Querido Caçador

Querido Caçador

prólogo

Lester deixou que o whisky descesse garganta a dentro, pousando ruidosamente o copo sobre o balcão de madeira maciça. O mundo à sua volta, já começava a mostrar leves e ternas ondulações, como miragens no deserto, enquanto sua mente fugia do colapso no qual havia se atirado após os eventos terríveis que teve de vivenciar. Aquele era um local puro, ao menos, em sua concepção, tão puro quanto um caçador acostumado a ver sangue e tripas era capaz de conceber. Redsky, um pequeno bar localizado na U.S Rote 2, pouco antes da cidade de Bethel, no Maine, sua terra natal; havia o frequentado em todas as suas comemorações, junto ao Charles, seu irmão mais próximo na irmandade; um lobisomem decapitado em São Francisco, uma górgona queimada em ruínas, próximas da fronteira do México, um ninho de vampiros que foram degolados em uma noitada de sangue e vísceras, e um grupo de coisas que se escondiam nas montanhas, lembrava-se como Charles apontava com sua espingarda e dizia que aquilo era quase como caçar aves exóticas. Ele fez uma piada semelhante quando atingiu um lobisomem no peito com uma bala de prata, como se as pessoas andassem caçando aves e lobos por aí. Depois desse, ele parou de contar, parou de se importar se eram um ou um milhão de monstros que morriam. 

— Trás mais uma aí, meu camarada — ele disse, dosando o tom de voz, quando o velhote passou próximo a ele, do outro lado do balcão. O mesmo velho de sempre, com o mesmo rabo de cavalo e o bigodão lustroso, com um avental surrado um pano de prato sobre o ombro.

— Tá — disse o homem, pegando a garrafa de Jack Daniel's no balcão e servindo o copo.

— Deixa a garrafa aí, o que sobrar, vai pra viagem — Lester murmurou preguiçosamente, vendo o homem dar de ombros e deixar a garrafa sobre o balcão. Frequentava ali a tanto tempo, e nunca perguntou o nome do velhote, que também era alguém de poucas palavras, passou a chama-lo de velhote e o apelido foi bem recebido.

Não que a sua pinta de homem social fosse suficiente para esconder o ar mordaz que rastejava sob a pele de Lester, as roupas sociais, agora, um tanto desleixadas, o blazer e o rosto que mais parecia ter saído de uma novela; nada disso ocultava o horror que se escondia por trás dos seus olhos; alguns diriam que era um fuzileiro que voltou de uma guerra terrível, outros, diriam que já esteve em alguma das prisões consideradas como verdadeiros infernos no Arizona, mas não, quem olhasse bem para aqueles olhos cinzentos que, ao contrário do resto do rosto, eram prematuramente envelhecidos, saberia que o tipo de horror que ele trazia consigo, o tipo de maldade a qual vinha presenciando, não poderia ser causada por homens. Aquele bar estava cheio de brutamontes, uma gangue de motoqueiros com barbas trançadas e jaquetas de couro, um grupo de traficantes de metanfetamina que, pelos seus aspectos, provavelmente usavam tanto quanto vendiam a coisa. Uns arruaceiros aqui e ali, e alguns soldados que voltaram da guerra e agora eram nada mais que farrapos em busca de problemas. Lester estava sozinho...

Sim, não havia diferença daquele lugar para o que ele estava acostumado a ver, desde os quadros de bombeiros e times de baseball pendurados na parede de tijolos, aos funcionários que percorriam o bar, às garçonetes que deixavam seus números com ele, e o olhavam o tempo todo de soslaio, ou à televisão exibindo um explorador das matas que ele havia esquecido o nome. Era tudo igual, exceto por esse simples e excepcional detalhe, Lester estava sozinho. Charles, seu  único amigo, seu irmão mais próximo, havia, semanas atrás, sido retalhado por uma... Coisa... Essa bebedeira não era de comemoração, era uma bebedeira crua e angustiante, um brinde solitário ao Charles, que morreu lutando bravamente, sem lágrimas, porque ele não gostaria que fosse assim.

— Seu desgraçado... — Lester murmurou, olhando de soslaio para o banco onde Charles sempre se sentava após os seus trabalhos serem concluídos. Eu morreria em batalha e você ia cometer suicídio no meu funeral, foi isso que combinamos... Ele pensou, lembrando-se de mais uma das brincadeiras feitas pelo amigo... 

Um som alto se fez, como vidro se estilhaçando. Lester desviou o olhar para o local, notando a pequena balbúrdia que se fez ali em instantes, o velhote do pano sobre o ombro se empertigou e foi mancando em direção do canto superior esquerdo das prateleiras, era onde ele escondia a sua calibre doze, a qual usava para afugentar arruaceiros. Dois homens brigavam, e suas vozes, iam aos poucos se elevando e se tornando mais incômodas e ruidosas, superando o jazz que tocava em som ambiente. 

— Qual é o seu problema?! O que você usou antes de vir pra cá, porra?! — um dos ex militares, um rapaz de bigode e cabeça raspada, perguntou ao berros, empurrando um velho mendigo pra longe de si.

— Está chegando, está chegando, você não entende?! — O velho homem berrava, levando as mãos à cabeça e apertando-a.

— O que tá chegando?! 

— Que viagem de ácido... 

Lester o observou com uma expressão calma, concluiu que, de fato, aquilo não passava de alguma droga que foi muito mal processada pelo organismo fodido daquele homem. Seu olhar, no entanto, quase que instintivamente, alçou um outro ponto do salão, atraído por um reflexo tão involuntário que quase lhe foi como uma miragem, alguém que estava ali, tão isolado quanto ele, em um extremo oposto do ambiente, quase que oculto pela brecha obscura deixada pela meia luz neon que circundava as laterais do local. Um homem observava tudo, sua expressão era de raiva e desprezo, alto, cabelos grisalhos e um rosto fodidamente anguloso, vestia-se de forma elegante... Era um padrão de aparência que lhe era familiar, familiar até demais. Ele se levantou para ir em direção do sujeito, as mãos se fechando em punhos, mas entre as ondulações que se faziam devido à sua "pequena" embriaguez, o indivíduo desapareceu... Lester observou o ponto vazio com o cenho franzido; deixando que o ar saísse de seus pulmões em um suspiro, feria sido sua imaginação?  Teria sido um fantasma de suas memórias de guerra vindo para o atormentar depois de tudo que viveu? Ele pagou a conta, pegou a sua garrafa de whisky e foi caminhando em direção da saída, já tinha tido demais por um só dia. Enquanto os bêbados e militares brigavam com aquele mendigo, começando uma troca de socos, o velhote do bar os circundava em pulos laterais, como um macaco, lhes apontando a espingarda e gritando com sua voz ruidosa, que mais parecia um rugido: 

— Vocês aí, parem com isso, eu vou meter bala!!! 

Obviamente, evitou a troca de socos e as ameaças de disparos que vinham de todos os lados agora. Lester, apesar de bêbado, agilmente livrou a cabeça de uma garrafa quebrada que veio voando, perdida do meio da balbúrdia. E finalmente se via do lado de fora, golpeado pela brisa da noite. Ali, no estacionamento, os carros dos militares e as motos dos motoqueiros dividiam espaço, e um pouco mais próxima da entrada, distante dos outros automóveis, o seu Mustang GT 5.0 brilhava sob a luz do luar. Era uma herança, a última aquisição feita pelo seu amigo, antes do fim trágico... 

— É um monstro!! — o grito seco irrompeu a noite como um som de ossos se quebrando, veio lá de dentro, e foi uma fala que, pela sua mente treinada para isso, se destacou das demais, pessoas vinham correndo e atravessando as portas aos berros, alguns até mesmo pareciam chorar enquanto esbarraram nele e o faziam cambalear um pouco. Lester sacou a sua Glock, se virando novamente e chutando as portas do bar em um estrondo, ainda que fosse engano, ainda que não fosse nada, ele não conseguia dar as costas e seguir seu caminho... 

Lá dentro, a visão que teve, fez com que todos os seus músculos se retesassem e seu corpo se preparasse para um embate imediato. A coisa ergueu o pescoço e lançou um olhar em sua direção, dois rubis vermelhos que cintilavam na meia luz; os dentes, por onde sangue e saliva escorriam em um único fluxo, eram grossos e desalinhados, o rosto distorcido em traços licantropos, com pelos irregulares sob o queixo e nas laterais. O mendigo de antes; uma espécie de lobisomem da montanha, mais feio e mais carniceiro que os seus semelhantes, devorava um dos soldados quando foi surpreendido pelo som da porta se estilhaçando. As pessoas ainda gritavam em pânico, e o velhote do bar, se aproveitando da brecha, disparou com a espingarda, fazendo com que o mendigo lobisomem fosse jogado pra trás e se chocasse em cadeiras por ali. Um gruindo gorgolejante em sua garganta, e um silêncio que caiu após isso, depois que todos se foram. Balas comuns não eram suficientes, Lester precisava finalizar o monstro com uma bala de prata, e apontou para ele com sua Glock, mas a criatura pareceu sentir o perigo, se erguendo em um solavanco, enquanto as balas da espingarda eram ejetadas do seu corpo como moedas amassadas. Sua investida contra Lester o jogou para trás em um solavanco, ele voou, soltando um gruindo seco de dor e se chocando contra o próprio carro a alguns metros em um baque surdo.

Sua consciência, que já não era das melhores, ameaçou se apagar agora, com o forte baque que recebeu ao ser empurrado em uma distância de mais de dois metros como um manequim. Disputar força com aquelas coisas era inútil. Sua arma, caiu longe, mas ele, não poderia ter caído em um ponto melhor, o lobisomem se virou para aquele que mais havia lhe causado dor, o dono do bar, sendo sua prioridade de vingança nesse momento... Lester cerrou os dentes, era uma ótima oportunidade de concluir o trabalho. Ele se levantou, sentindo as pernas fraquejarem e soltando um palavrão enquanto se apoiava no carro, abriu o porta-malas e já enfiou a mão em meio às ferramentas que guardava ali, perfeitamente alinhadas em suas devidas definições. 

— Já que você é tão valentão... — ele grunhiu para si mesmo, com a voz espremida pela dor, referindo-se ao monstro.

Quando o lobisomem havia se assomando sobre o corpo do bartender, que apenas arregalava os olhos enrugados e clamava em espanhol por uma tal "madre de Dios", Lester puxou o cabelo ralo do mendigo para trás, livrando o pescoço do velhote de sua mordida e gerando um som de dentes se batendo. Nisso, o pescoço do monstro era que estava vulnerável, e sem esperar uma reação do lobisomem, ele atingiu um golpe limpo com o seu facão de Ósmio. A cabeça girou no ar e caiu aos chãos, junto ao corpo que tombou imóvel, deixando um sangue enegrecido escorrer caudalosamente sobre o velhote... 

— Santa... Santa mãe de Deus... — murmurou o dono do bar, trêmulo e em choque, as pessoas, todas elas, sem excessão, já haviam fugido dali pelas janelas e saídas de emergência — O que era essa coisa?... 

— Lobisomem — Lester disse impaciente, limpando a folha do facão nas roupas do mendigo e guardando novamente em sua bainha de couro.

— Isso é ... impossível...

— É bem possível — ele respondeu, meneando a cabeça.

— Quando... O eclipse começar... — a voz surgiu, fazendo um frio subir pela espinha de Lester, que olhou na direção da cabeça decepada — Os vampiros... Se tornarão como deuses... O fim está próximo... — a voz rouca e gorgolejante soou daquela cabeça, palavras macabras e agorentas.

— Santa mãe de Deus, Santa mãe de Deus!!! — gritou o velhote, bolando e correndo pra longe daquela coisa.

— Tá legal... Essa é nova — Lester murmurou, olhando preocupadamente para aquela cabeça de onde escorria sangue, agora, sem nenhum sinal de vida...

 

 

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Comments

Geilza Maria Silva

Geilza Maria Silva

o homem lindo da poxa

2024-09-03

0

Mari Silva

Mari Silva

/Facepalm//Facepalm//Facepalm//Facepalm//Facepalm/ vixe parece um filme de terror /Chuckle/

2024-08-13

0

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