15

[ TESSA ] Eu estava pendurando o caban azul-marinho de Frank e o xale rosa e felpudo de Ruby no cabideiro da entrada de casa quando Nick chegou voando pela porta lateral como se estivesse tentando recuperar alguns dos minutos perdidos de suas duas horas de atraso. Não nos falamos o dia todo, com exceção de três mensagens de celular. A primeira fui eu que mandei, perguntando-lhe que horas chegaria em casa. A segunda, uma mensagem de voz que ele mandou me dizendo que chegaria a tempo de p?r as crianças para dormir. E a terceira, uma mensagem me avisando que chegaria mais tarde do que o esperado. Felizmente, não prometi nada às crianças, ?á tinha aprendido há muito tempo que essa era uma oferta arriscada.

— Mil desculpas pelo atraso — Nick disse gravemente, dando-me um bei?o com seus lábios à esquerda de minha boca. Então tentou novamente, nossas bocas fechadas desta vez se encontraram e, nesse instante, tive a sensação inc?moda de que Nick não estava trabalhando quando me mandou a última mensagem.

Alguns podem chamar de intuição feminina, como a Cate, que usa esse termo de maneira desenfreada quando o que realmente quer dizer é que ela não é completamente cega, burra e distraída a ponto de não perceber determinados fatos óbvios, que nesta noite incluem o aroma penetrante de alho na pele e nas roupas de Nick, o tom fervoroso de suas desculpas e, principalmente, o olhar de culpa em seus olhos.

Para ser clara, não era a culpa de um homem que traíra ou mesmo tenha considerado trair. Essa nunca foi minha preocupação. Nem era a culpa de um homem que se sentia arrependido por ser um marido ausente, por perder o ?ogo de futebol de seu fi lho, não perceber o novo corte de cabelo da esposa ou ser chamado pelo hospital durante o ?antar de aniversário de casamento. A culpa no rosto de Nick, nesse momento, era mais sutil que isso, mas, mesmo assim, era inconfundível. T entei identif i cá-la, analisando-o enquanto tentava parecer indiferente, e decidi que era culpa de alguém que gostaria de estar em outro lugar.

— T udo bem — eu disse olhando em seus olhos, esperando estar enganada, ter entendido mal as pistas, tirado a conclusão errada. Esperava que Nick, na verdade, tivesse corrido por aquela porta porque sentia minha falta ou porque estava desesperado para consertar o que tinha acontecido entre nós na noite anterior, que é o que costumávamos fazer.

Então perguntei, da maneira mais despreocupada possível, removendo todas as acusações de meu rosto e de minha voz:

— O que te segurou lá?

— Ah, você sabe, as coisas de sempre — ele disse, evitando olhar em meus olhos enquanto ia até a sala de TV ainda vestindo seu casaco.

— Como o quê? — perguntei seguindo-o, pensando nas várias cenas de fi lmes em que o marido parava para tomar um drinque antes de ir para casa, sentando-se em seu lugar de costume no bar, abrindo o coração para o barman ou para qualquer um que quisesse ouvir. Ou, pior, sofrendo sozinho, guardando todos os problemas para si. De repente, me perguntei se Nick tinha problemas que não estivesse compartilhando comigo, problemas além das preocupações comuns a um cirurgião pediatra. Lembrei-me de uma noite, na semana anterior, quando olhei pela ?anela do quarto e vi Nick estacionando na nossa entrada de carros depois do trabalho. Ele estacionou o carro, mas fi cou lá dentro, olhando para a frente. Observei-o por um momento, imaginando se estava ouvindo uma música ou se estava simplesmente perdido em seus pensamentos. Qualquer que fosse o caso, era óbvio que não estava com pressa nenhuma para entrar em casa. E, quando fi nalmente entrou, exatos cinco minutos depois, e perguntei o que estava fazendo lá fora, pareceu desnorteado, como se ele mesmo não soubesse a resposta, e tinha o mesmo olhar confuso desta vez.

Então fi z a pergunta de uma maneira mais breve, arriscando-me um pouco:

— Como estava lá no Antonio’s? — perguntei sentindo novamente o cheiro de alho.

Seu silêncio era esclarecedor. Olhei para o outro lado antes que ele pudesse responder, espreitando a teia de aranha no lustre, sentindo-me constrangida por ele, por nós dois. Foi como me senti quando uma vez o peguei no meio da noite, reclinado no sofá, com a calça ?eans aberta e uma mão na virilha, gemendo silenciosamente. T entei sair de mansinho da sala de TV, sem que ele percebesse, mas tropecei em um dos brinquedos de Ruby e nós dois fomos pegos no fl agra. Ele abriu os olhos, olhou para mim e fi cou paralisado, sem dizer nada. Na manhã seguinte, quando desceu para tomar o café da manhã, eu esperava que f i zesse alguma piada sobre aquilo, mas ele não fez. O fato de meu marido se masturbar não me incomodou, mas seu silêncio em relação ao assunto fez com que eu me sentisse isolada, e não próxima dele, da mesma maneira que me sentia nesta noite.

— Estava bom.

— Então você ?á ?antou? — esclareci.

E rapidamente respondeu:

— Só comi um pouco, estava com vontade de comer lá.

— Você trouxe alguma coisa para mim? — perguntei, torcendo para que ele simplesmente tivesse se esquecido de pegar a embalagem branca no banco de trás do carro.

Estava pronta para dispensar toda a minha teoria se ele simplesmente me mostrasse a embalagem.

Ele estalou os dedos arrependido:

— Eu devia ter trazido. Desculpe-me. Imaginei que você ?á tivesse ?antado com as crianças.

— Jantei — conf i rmei —, mas nunca recusaria a comida do Antonio’s. Eu poderia comer aquele ravióli como sobremesa.

— Sem dúvida — ele disse, sorrindo. E então, evidentemente com pressa para mudar de assunto, ele me perguntou sobre meu dia.

— Bom — respondi enquanto tentava me lembrar de como havia preenchido as últimas 12 horas. Não conseguia pensar em nada para dizer, o que poderia ser um bom ou um mau sinal, dependendo do seu ponto de vista ou de como está a sua vida naquele momento. Nesta noite parecia um mau sinal, além de todo o resto.

— E as crianças? — perguntou. — Caíram no sono? — uma pergunta descartável.

— Não. Saíram para uma balada — sorri para amenizar meu sarcasmo.

Nick sorriu, quase dando uma risada:

— E como foi o seu dia? — perguntei, pensando que minha mãe estava certa. Era ele que tinha histórias interessantes para contar. Era ele que tinha coisas melhores para fazer do que voltar para casa na hora esta noite.

— O enxerto deu certo — ele disse com nossa conversa entrando em piloto automático.

Quatro palavras para uma cirurgia de quatro horas.

— Ah é? — perguntei ansiosa por mais detalhes, não porque queria todo o relatório médico do procedimento, mas porque queria que ele quisesse compartilhar tudo comigo.

— É. Foi tudo de acordo com o livro — ele disse cortando o ar com as mãos. Então esperei vários minutos até fi car claro que não tinha mais nada a dizer.

— Então — eu disse —, April disse que te viu no hospital.

Sua expressão tomou vida, fi cando quase impiedosa, e ele falou:

— Sim. Que raio que foi aquilo?

— Elas não sabiam que a cirurgia era ho?e — respondi perguntando-me por que estava me desculpando pelas duas ?á que, em essência, concordo com Nick.

— Mesmo assim — ele bufou.

Fiz que concordei com a cabeça. Meu ?eito de mostrar que compartilho de sua opinião, esperando que essa aliança derrubasse a barreira que estava se erguendo entre nós.

— Ouvi dizer que elas levaram vinho — comentei revirando meus olhos.

— Quem leva vinho a uma sala de espera de hospital?

— Ainda mais de manhã.

Ele desabotoou o casaco, livrando-se dele ao balançar os braços.

— Você devia cortar relações com ela — ele disse inf l exível.

— Com a April? — perguntei.

— Sim. Você tem coisas melhores para fazer na vida.

“Como fi car com meu marido”, quis dizer, mas me contive.

— Ela tem lá seus pontos positivos — eu disse. — Realmente acredito que ela estava tentando a?udar.

— A?udar quem? Aquela amiga irresponsável?

Dei de ombros de maneira pouco convincente enquanto ele continuava, desta vez pegando o embalo:

— Eles bem que merecem ser processados.

— Você acha que isso pode vir a acontecer? — perguntei.

— De ?eito nenhum — ele respondeu.

— A mãe do menino conversou sobre isso com você? — perguntei mais interessada pelo lado interpessoal de seu trabalho do que pela medicina.

— Não — ele respondeu de maneira concisa.

— Nós processaríamos? — perguntei. — Você processaria?

— T alvez — ele respondeu revelando seu lado vingativo.

Uma parte dele da qual não gosto muito, mas mesmo assim admiro, assim como admiro seu mau humor, sua teimosia cega e sua competitividade descarada. T odas as características típicas de um cirurgião aclamado, os traços que fazem dele quem ele é. — T alvez eu os processasse só por causa daquela garrafa de vinho, e aquele olhar na cara dela. Qual é o nome dela mesmo? Remy?

— Romy — corrigi, impressionada com o fato de aquele homem ter decorado o nome de todos os músculos e ossos do corpo, de inúmeros termos médicos em latim e, mesmo assim, ser incapaz de guardar alguns poucos nomes de pessoas na memória.

E ele continuou, como se estivesse falando sozinho:

— Aquele sorriso falso dela. Eu tinha acabado de realizar uma cirurgia extremamente exaustiva e lá estava ela, toda sorridente, querendo puxar papo sobre escolas particulares.

— Pois é, a April disse que ela vai escrever uma carta para a gente, comentei.

— Uma ova que vai — ele disse. — De ?eito nenhum, não quero uma carta dela. Nem quero a Ruby perto desse tipo de gente.

— Acho que você está generalizando um pouco — eu falei com minha própria frustração e minha raiva começando a tomar o lugar do sentimento perdido em meu peito.

— T alvez sim — ele disse. — T alvez não. Veremos.

— Veremos? — perguntei. — Então isso quer dizer que você pensará a respeito?

— Claro. T anto faz — ele respondeu. — Eu disse que pensaria.

— Você deu uma olhada na fi cha de inscrição ho?e? — perguntei sabendo que não estava falando simplesmente sobre uma inscrição, mas sim sobre sua ligação com nossa família.

Ele olhou para mim e então disse o meu nome da mesma maneira com que diz o nome de Ruby quando ela pede para ele escovar os seus dentes pela décima vez. Ou, mais frequentemente, quando ele me ouve pedir para ela escovar os próprios dentes pela décima vez.

— O quê? — perguntei.

— Você sabe como foi meu dia?

Ele não esperou que eu respondesse:

— Eu colei o rosto de um menino de volta — ele desabafou. — Não tive tempo de analisar fi chas de inscrição para o ?ardim de infância.

— Mas teve tempo para ?antar no Antonio’s? — eu devolvi, pulando os estágios intermediários de raiva e sentindo o ódio crescer em meu peito.

Então ele se levantou bruscamente e falou:

— Vou tomar um banho.

— Claro que vai — disse enquanto ele saía.

E então ele se virou e me lançou um olhar frio e duro.

— Por que você faz isso, T ess? Por que você inventa problemas?

— Por que você não quer voltar para casa? — deixei escapar, esperando que ele se comovesse. Que me dissesse que eu estava sendo ridícula.

Mas, em vez disso, ele deu de ombros e bradou:

— Jesus, sei lá. Porque você deixa tudo aqui tão desagradável.

— Sério? T udo o que faço é tentar deixar as coisas agradáveis para você. Para nós todos. Estou me esforçando ao máximo por aqui — gritei com a voz trêmula, enquanto meu dia me vinha à cabeça. As compras no mercado, as fotos que baixei da internet, o tempo cozinhando e cuidando dos fi lhos. T odas as coisas que fi z por nossa família.

— Bem, talvez você devesse parar de se esforçar tanto.

Porque, se?a lá o que estiver fazendo, Tess, não parece estar dando certo — ele disse com a voz brava, porém controlada e estável como suas mãos durante uma cirurgia. Com uma olhadela final de desdém, ele se virou novamente e subiu a escada. Pouco depois, pude ouvi-lo ligar o chuveiro, onde ficou por muito tempo.

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Comments

Divina Santos

Divina Santos

estou triste,ele ñ esta sendo justo,ela largou tudo pr cuidar da família,ela ñ teve filhos sozinha,por favor autora,ñ deixa ele trai la.

2024-04-04

0

Divina Santos

Divina Santos

A valeria ñ pode gostar dele por ser casado.

2024-04-04

0

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