobre as cidades com um suspiro. Olhei para a janela, observando como a neblina parecia aumentar conforme o sol começava a se pôr atrás das montanhas. A biblioteca, agora quase vazia, estava mergulhada em um silêncio reconfortante, quebrado apenas pelo som ocasional de uma página sendo virada ou o chiado dos pés arrastando no assoalho.
Levantei-me para devolver o livro à estante, passando novamente pelas prateleiras que se estendiam ao longo do corredor, e senti uma leve melancolia. Havia algo naquelas histórias antigas, nos mistérios daquela região, que me puxava mais do que qualquer outra coisa. Mas, ao mesmo tempo, havia uma sensação de que eu não estava pronta para mergulhar completamente nesses segredos. Algo dentro de mim hesitava, como se soubesse que, uma vez que eu seguisse esse caminho, não haveria volta.
Ao sair da biblioteca, o ar frio da noite me atingiu com força. O vento vinha das montanhas, cortante e gelado, fazendo as árvores próximas balançarem de forma quase fantasmagórica. Apertei o casaco contra o corpo e olhei mais uma vez para o caminho que levava para fora da cidade. Aquela estrada longa e misteriosa, conectando os distritos, parecia chamar meu nome, mesmo que eu não soubesse qual era, silenciosamente, como uma promessa de respostas que eu ainda não estava pronta para buscar.
Voltei para casa naquela noite com mais perguntas do que respostas. Enquanto me preparava para dormir, senti novamente a presença da tatuagem em meu pulso, um lembrete constante de que meu passado ainda estava fora do meu alcance. A cada dia, parecia que eu descobria mais sobre o mundo ao meu redor, mas menos sobre mim mesma.
Mesmo assim, algo em mim sabia que, eventualmente, eu teria que voltar àquela estrada. E talvez, naquela estrada, eu encontraria não apenas a verdade sobre o acidente, mas também sobre quem eu realmente era.
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