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Querido Caçador

prólogo

Lester deixou que o whisky descesse garganta a dentro, pousando ruidosamente o copo sobre o balcão de madeira maciça. O mundo à sua volta, já começava a mostrar leves e ternas ondulações, como miragens no deserto, enquanto sua mente fugia do colapso no qual havia se atirado após os eventos terríveis que teve de vivenciar. Aquele era um local puro, ao menos, em sua concepção, tão puro quanto um caçador acostumado a ver sangue e tripas era capaz de conceber. Redsky, um pequeno bar localizado na U.S Rote 2, pouco antes da cidade de Bethel, no Maine, sua terra natal; havia o frequentado em todas as suas comemorações, junto ao Charles, seu irmão mais próximo na irmandade; um lobisomem decapitado em São Francisco, uma górgona queimada em ruínas, próximas da fronteira do México, um ninho de vampiros que foram degolados em uma noitada de sangue e vísceras, e um grupo de coisas que se escondiam nas montanhas, lembrava-se como Charles apontava com sua espingarda e dizia que aquilo era quase como caçar aves exóticas. Ele fez uma piada semelhante quando atingiu um lobisomem no peito com uma bala de prata, como se as pessoas andassem caçando aves e lobos por aí. Depois desse, ele parou de contar, parou de se importar se eram um ou um milhão de monstros que morriam. 

— Trás mais uma aí, meu camarada — ele disse, dosando o tom de voz, quando o velhote passou próximo a ele, do outro lado do balcão. O mesmo velho de sempre, com o mesmo rabo de cavalo e o bigodão lustroso, com um avental surrado um pano de prato sobre o ombro.

— Tá — disse o homem, pegando a garrafa de Jack Daniel's no balcão e servindo o copo.

— Deixa a garrafa aí, o que sobrar, vai pra viagem — Lester murmurou preguiçosamente, vendo o homem dar de ombros e deixar a garrafa sobre o balcão. Frequentava ali a tanto tempo, e nunca perguntou o nome do velhote, que também era alguém de poucas palavras, passou a chama-lo de velhote e o apelido foi bem recebido.

Não que a sua pinta de homem social fosse suficiente para esconder o ar mordaz que rastejava sob a pele de Lester, as roupas sociais, agora, um tanto desleixadas, o blazer e o rosto que mais parecia ter saído de uma novela; nada disso ocultava o horror que se escondia por trás dos seus olhos; alguns diriam que era um fuzileiro que voltou de uma guerra terrível, outros, diriam que já esteve em alguma das prisões consideradas como verdadeiros infernos no Arizona, mas não, quem olhasse bem para aqueles olhos cinzentos que, ao contrário do resto do rosto, eram prematuramente envelhecidos, saberia que o tipo de horror que ele trazia consigo, o tipo de maldade a qual vinha presenciando, não poderia ser causada por homens. Aquele bar estava cheio de brutamontes, uma gangue de motoqueiros com barbas trançadas e jaquetas de couro, um grupo de traficantes de metanfetamina que, pelos seus aspectos, provavelmente usavam tanto quanto vendiam a coisa. Uns arruaceiros aqui e ali, e alguns soldados que voltaram da guerra e agora eram nada mais que farrapos em busca de problemas. Lester estava sozinho...

Sim, não havia diferença daquele lugar para o que ele estava acostumado a ver, desde os quadros de bombeiros e times de baseball pendurados na parede de tijolos, aos funcionários que percorriam o bar, às garçonetes que deixavam seus números com ele, e o olhavam o tempo todo de soslaio, ou à televisão exibindo um explorador das matas que ele havia esquecido o nome. Era tudo igual, exceto por esse simples e excepcional detalhe, Lester estava sozinho. Charles, seu  único amigo, seu irmão mais próximo, havia, semanas atrás, sido retalhado por uma... Coisa... Essa bebedeira não era de comemoração, era uma bebedeira crua e angustiante, um brinde solitário ao Charles, que morreu lutando bravamente, sem lágrimas, porque ele não gostaria que fosse assim.

— Seu desgraçado... — Lester murmurou, olhando de soslaio para o banco onde Charles sempre se sentava após os seus trabalhos serem concluídos. Eu morreria em batalha e você ia cometer suicídio no meu funeral, foi isso que combinamos... Ele pensou, lembrando-se de mais uma das brincadeiras feitas pelo amigo... 

Um som alto se fez, como vidro se estilhaçando. Lester desviou o olhar para o local, notando a pequena balbúrdia que se fez ali em instantes, o velhote do pano sobre o ombro se empertigou e foi mancando em direção do canto superior esquerdo das prateleiras, era onde ele escondia a sua calibre doze, a qual usava para afugentar arruaceiros. Dois homens brigavam, e suas vozes, iam aos poucos se elevando e se tornando mais incômodas e ruidosas, superando o jazz que tocava em som ambiente. 

— Qual é o seu problema?! O que você usou antes de vir pra cá, porra?! — um dos ex militares, um rapaz de bigode e cabeça raspada, perguntou ao berros, empurrando um velho mendigo pra longe de si.

— Está chegando, está chegando, você não entende?! — O velho homem berrava, levando as mãos à cabeça e apertando-a.

— O que tá chegando?! 

— Que viagem de ácido... 

Lester o observou com uma expressão calma, concluiu que, de fato, aquilo não passava de alguma droga que foi muito mal processada pelo organismo fodido daquele homem. Seu olhar, no entanto, quase que instintivamente, alçou um outro ponto do salão, atraído por um reflexo tão involuntário que quase lhe foi como uma miragem, alguém que estava ali, tão isolado quanto ele, em um extremo oposto do ambiente, quase que oculto pela brecha obscura deixada pela meia luz neon que circundava as laterais do local. Um homem observava tudo, sua expressão era de raiva e desprezo, alto, cabelos grisalhos e um rosto fodidamente anguloso, vestia-se de forma elegante... Era um padrão de aparência que lhe era familiar, familiar até demais. Ele se levantou para ir em direção do sujeito, as mãos se fechando em punhos, mas entre as ondulações que se faziam devido à sua "pequena" embriaguez, o indivíduo desapareceu... Lester observou o ponto vazio com o cenho franzido; deixando que o ar saísse de seus pulmões em um suspiro, feria sido sua imaginação?  Teria sido um fantasma de suas memórias de guerra vindo para o atormentar depois de tudo que viveu? Ele pagou a conta, pegou a sua garrafa de whisky e foi caminhando em direção da saída, já tinha tido demais por um só dia. Enquanto os bêbados e militares brigavam com aquele mendigo, começando uma troca de socos, o velhote do bar os circundava em pulos laterais, como um macaco, lhes apontando a espingarda e gritando com sua voz ruidosa, que mais parecia um rugido: 

— Vocês aí, parem com isso, eu vou meter bala!!! 

Obviamente, evitou a troca de socos e as ameaças de disparos que vinham de todos os lados agora. Lester, apesar de bêbado, agilmente livrou a cabeça de uma garrafa quebrada que veio voando, perdida do meio da balbúrdia. E finalmente se via do lado de fora, golpeado pela brisa da noite. Ali, no estacionamento, os carros dos militares e as motos dos motoqueiros dividiam espaço, e um pouco mais próxima da entrada, distante dos outros automóveis, o seu Mustang GT 5.0 brilhava sob a luz do luar. Era uma herança, a última aquisição feita pelo seu amigo, antes do fim trágico... 

— É um monstro!! — o grito seco irrompeu a noite como um som de ossos se quebrando, veio lá de dentro, e foi uma fala que, pela sua mente treinada para isso, se destacou das demais, pessoas vinham correndo e atravessando as portas aos berros, alguns até mesmo pareciam chorar enquanto esbarraram nele e o faziam cambalear um pouco. Lester sacou a sua Glock, se virando novamente e chutando as portas do bar em um estrondo, ainda que fosse engano, ainda que não fosse nada, ele não conseguia dar as costas e seguir seu caminho... 

Lá dentro, a visão que teve, fez com que todos os seus músculos se retesassem e seu corpo se preparasse para um embate imediato. A coisa ergueu o pescoço e lançou um olhar em sua direção, dois rubis vermelhos que cintilavam na meia luz; os dentes, por onde sangue e saliva escorriam em um único fluxo, eram grossos e desalinhados, o rosto distorcido em traços licantropos, com pelos irregulares sob o queixo e nas laterais. O mendigo de antes; uma espécie de lobisomem da montanha, mais feio e mais carniceiro que os seus semelhantes, devorava um dos soldados quando foi surpreendido pelo som da porta se estilhaçando. As pessoas ainda gritavam em pânico, e o velhote do bar, se aproveitando da brecha, disparou com a espingarda, fazendo com que o mendigo lobisomem fosse jogado pra trás e se chocasse em cadeiras por ali. Um gruindo gorgolejante em sua garganta, e um silêncio que caiu após isso, depois que todos se foram. Balas comuns não eram suficientes, Lester precisava finalizar o monstro com uma bala de prata, e apontou para ele com sua Glock, mas a criatura pareceu sentir o perigo, se erguendo em um solavanco, enquanto as balas da espingarda eram ejetadas do seu corpo como moedas amassadas. Sua investida contra Lester o jogou para trás em um solavanco, ele voou, soltando um gruindo seco de dor e se chocando contra o próprio carro a alguns metros em um baque surdo.

Sua consciência, que já não era das melhores, ameaçou se apagar agora, com o forte baque que recebeu ao ser empurrado em uma distância de mais de dois metros como um manequim. Disputar força com aquelas coisas era inútil. Sua arma, caiu longe, mas ele, não poderia ter caído em um ponto melhor, o lobisomem se virou para aquele que mais havia lhe causado dor, o dono do bar, sendo sua prioridade de vingança nesse momento... Lester cerrou os dentes, era uma ótima oportunidade de concluir o trabalho. Ele se levantou, sentindo as pernas fraquejarem e soltando um palavrão enquanto se apoiava no carro, abriu o porta-malas e já enfiou a mão em meio às ferramentas que guardava ali, perfeitamente alinhadas em suas devidas definições. 

— Já que você é tão valentão... — ele grunhiu para si mesmo, com a voz espremida pela dor, referindo-se ao monstro.

Quando o lobisomem havia se assomando sobre o corpo do bartender, que apenas arregalava os olhos enrugados e clamava em espanhol por uma tal "madre de Dios", Lester puxou o cabelo ralo do mendigo para trás, livrando o pescoço do velhote de sua mordida e gerando um som de dentes se batendo. Nisso, o pescoço do monstro era que estava vulnerável, e sem esperar uma reação do lobisomem, ele atingiu um golpe limpo com o seu facão de Ósmio. A cabeça girou no ar e caiu aos chãos, junto ao corpo que tombou imóvel, deixando um sangue enegrecido escorrer caudalosamente sobre o velhote... 

— Santa... Santa mãe de Deus... — murmurou o dono do bar, trêmulo e em choque, as pessoas, todas elas, sem excessão, já haviam fugido dali pelas janelas e saídas de emergência — O que era essa coisa?... 

— Lobisomem — Lester disse impaciente, limpando a folha do facão nas roupas do mendigo e guardando novamente em sua bainha de couro.

— Isso é ... impossível...

— É bem possível — ele respondeu, meneando a cabeça.

— Quando... O eclipse começar... — a voz surgiu, fazendo um frio subir pela espinha de Lester, que olhou na direção da cabeça decepada — Os vampiros... Se tornarão como deuses... O fim está próximo... — a voz rouca e gorgolejante soou daquela cabeça, palavras macabras e agorentas.

— Santa mãe de Deus, Santa mãe de Deus!!! — gritou o velhote, bolando e correndo pra longe daquela coisa.

— Tá legal... Essa é nova — Lester murmurou, olhando preocupadamente para aquela cabeça de onde escorria sangue, agora, sem nenhum sinal de vida...

 

 

O conselho

Em dias como aquele, Blackvalley se tornava um local estranhamente sombrio. A população de aproximadamente quarenta e dois mil habitantes, a formação de basicamente duas avenidas ao norte do rio Dean, com uns quatro bairros minúsculos com prédios que não passavam de quatro andares e a diversão local dividida entre igrejas católicas e bares mequetrefes. A cidade estava localizada após os pomares de macieiras dos Karsteins, em meio à densa floresta de pinheiros. Não dava para dizer que Blackvalley era uma cidade muito presente nos mapas da Inglaterra, alguns chegavam até a desconsiderar a sua existência, categorizando-a simplesmente como mais uma fatia da propriedade dos Karsteins, muito presentes e influentes no local.

Qualquer um que fosse na rua naquele dia, veria a frota de veículos caros, com vidros fumês que ocultavam seus respectivos passageiros; liderando a "marcha", um Jaguar F-type completamente negro irrompia através do asfalto. Dois garotos brincando na rua, tiveram de correr e pular para fora do caminho, caso contrário, teriam sido esmagados como insetos.

Delta ficou um pouco surpresa quando notou os automóveis estacionando no grande pátio à frente da mansão. Eram mais do que da última vez, na última reunião que tiveram com todos os membros do alto conselho. Ela manteve a expressão séria, como de costume, enquanto desviava o olhar para a porta espelhada do grande armário de carvalho da cozinha. Não havia motivos para se produzir, exceto em situações como aquela, os jantares do alto conselho, liderado pelo seu pai, Alphonse Karstein. O vestido negro e o sobretudo azul com laços e enfoques de ouro, tal qual o colar de pérolas negras que pesava em seu pescoço, eram nada mais do que uma variação mais apresentável da forma como ela sempre se vestia. Seus olhos tinham um brilho azul quando vistos em um ambiente de pouca iluminação como aquele, que combinavam com os tons que escolheu para as suas roupas. Os cabelos de um castanho escuro avermelhado, onde usava de uma franja, eram como uma extensão de seu vestido...

— Elisabeth! — A voz de Alphonse soou alta, chamando Delta pelo seu verdadeiro nome (ele odiava apelidos) enquanto ele descia as escadas, ajustando a sua gravata carmesim. O terno bem como o colete e a camisa que usava por baixo, era completamente negro, sendo aquela gravata como uma cascata de magma em meio à escuridão. Alphonse já não ficava tempo algum ali na mansão, faziam anos que ele comparecia apenas para eventos como esse.

— Pai — ela fez um gesto respeitoso de cabeça.

— Onde está a sua irmã? Eu não a vi desde que cheguei, por acaso ela se esqueceu do compromisso? — ele perguntou, áspero e seco como de costume.

— Eu não sei... Tenho certeza que ela não vai demorar — Delta disse em defesa da irmã, ela sabia melhor do que ninguém o quanto Lenna apreciava aquelas reuniões, assim como ela, eram o único tipo de socialização que a irmã tinha nesse mundo, uma vez que era ainda mais reclusa que a própria Delta.

— E a Maria, está dormindo? — perguntou Alphonse, já no salão principal.

— Está...

— Bom dia, vossa excelência — murmurou Duque no momento em que chegou na sala; seus dois metros de altura, com os ombros duas vezes mais largos que os de um homem comum, faziam duque parecer uma parede de terno. Ele fez uma reverência a Alphonse, que o dispensou com um gesto desdenhoso.

Duque foi quem atendeu a porta, recepcionando os convidados que foram entrando um a um e deixando seus guarda chuvas encima dele como se fosse um cabide gigante. Parte do motivo pelo qual Delta odiava os vampiros do alto conselho, era pelo modo como tratavam Duque, que, na prática, havia assumido um papel de pai em sua vida, diferente de Alphonse. Lenna, sua irmã, não tinha essa mesma visão; mas a Maria, se pudesse falar, com certeza concordaria com ela. Desde literatura clássica, até jogos de tabuleiro, e mais recentemente, músicas e itens dessa tal "Cultura pop" que entrou em acessão no último século; tudo havia sido apresentado a elas por Duque, que era o braço direito de seu pai, e aquele que cuidava delas na ausência dele, ou seja, noventa e nove por cento do tempo; mesmo sendo tratado como um capacho pelos membros do conselho, o grandalhão sorria gentilmente e acenava para eles, até recebendo algumas respostas, mas sendo ignorado em cerca de setenta por cento dos casos.

— Vou te ajudar — ela disse calmamente, pegando três dos guarda chuvas molhados que foram jogados sobre ele.

— O que acha disso aí? Pelo rosto de vossa excelência, é coisa séria — Duque murmurou, movendo as sobrancelhas na medida em que olhava de soslaio para os membros se afastando ao salão de reuniões, daquela forma expressiva que era tão comum dele.

— Eu não sei... — ela disse, mantendo a mesma expressão de sempre. Em outra ocasião, ele lhe dissera que ela era uma "minhoca morta", já que dificilmente demonstrava o que estava sentindo, mas isso era mais um meio de alto defesa, cada uma das filhas Karsteins tinha o seu próprio mecanismo de defesa. Lenna, era a raiva que parecia estar sempre sentindo, somada às suas exageradas demonstrações de poder e superioridade; Delta, era a indiferença quase mórbida presente em seus aspectos, Maria, ou Picle (apelido dado a ela), simplesmente se fechou para o mundo, e não falava absolutamente nada, nem uma palavra, mesmo que já fosse uma garota de doze anos...

Uma vez reunidos no grande salão, a primeira coisa que Delta reparou, foi a ausência de sua irmã, isso era extremamente incomum, e lhe trouxe uma onda de preocupação. Mas não teve muito tempo para pensar nisso, os rostos sérios e impacientes dos membros do conselho insistiam em ocupar o foco das preocupações. Nas cadeiras à esquerda, os membros do continente Americano, vampiros versados em capturar humanos em todos os ambientes, desde as florestas tropicais na América do sul, até os mares do caribe e o oceano atlântico, agindo como piratas que sequestravam navegadores em pleno mar. Na direita, eram os europeus, vampiros mais cordiais, usando roupas mais chiques e com uma necessidade maior de mostrarem suas supostas superioridades étnicas. Eram eles quem mais destratavam o Duque, por conta da sua cor de pele. Nesse caso, não sujavam tanto suas mãos, focando em contrabando de bolsas de sangue e sumiço de prisioneiros condenados à morte, os quais rapidamente se tornavam vinhos tintos para vampiros. Não que a selvageria fosse menor, era apenas... Mais ocultada.

— Creio que... Já estão todos cientes do que vem sendo falado ultimamente no continente americano — Alphonse começou, atraindo imediatamente o foco de todos — Aqueles selvagens das montanhas, e seus deuses pagãos, mais uma vez, se colocam no caminho da nossa espécie.

— Creio que se refere às tais profecias que vem enlouquecendo os lupinos do sul; bem, detesto informar, mas elas já chegaram aqui na Europa também — um dos homens murmurou, Sinatra, aquele que dirigia o Jaguar, e que, na ausência de Alphonse, comandava o conselho.

— Já estou ciente, e logo vou enviar um grupo de ação para calar esses boatos, a última coisa de que precisamos, é de humanos e outras coisas xeretando os nossos planos — Alphonse disse, sua voz era como o ronronar de uma fera, baixo, tranquilo até, mas estranhamente mordaz.

— Planos, você diz — disse um dos tais "piratas" do oceano atlântico, Grisaldo, um homem de bigode imponente e olhos vorazes — Pelo que ouvi dizer, os lupinos andam por aí falando em eclipse eterno, como se algo assim fosse possível...

— Um eclipse eterno, não parece o paraíso para a nossa espécie? — Alphonse perguntou calmamente.

— S-sim... Mas...

— Elisabeth — Alphonse chamou por Delta, que apenas olhou para ele com uma expressão de dúvida — Um eclipse total e eterno; seria ou não uma vantagem aos vampiros? 

Delta ficou um pouco surpresa com a pergunta, normalmente, ele chamava por Helena, mas como ela estava ausente pela primeira vez, Delta foi o alvo dos seus pedidos de afirmação.

— Seria uma grande vantagem — ela respondeu em um assentir, notando os olhares que caíram sobre si, não fazia isso com a mesma naturalidade da irmã.

— E isso é possível? — alguém ali perguntou, mas ela não viu quem foi.

— Não só é possível... Vai acontecer — Alphonse disse, e atmosfera do local, que já não era das mais tranquilas (nunca foi), se tornou duas vezes mais pesada. Os membros do grupo europeu não demonstram nenhuma surpresa, ao contrário de seus "amigos" americanos, que pareceram todos atônitos, quase como se tivessem sido atingidos por bofetadas invisíveis.

— Me perdoe a minha ousadia, mas estamos confiando em profecias feitas por selvagens que devoram vísceras? Como exatamente isso seria possível? — Grisaldo perguntou, a descrença e o desdém em sua voz, atraindo um olhar zangado de Alphonse.

— Acredita que eu os convocaria de seus afazeres para uma reunião urgente e sigilosa por conta de boatos falados por lupinos das montanhas? Tente de novo, Grisaldo... — Alphonse disse, e a intimação foi bem clara pelo tom de voz.

— Não senhor...

— O nosso conselho tem, agora, as chaves que podem abrir as portas para uma nova era... Mas para que isso funcione, vou precisar que cada um de vocês fique de prontidão, e venham até mim no momento em que eu os chamar... — prosseguiu o seu pai, implacável e sórdido como de costume — Posso contar com todos vocês? 

Acenos e olhares de concordância irromperam o silêncio após suas palavras. Delta não pôde deixar de reparar em como o seu pai a olhava de soslaio, como se esperasse um sinal vindo de sua parte. Ela assentiu, embora suas entranhas ardessem de antecipação com o que poderia estar sendo tramado ali; ela não fazia ideia do quão longe Alphonse poderia ir em prol do borbulhante ódio que sentia pela espécie humana; isso, e o fato que aquele homem, seu bruto e carrasco pai, que mantinha todos aqueles burocratas e criminosos sob o seu pesado julgo, com seus mais de setecentos anos de idade, era o unigênito do Drácula; o rei definitivo e inegável de sua espécie.

A guardiã

Delta observou a face de Alphonse se alterando e tornando-se mais intimidante no momento em que Lenna entrou pelas portas duplas da mansão. O conselho havia acabado de se retirar, e no momento, a família, com exceção de Picle, estava toda reunida na sala de estar. O caminhado firme e resoluto de sua irmã, que era sem muita elegância e até um pouco masculino de um certo modo, não se abalou diante do olhar incisivo que era lançado pelo pai, pelo contrário, ela o fitou com igual intensidade, com seus olhos de esmeraldas brilhantes. Lenna era como uma versão diminuta da própria Delta, embora fosse a mais velha das três, ela era somente um pouco mais alta que Picle (ou seja, tinha um metro e meio), seus cabelos eram curtos em um "quase Channel", e naquele momento, como em todos os outros, usava de roupas negras, sendo um vestido com decote quadrado. Justo o suficiente para conseguir desenhar as escassas curvas de seu corpo delgado. 

— Será que pode me dizer o motivo de não ter comparecido à reunião de hoje? — Alphonse perguntou uma vez que se viu frente a frente com sua primogênita.

— Estava ocupada — Lenna disse, cruzando os braços, sem nenhum sinal de submissão ou apreensão em relação ao pai.

— Que ocupação poderia ser mais urgente do que as prioridades da sua própria espécie? 

— O que? Reunir um monte de velhos em uma sala e discutir sobre planos que os súditos deles vão colocar em ação? — Lenna retrucou, tão ácida e desdenhosa como de costume.

— Olhe como fala! — ele ergueu a voz.

Delta e Duque não se atreviam a se meter quando os dois começavam, isso, de uns anos pra cá, se tornou algo bem frequente nas tais "reuniões de família". Talvez, quando os poderes de Lenna se mostraram superiores aos de Alphonse, talvez um pouco antes; ela perdeu completamente o medo que já teve por ele algum dia, e um sentimento novo parecia ter surgido, algum tipo de proteção pelas suas irmãs... 

— Quer saber onde eu estava? — ela perguntou, sorrindo de um jeito desafiador que exibia suas presas, então, enfiou a mão em um dos bolsos do seu vestido, erguendo-a e deixando que as peças flutuassem dali com o poder da sua mente. 

— Isso... — Delta murmurou, tentando focar a visão, e um segundo depois, percebeu do que se tratava. Flutuando ali, haviam oito caninos de licantropos, com suas pontas brancas como a neve, e as bases ainda machadas de sangue. 

— O que você andou fazendo, Helena? — Alphonse perguntou, depois de observar como flutuavam os caninos dos lobos. Após a sua pergunta, todos eles desceram subitamente ao controle de Lenna, cravando-se no centro de carvalho que havia ao lado de ambos, o som de cada um dos caninos caindo consecutivamente foi como de uma metralhadora disparando.

— O que você acha, hein? Estava caçando os linguarudos que andam rondando a nossa propriedade e soltando essas "profecias" ridículas por aí — ela respondeu.

— Você estava causando alarde e atraindo atenção de caçadores ... — Alphonse disse, sua voz mudando e se tornando mais sombria, ele deu um passo na direção de Lenna, mas pensou duas vezes e parou.

— O que? Acha que eu não sou boa o bastante pra lidar com um bando de humanos? — perguntou Lenna, claramente ofendida pelas palavras do pai.

— Eu sugiro que você seja mais cuidadosa, Helena, em todas as suas ações; está andando em uma linha fina... 

Pelo rosto dela, com certeza havia uma resposta na ponta da língua, mas Lenna apenas ergueu o queixo em um sinal de afronta, como fazia quando não queria mais discutir com alguém, então, soltou um "Humf", e foi se retirando da sala a passos firmes. Antes de subir as escadas, ela desviou brevemente o olhar para Delta. 

— Já vou indo... Tenho muito o que resolver, e não tenho tempo para essa revolta infantil — Alphonse murmurou; caminhando em direção da saída, o sol já havia se posto, e seu poder estava a todo vapor agora.

— Até a próxima reunião, pai — Delta disse calmamente.

— Até logo, vossa majestade — Duque disse.

 Sem dizer mais nada e como vapor, Alphonse se desfragmentou, e as suas partículas, se movendo através das sombras, desapareceram diante dos olhos dos dois.

— E lá vai ele de novo...— Duque murmurou...

 Delta observou tudo em silêncio como sempre fazia. Ela havia sido, irremediavelmente, durante toda a sua vida, um pilar entre um pai exigente e sem um pingo de amor no coração, e uma irmã mais velha instável e excessivamente ciumenta. Ela amava ambos, e temia a ambos na mesma medida. 

 Podia se lembrar, tão claramente quanto o céu leitoso que se fixava sobre suas cabeças em dias de outono, da época em que conheceu Soren, filho mais velho de Rahgar, um dos principais membros do lado direito da mesa e velho amigo de Alphonse. Era um rapaz alto, de cabelos negros como a noite, costumava visitar as reuniões junto do pai desde de bem jovem, antes que, muito tempo depois, os sistemas de tráfico de sangue na Dinamarca o levassem para novos mares. Soren era praticamente da mesma idade de Delta, além de partilhar de interesses e um senso de humor altamente específico, e aos fins de reuniões, conversava com ela durante algumas horas, enquanto seus pais, sozinhos, bebiam vinhos das safras de 70 com gotas de O negativo pela madrugada a dentro. Eram boas lembranças, eles se davam bem, e embora seu sentimento por Soren fosse algo mais relacionado a um tipo de irmandade, com o tempo, a atenção recebida (que era rara principalmente vinda de garotos) e o claro interesse amoroso que ele tinha por ela, fez com que seus sentimentos ficassem um tanto confusos; na época, ela não saberia explicar os motivos ou como exatamente isso surgiu em seu peito, mas havia criado uma mistura de sentimento amoroso e fraterno por Soren, e isso germinou e cresceu com o passar dos anos em que interagiam ali, sempre no grande sofá escarlate que contrastava com a madeira negra do piso central da mansão Karstein.

Quando esse sentimento se tornou grande e difícil de esconder, eles passaram a namorar escondidos. Um beijo foi trocado no sofá, simples e sem luxúria alguma, e selou o início da relação. Mais tarde, ela viria a sentir seu lábio inferior cortado pela presa de Soren, o qual era desajeitado para beijar devido à sua clara falta de experiência. Tudo isso azedou um belo dia, quando Soren a convidou para sair em um evento de humanos. O ano era 1945; os humanos, tolos, travaram uma terrível e avassaladora guerra contra a própria espécie. Soren teve a ideia de sair com ela pela cidade, às escondidas de seus pais, para que pudessem ver os fogos de artifício e a enorme comemoração que o povo de Blackvalley fazia em celebração ao retorno de seus filhos, pais e irmãos que retornavam dos territórios alemães. 

O passeio não teve nada demais, foi agradável e calmo, o que ambos não sabiam, era que havia um caçador de monstros em seu encalço, eles quase foram mortos por sua ingenuidade. Se fosse Rahgar, ou mesmo Alphonse quem tivesse dado cabo do humano e os encontrado, a situação teria sido menos desastrosa, mas foi Lenna quem chegou lá, logo depois de eles entrarem em um beco para sumir da vista dos humanos e poderem retornar à propriedade... Em seu vestido negro, com uma fenda na altura da coxa, o sangue do caçador formava manchas que se mesclavam ao tecido, o qual ondulava, como se estivesse sob a água, em contato com a energia que emanava de Lenna, os passos eram firmes, como sempre, o olhar dela era de um ódio tão gutural, que a sensação avassaladora, de fato, era como estar submersa nas águas. Delta ainda teve forças pra falar, mas Soren ficou paralisado de medo... 

— L-Lenna — ela tentou apelar, mas foi em vão. Com um aceno de mão que pareceu calmo, Lenna lançou Soren para longe usando o poder da mente. Ele bolou pelos chãos em grunhidos de dor, até se chocar com um latão de lixo em um baque metálico que assustou um grupo de gatos, os quais correram em todas as direções.

— Lenna! — Delta tentou de novo, mas Lenna fez algo com ela, erguendo a mão em sua direção e a prendendo bem onde estava, com um campo de força invisível.

— Se você se aproximar da minha irmã mais uma vez... — Lenna murmurava conforme caminhava na direção de Soren, seu salto alto gerando estalos no chão. Ao chegar perto, ela ergueu a mão, fechando-a, e fez com que o sangue dele escorresse pelas narinas e orelhas, enquanto seu rosto se distorcia em uma expressão de dor, e um horrendo gemido abafado se fazia, as veias dele todas saltadas sob a pele...

— Lenna, para, por favor, não foi culpa dele!! —Delta gritava em lágrimas, mas não adiantava.

— eu mato você, ouviu? — Lenna emendou, sua expressão era obscura, permeada pelo mais puro ódio... quando soltou Soren de seu domínio, ele jurou de joelhos que jamais se aproximaria de Delta. Dito e feito...

Desde então, ela não teve mais nenhum namorado... 

 

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