9

[ TESSA ]

Era noite de sexta e eu estava sentada na sala com minha mãe, meu irmão e minha cunhada — todos vieram de Manhattan para nos visitar no fi m de semana. Estávamos arrumados para ?antar em um restaurante com reserva para as 20 horas, apreciando uma garrafa de vinho enquanto os quatro primos, ?á de banho tomado e alimentados, brincavam no andar de cima sob a supervisão de uma babá.

A única coisa que faltava era Nick chegar, ele ?á estava 20 minutos atrasado, um fato que não escapou aos olhos de minha mãe.

— O Nick sempre trabalha até tão tarde nos fi ns de semana? — perguntou cruzando as pernas, enquanto olhava intencionalmente para o seu relógio Timex, que desta vez usava no lugar do Cartier, que meu pai lhe presenteara no último aniversário de casamento.

— Geralmente não — respondi na defensiva. Sabia que sua pergunta provavelmente tinha mais a ver com sua personalidade frenética e sua incapacidade de esperar sentada por um período de tempo, mas não consegui deixar de considerar isso uma afronta dissimulada, uma pergunta com um cunho de “Você ainda está batendo em sua mulher?” ou, nesse caso, “Você ainda deixa seu marido te bater?”.

— Ele só precisava ver um paciente, um garotinho — expliquei, sentindo a necessidade de lembrá-la de quanto sua prof i ssão é nobre. — Ele sofrerá seu primeiro enxerto de pele na manhã de segunda-feira.

— Nossa — meu irmão disse, encolhendo-se e balançando a cabeça. — Não sei como é que ele consegue.

— Pois é — minha cunhada concordou com um olhar de admiração.

Minha mãe não se impressionou. Com uma expressão cética, dobrou seu guardanapo de papel em quatro partes, perguntou:

— Para que horas é nossa reserva? T alvez devêssemos encontrá-lo no restaurante.

— Só às 20 horas. Ainda temos meia hora, e o restaurante é bem próximo daqui — respondi concisamente.

— Está tudo bem, mãe. Não se preocupe.

— É. Relaxa, mãe — disse meu irmão em tom de provocação.

Minha mãe levou suas mãos ao alto, com as palmas para a frente, e disse:

— Desculpa, desculpa — murmurou em voz baixa.

T omei um longo gole de vinho, sentindo-me tão tensa quanto minha mãe. Geralmente, não me importo quando Nick está atrasado, assim como sempre relevo quando seu pager toca. Aceitei essa situação como parte de seu trabalho e de nossa vida ?untos. Mas tudo muda quando minha família vem nos visitar. Na verdade, a última coisa que disse ao Nick naquela tarde quando ele me contou que tinha de “correr até o hospital rapidinho” foi: “Por favor, não se atrase”.

Ele fez que entendeu todas as nuances dessa instrução, pois, em primeiro lugar, não queríamos dar motivos para minha mãe provar sua teoria de que a vida de Nick leva vantagem sobre a minha. E, em segundo lugar, embora eu adore meu irmão mais velho, Dex, e me dê muito bem com minha cunhada Rachel, às vezes sinto um pouco de ciúme, ou no?o, do que penso ser o casal perfeito, e não consigo deixar de usá-los como um padrão de comparação para o meu casamento.

Em teoria, nós quatro temos muito em comum. Como Nick, Dex tem um trabalho estressante, que exige horas exaustivas de dedicação como gerente de investimentos da Goldman Sachs,15 enquanto Rachel; assim como eu, abandonou a carreira no ramo da advocacia quando teve seus fi lhos; primeiro trabalhando meio período e depois parando de vez. Eles têm duas fi lhas, Júlia e Sarah (de 7 e 4 anos) e, como na dinâmica de nossa casa, Dex confere a Rachel as decisões referentes à criação e à disciplina das f i lhas (o que, de maneira interessante, não aborrece minha mãe como quando Nick faz o mesmo; ela inclusive ?á chegou a acusar Rachel de esperar demais de Dex).

Mas o mais impressionante que meu irmão e eu temos em comum é a história de nossos relacionamentos, ?á que ele também terminou seu noivado poucos dias antes de seu casamento. Uma loucura, na verdade: dois irmãos nascidos com dois anos de diferença, ambos cancelando seus casamentos, também com dois anos de diferença — um fato que faria com que qualquer psiquiatra passasse um dia nos observando, analisando e provavelmente pondo a culpa no divórcio de nossos pais. Dex acredita que essa é a razão do apoio de nossos pais nessas duas ocasiões. Eles perderam milhares de dólares em pagamentos referentes aos casamentos e devem ter se sentido envergonhados diante de seus amigos mais próximos, mas pareciam acreditar que era um preço baixo a pagar para garantir que seus fi lhos acertassem na escolha na primeira tentativa. Mesmo assim, os dois escândalos garantiram-nos algumas provocações, consideravelmente cruéis, por parte de minha mãe, que sentiu a necessidade de nos presentear no Natal com as meias de lã mais quentes e grossas ?á vistas — porque éramos pés-frios, obviamente. Além disso, tivemos que ouvir seus conselhos intermináveis — não casar se ainda estivéssemos nos recuperando do último relacionamento.

Para esse caso, Dex, com seu ?eito analítico, usava o argumento de que podia identif i car “a garota certa” com muito mais rapidez se fosse logo depois de ter conhecido “a garota errada”, e então dizia que estava absolutamente seguro quanto à Rachel. Já eu, por outro lado, simplesmente retrucava com um direto “Sai do meu pé, mãe”.

Um detalhe importante, porém, era que a situação de Dex era bem mais escandalosa, ?á que Rachel era, na verdade, amiga da ex-noiva de meu irmão, mais precisamente, amiga de infância. Além disso, estou quase certa de que houvera alguma traição. Essa suspeita nunca foi conf i rmada, mas, às vezes, Dex e Rachel deixavam escapar alguns detalhes do início do relacionamento enquanto Nick e eu trocávamos um olhar sagaz. Não que isso se?a importante agora, anos depois de terem se casado, a não ser pelo fato de eu acreditar que um início obscuro p?s um fardo maior sobre o relacionamento. Em outras palavras, se duas pessoas têm um caso, é melhor que f i quem ?untas. Se fi carem, terão a romântica história do “eles nasceram um para o outro” e certo grau de absolvição por seus pecados, porém, se não fi carem ?untos, serão simplesmente dois adúlteros.

Até agora, Dex e Rachel se encaixam perfeitamente na primeira categoria, ainda nauseantemente apaixonados depois de todos esses anos. Além disso, são realmente melhores amigos um do outro, de um modo que Nick e eu simplesmente não somos. Em primeiro lugar, fazem absolutamente tudo ?untos — vão à academia, leem o ?ornal, assistem aos mesmos programas de TV e fi lmes, tomam café da manhã, ?antam e, às vezes, até almoçam ?untos e, incrivelmente, vão dormir ao mesmo tempo todas as noites. Para dizer a verdade, uma vez ouvi Dex dizer que tinha dif i culdades em cair no sono sem Rachel, além de nunca dormirem brigados.

Não é que Nick e eu não amemos passar o tempo ?untos, porque de fato amamos. Mas não somos grudados, nem nunca fomos, mesmo no início do relacionamento. Nossos horários de trabalho (o meu recentemente extinto), de dormir e mesmo de comer variam muito. À noite, contento-me perfeitamente lendo um romance sozinha na cama e não tenho problema nenhum para pegar no sono quando Nick não está ao meu lado.

Não sei se isso signif i ca que o casamento deles é melhor que o nosso, mas, às vezes, isso com certeza me dá a sensação inquietante de que ainda podemos melhorar. Cate e April, para quem conf i denciei essa questão, insistem que eu é que sou a normal e que Rachel e Dex são atípicos, isso se não forem completas aberrações. Principalmente April, que tem um casamento na outra ponta do espectro, af i rma que o relacionamento de Dex e Rachel na verdade “não é saudável” e que são “codependentes”. E, quando abordo esse tópico com Nick, se?a com tom de alme?o ou preocupação, ele fi ca compreensivamente na defensiva.

— Você é minha melhor amiga — ele costuma dizer, o que é provavelmente verdade, ?á que Nick na verdade não tem amigos muito próximos, algo comum para a maioria dos cirurgiões que conhecemos. Ele ?á teve, no colegial e até mesmo alguns poucos no curso de medicina, mas não se esforçou muito para mantê-los com o passar dos anos.

Além disso, mesmo que eu se?a de fato a melhor amiga de Nick por desfalque e mesmo que ele se?a meu melhor amigo em tese, às vezes sinto que conto mais sobre minha vida para April e Cate, e até mesmo para Rachel — pelo menos quando se trata das questões do dia a dia que compõem minha vida —, desde a fatia de cheesecake da qual me arrependi de comer até os óculos escuros incríveis que encontrei em liquidação ou, ainda, alguma coisa adorável que Ruby tenha dito ou Frank tenha feito. Por fi m, acabo contando essas coisas a Nick também, se ainda forem relevantes ou urgentes quando fi nalmente nos encontramos no fi m do dia. Contudo, com mais frequência, classif i co mentalmente as coisas segundo sua importância e o poupo das triviais, ou ao menos das que acho que ele vai considerar triviais.

Então tem a vida sexual de Dex e Rachel, algo que fi quei sabendo por acaso, mesmo. A conversa começou quando Rachel recentemente me contou que estavam tentando havia mais de um ano ter o terceiro fi lho. Isso, por si só, ?á me deixou angustiada, ?á que fazia tempo Nick me disse, com todas as palavras, que estava descartada a possibilidade de termos um terceiro fi lho — e, embora, em geral, concorde com ele, às vezes anseio por uma família menos comum do que a nossa, dois fi lhos, uma menina e um menino.

Bom, de qualquer maneira, perguntei à Rachel se eles estavam realmente se esforçando ou se estavam apenas tentando ver no que dava, esperando que fosse se aprofundar nas típicas estratégias e metodologias nada românticas a que os casais costumam recorrer quando tentam engravidar. Kits de ovulação, term?metros, sexo com hora marcada. Mas, em vez disso, ela respondeu:

— Bem, nada fora do comum… mas, você sabe, nós fazemos amor de três a quatro vezes por semana, e nada.

Sei que um ano tentando não é tanto tempo assim, mas aconteceu imediatamente com as crianças.

— De três a quatro vezes por semana quando está ovulando? — perguntei.

— Bom, eu nunca sei ao certo quando estou ovulando.

Então simplesmente fazemos amor quatro vezes por semana, você sabe… o tempo todo, ela disse, soltando uma risada nervosa, indicando que não estava completamente confortável discutindo sua vida sexual.

— O tempo todo? — repeti, pensando no antigo provérbio ?aponês que dizia que se duas pessoas recentemente casadas colocassem um fei?ão em um pote toda vez que fi zessem amor, durante o primeiro ano de casados, e depois removessem um fei?ão do pote toda vez que fi zessem amor nos anos seguinte, elas nunca esvaziariam o pote.

— Sim. Por quê? Deveríamos… diminuir? — ela perguntou. — T alvez economizar para os melhores dias do meu ciclo? Será que é esse o problema?

Eu não pude esconder minha surpresa.

— Vocês transam quatro vezes por semana? Tipo… dia sim, dia não?

— Bem… sim — ela conf i rmou, subitamente voltando a sua antiga timidez. Quando se casou com meu irmão, lutei muito para deixá-la mais à vontade, com a esperança de que um dia seríamos irmãs, algo que nenhuma de nós teve na infância. — Por quê? — ela perguntou. — Com que frequência você e Nick transam?

Hesitei, e quase lhe disse a verdade — que fazíamos amor de três a quatro vezes por mês, se não menos, mas me bateu um sentimento básico de orgulho, e talvez de certa competição.

— Ah, sei lá. T alvez uma ou duas vezes por semana — respondi, sentindo-me totalmente inadequada, como aquelas senhoras casadas sobre as quais lia nas revistas e dizia que nunca me tornaria igual.

Rachel fez que entendeu e continuou a se lamentar de sua fertilidade em declínio, perguntando se eu achava que Dex fi caria decepcionado se nunca tivesse um menino, quase como se soubesse que eu estava mentindo e quisesse fazer com que me sentisse melhor ao comentar sobre suas próprias preocupações. Mais tarde, levantei a questão com April, que acalmou meus temores, provavelmente ?unto com seus.

— Quatro vezes por semana? — ela quase gritou, como se eu tivesse acabado de lhe contar que eles se masturbavam na igre?a, ou que participavam de orgias com o vizinho do andar de cima.

— Ela está mentindo.

— Acho que não — discordei.

— Claro que está. T odo mundo mente sobre sexo no casamento. Uma vez eu li que são os dados estatísticos mais distorcidos, porque ninguém diz a verdade, mesmo em pesquisas de caráter conf i dencial.

— Não acho que este?a mentindo — discordei mais uma vez, sentindo-me aliviada em saber que não estava só, e, mais aliviada ainda, quando mais tarde Cate, que ama sexo mais do que a maioria dos garotos adolescentes, deu sua contribuição ao assunto:

— A Rachel adora agradar, e se martirizar também — ela disse, dando exemplos desse comportamento citando nossas viagens só entre as mulheres, antes de termos f i lhos. Como ela sempre pegava o menor quarto e se submetia às escolhas das outras na hora de decidir o ?antar.

— É fácil imaginá-la aceitando o desaf i o mesmo sem ter vontade, e além disso… seu irmão é um gato.

— Ah, pare com isso — eu falei. Essa é minha resposta automática sempre que minhas amigas começam a falar de quanto meu irmão é atraente. Ouvi isso a vida toda, ou ao menos desde o colegial, quando suas fãs surgiram. Tive inclusive de me desfazer de algumas amigas naquela época, suspeitando que estavam visivelmente me usando para chegar até meu irmão.

Então comecei a falar para Cate sobre minha teoria de que a aparência na verdade tem pouco a ver com a atração por seu c?n?uge. Que acho Nick lindo, mas, na maioria das noites, isso não é suf i ciente para superar minha exaustão ?á man?ada. Os casais podem se apaixonar com base na aparência e na atração, mas essas coisas não importam tanto com o passar do tempo.

De qualquer maneira, estava revirando tudo isso em minha mente quando Nick entrou na sala, cumprimentando a todos e se desculpando pelo atraso.

— Sem problemas, minha mãe foi a primeira a dizer, como se fosse papel dela absolver o meu marido.

Nick lhe deu um sorriso clemente, então se inclinou para bei?ar-lhe o rosto:

— Barbie, querida. Sentimos sua falta — disse com um traço de sarcasmo que só eu pude detectar.

— T ambém sentimos sua falta — retrucou minha mãe, olhando exageradamente para seu relógio, com as sobrancelhas levantadas.

Nick ignorou sua provocação e, então, se inclinou novamente, mas desta vez para bei?ar sincera e intensamente os meus lábios. Retribuí, prolongando o bei?o por um segundo a mais do que de costume, enquanto me perguntava o que estava tentando provar com aquilo — e para quem.

Quando nos separamos, meu irmão se levantou para dar um abraço em Nick, enquanto eu pensava o que sempre penso quando os dois estão lado a lado — que eles poderiam passar por irmãos, embora Dex se?a mais magro, tenha olhos verdes e se?a mais mauricinho e Nick se?a mais musculoso, com olhos castanhos e um estilo italiano.

— Bom te ver, cara — disse Nick, sorrindo.

Dex sorriu de volta.

— Bom te ver, também. Como estão as coisas? Como está o trabalho?

— O trabalho vai bem — respondeu Nick, sendo que era só até aí que falavam de trabalho, ?á que o que Dex entende de medicina é tão superf i cial quanto o que Nick entende de mercado fi nanceiro.

— T essa me falou de seu paciente mais recente — comentou Rachel. — O garotinho que estava assando marshmallow.

— Sim — Nick disse, com o sorriso recuando.

— Como ele está? — ela perguntou.

— Está bem — af i rmou. — É um garoto muito valente.

— É ele que tem mãe solteira? — Rachel perguntou.

Nick me lançou um olhar irritado que acho que signif i cou “Por que você está falando de meus pacientes?” ou “Por que você está sendo contaminada por essas fofocas mesquinhas?”, ou provavelmente as duas coisas.

— O quê? — perguntei a ele, pensando na conversa inofensiva que tive com Rachel logo depois do acidente.

Então me virei para Rachel e disse:

— Sim, é ele.

— O que aconteceu? — Dex perguntou, sempre interessado por uma boa história, e eu mentalmente adicionei essa característica às qualidades do meu irmão, o que talvez se?a uma das razões pelas quais ele e Rachel são tão grudados. Sem ser afeminado ou metrossexual, Dex consegue participar de rodas de fofocas com mulheres e até, às vezes, folhear uma People ou uma Us Weekly.

Dei uma ideia geral da história para meu irmão enquanto meu marido balançava a cabeça em desaprovação e resmungava:

— Meu Deus, minha mulher está se transformando em uma fofoqueira.

— Como é que é? — perguntou minha mãe, visivelmente tentando me defender.

Nick repetiu o que disse, com mais clareza, quase desaf i ando-a.

— Está se transformando? — ela perguntou. — Desde quando?

Era um teste, mas Nick não percebeu.

— Desde que começou a andar com essas donas de casa desesperadas — ele falou, caindo feito um bobo no ?ogo de minha mãe.

Ela me lançou um olhar sutil e esfregou sua taça de vinho intencionalmente.

— Espera aí. Eu perdi alguma coisa? — perguntou Dex.

Rachel sorriu e estendeu o braço para apertar sua mão.

— Provavelmente — Rachel disse, como se estivesse brincando. — Você está sempre um passo atrás, meu amor.

— Não, Dex — respondi enfaticamente. — Você não perdeu nada.

— Não mesmo — falou Nick em voz baixa, lançando-me outro olhar reprovador.

— Ah, me poupe — eu retruquei.

E ele me ?ogou um bei?o, como se quisesse dizer que tudo fora uma brincadeira.

Joguei-lhe outro de volta, fi ngindo ser tão brincalhona quanto ele, enquanto fazia o melhor que podia para ignorar as primeiras sementes de ressentimento que minha mãe, em toda a sua sabedoria autoproclamada, ?á havia previsto.

A tranquilidade foi restaurada durante o ?antar, o clima estava divertido e festivo enquanto discutíamos tudo desde política até cultura pop e a criação dos fi lhos (e netos).

Minha mãe estava se comportando muito bem, sem atacar ninguém, inclusive seu ex-marido — o que possivelmente não tinha precedentes. Nick também parecia fazer de tudo para ser extrovertido e estava especialmente carinhoso comigo, talvez se sentindo culpado por ter se atrasado e me chamado de fofoqueira. O vinho não afetou a conversa e, à medida que a noite avançava, sentia-me mais solta e feliz, conversando e me divertindo em família.

Mas, na manhã seguinte bem cedo, acordei com as têmporas late?ando e uma sensação renovada de preocupação. Quando desci para fazer café, encontrei minha mãe à mesa da cozinha tomando chá e lendo um exemplar ?á gasto do livro Mrs. Dalloway, seu favorito.

— Quantas vezes ?á leu esse livro? — perguntei, enchendo a cafeteira com água e grãos recentemente moídos antes de me ?untar a ela no sofá.

— Ah, não sei. Pelo menos uma seis — ela respondeu. — T alvez mais, acho reconfortante.

— Engraçado, só consigo pensar em angústia quando penso em Mrs. Dalloway — comentei. — Que parte você acha reconfortante? Seu dese?o homossexual nunca consumado? Ou sua ânsia por dar sentido em uma vida sem sentido constituída por resolver problemas, educar os fi lhos e organizar festas?

É uma fala que tirei do próprio livro, que ela reconheceu com uma risada que saiu pelo nariz.

— Não é tanto por causa do livro — ela disse, e explicou.

— É mais pela época em que o li pela primeira vez.

É — Quando foi? Na época de faculdade? — Época em que me apaixonei por Virginia Wolf pela primeira vez.

— Não, o Dex era um bebê e eu estava grávida de você.

Levantei a cabeça, esperando por mais.

Ela então chutou seus chinelos felpudos cor-de-rosa que pareciam não combinar com minha mãe e disse:

— Seu pai e eu ainda morávamos no Brooklin. Não tínhamos nada naquela época, mas éramos tão felizes, acho que foi a melhor época de minha vida.

Imaginei o piso de arenito romântico, tudo decorado com um estilo dos anos de 1970 de muito mau gosto, onde passei os primeiros três anos de minha vida, mas que só conheço por meio de fotos, de fi lmes caseiros e das histórias da minha mãe. Isso foi depois que meu pai montou seu escritório de advocacia e nos mudamos para uma casa tradicional, em estilo colonial, em Westchester, a qual chamamos de lar até meus pais se divorciarem.

— Quando foi que você e papai… pararam de ser felizes?

— perguntei.

— Ah, não sei. Foi aos poucos, e mesmo pouco antes do f i m passamos por bons momentos. — Ela então sorriu o tipo de sorriso que tanto pode anteceder as lágrimas quanto uma risada. — Aquele homem, ele conseguia ser tão encantador e espirituoso.

Concordei, pensando que ele ainda é encantador e espirituoso, e esses são os dois ad?etivos que as pessoas sempre usam para descrevê-lo.

— É uma pena que fosse tão mulherengo — ela resmungou impassível, como se simplesmente estivesse dizendo “É uma pena que ele usasse abrigo de poliéster”.

Eu limpei minha garganta e então arrisquei pedir que conf i rmasse algo do qual sempre suspeitei:

— Houve outros casos? Antes dela? — perguntei, referindo-me à esposa de meu pai, Diane, sabendo que minha mãe odiava ouvir seu nome. Realmente acredito que f i nalmente tenha esquecido meu pai e superado a dor do divórcio, mas, por alguma razão, ela diz que nunca perdoará “a outra”, acreditando plenamente que todas as mulheres fazem parte de uma irmandade, e que devem uma à outra a integridade que os homens, em sua opinião, parecem não ter por natureza.

Ela me dirigiu um olhar longo e sério, como se estivesse analisando se revelava ou não aquele segredo.

— Sim — fi nalmente confessou. — Pelo menos dois outros casos, que eu saiba.

Acenei com a cabeça em sinal de compreensão.

— Ele confessou ter tido esses casos, abriu completamente o ?ogo. Desesperou-se, com lágrimas e tudo, e ?urou que nunca mais me trairia.

— E você lhe perdoou?

— Da primeira vez, sim. Completamente. Na segunda vez, aquilo ?á não me importava mais, mas nunca mais senti o mesmo por ele, nunca mais conf i ei nele. Sempre tinha uma sensação ruim no est?mago enquanto procurava por marcas de batom em seu colarinho ou por números de telefone em sua carteira. Senti-me depreciada por causa disso, por causa dele. Acho que sempre soube que me trairia outra vez — sua voz sumiu e um olhar distante tomou conta de seus olhos.

Tive o ímpeto de ir até ela e abraçá-la, mas, em vez disso, fi z outra pergunta difícil:

— Você acha que isso fez você… deixar de conf i ar nos homens?

— T alvez — ela respondeu, olhando ansiosamente na direção da escada como se estivesse preocupada com Nick ou Dex pegando-a difamando sua classe. Então abaixou o tom de sua voz e sussurrou:

— E talvez se?a por isso que eu tenha fi cado tão chateada com seu irmão quando rompeu seu primeiro noivado.

Essa também foi sem precedentes, ?á que eu não fazia ideia de que minha mãe suspeitava de qualquer inf i delidade, ou que algum dia ?á tenha fi cado chateada com Dex por causa de qualquer coisa.

— Pelo menos ele não estava casado — eu disse.

— Sim, foi isso que eu disse a mim mesma. E eu não suportava aquela Darcy — ela falou, referindo-se à antiga namorada de Dex. — Então o resultado foi bom.

Eu comecei a dizer algo, mas então parei.

— Vá em frente — minha mãe disse.

Hesitei mais uma vez e, então, disse:

— Você conf i a no Nick?

— Você conf i a no Nick? — ela devolveu. — Essa é a pergunta mais importante.

— Conf i o, mãe — respondi, colocando a mão sobre meu coração. — Sei que ele não é perfeito.

— Ninguém é — ela falou da mesma maneira como os pastores evangélicos dizem “Amém”.

— E sei que nosso casamento não é perfeito — disse, pensando no início turbulento da noite anterior.

— Nenhum casamento é — ela completou balançando a cabeça.

“Amém”.

— Mas ele nunca me trairia.

Minha mãe me lançou um olhar, do tipo que eu normalmente interpretaria como repressor, mas, na luz dourada e leve da manhã, entendi apenas como preocupação maternal.

Então, ela se inclinou e colocou sua mão sobre a minha.

— Nick é um bom homem, de verdade, porém uma coisa que aprendi nesta vida é que nunca se deve dizer nunca.

Esperei que dissesse algo a mais, mas ouvi Frank me chamar do topo da escada, quebrando o feitiço do momento.

— E, no fi nal — ela continuou, ignorando os chamados cada vez mais insistentes de seu neto, sentada com toda calma, como se não o houvesse escutado —, tudo o que realmente se tem é a si mesma.

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Comments

Divina Santos

Divina Santos

pior q ela esta serta

2024-04-04

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