13

[ TESSA ]

— Odeio dizer “bem que eu avisei” — April ligou para me dizer na manhã de segunda-feira, enquanto eu manobrava meu carrinho de compras pelo corredor de cereais da Whole Foods.

— Até parece — eu disse, rindo. — Você adora dizer “bem que eu avisei”.

— Não adoro — negou April.

— Ah não? E naquela vez em que você me disse que, se eu deixasse Frank brincar em uma caixa de areia pública, ele pegaria oxiúro?

April riu.

— T udo bem. Eu adorei daquela vez, mas não porque ele pegou oxiúro? Mas sim porque você e Nick fi caram zombando de mim, dizendo que eu era paranoica.

— Você é paranoica — eu af i rmei. Eu sempre provoco a April por causa de sua mania incessante de lavar as mãos e a lembro de que ela, de fato, possui alguns glóbulos brancos. — Mas você estava certa. Então, sobre o que mais estava certa?

April fez uma pausa por alguns segundos e então disse:

— Valerie Anderson, eu estava certa sobre ela. Que cretina.

— O que aconteceu? — perguntei, preparando-me para a história que estava por vir, perguntando-me se April sabia, de alguma maneira, que Charlie sofreria uma cirurgia naquela manhã.

— Você não vai acreditar — April disse, preparando-se para contar sua história, sempre cheia de anedotas, mesmo as que envolvem minúcias de sua vida. Ela montou o cenário cuidadosamente, descrevendo a cesta que constituía a terceira tentativa de aproximação, que ela e Romy haviam montado com tanto amor, como haviam selecionado cuidadosamente a melhor garrafa de vinho da adega de Romy e o buquê perfeito em uma conhecida f l oricultura da cidade.

T omando cuidado para não soar mordaz, eu falei:

— Achei que você fosse parar com isso, dando um pouco de tempo e espaço.

— Nós demos, esperamos uma semana, mais ou menos, como você sugeriu… e então Romy pensou em ir até lá e ver no que dava.

Joguei uma caixa de cereal matinal com passas em meu carrinho, pensando que a expressão “ver no que dava” deveria ser utilizada apenas para dar em cima de garotas em bares ou fazer um bom negócio na compra de um carro usado, ou, também, para correr um quil?metro e meio em seis minutos, e não para entrar em contato com a mãe de uma criança hospitalizada quando ela obviamente não quer saber de conversa. T ambém comecei a pensar que dar conselhos a April é a mesma coisa que dar conselhos a Ruby: entra por um ouvido e sai pelo outro. A única diferença é que April ao menos fi nge escutar primeiro.

— Você sabe, levantar a bandeira da paz — April disse.

— Humm — eu disse, pensando que essa também era uma expressão que tinha muitos signif i cados. E pensei também que a desculpa de Romy era uma contradição, pois dizia que seus esforços para entrar em contato com Valerie estavam relacionados à compaixão e ao apoio a uma mãe, e não a uma busca espalhafatosa e descarada por absolvição.

— Então a Valerie não aceitou o gesto cordialmente? — perguntei.

— Esse é o maior eufemismo dessa década — April exclamou, contando-me sobre a conversa palavra por palavra. Como Valerie recusou a cesta, dizendo a Romy para usá-la na próxima festa. — Ela foi tão sarcástica — April contou. — Uma cretina mesmo.

— Que chato — eu falei, escolhendo cuidadosamente minhas palavras e percebendo que essa era a maior qualidade de uma amizade genuína: poder dizer exatamente o que estamos pensando.

— Pois é. E, quanto mais penso sobre o que aconteceu, mais acho que foi realmente muito triste. Sinto pena dela.

— Você quer dizer, pena do que aconteceu com o menino? — perguntei intencionalmente, achando que esse sim era o eufemismo dessa década.

— Bem, sim, tem isso, e também tem o fato de ela obviamente não ter nenhum amigo.

— E por que você diz isso? — perguntei.

— Bom, em primeiro lugar, como ela poderia ter amigos com uma atitude péssima como essa? E, além disso, por que outro motivo estaria sentada sozinha na sala de espera? Quero dizer, você consegue imaginar se fosse um de nossos fi lhos nessa situação? Estaríamos cercadas de pessoas queridas.

Comecei a lembrar April de minha premissa inicial, de que Valerie talvez quisesse fi car sozinha, mas ela me interrompeu e falou:

— Ela simplesmente me parece ser uma daquelas solteironas amargas que odeiam o mundo. Quero dizer, você não acharia que ela fi caria agradecida? Ao menos pelo bem de Charlie? Nossos fi lhos estão na mesma turma?

— Acho que sim — respondi.

— Então é isso — April concluiu. — Nós of i cialmente desistimos, ela que se vire.

— Ela ainda pode mudar de ideia.

— Bom ela terá de fazer isso sozinha. Para nós ?á chega.

— É compreensível.

— Sim. Ah? E cruzamos com a gracinha do seu marido quando estávamos de saída.

Brequei meu carrinho de uma só vez, rezando para que ele não tivesse sido áspero ou frio com elas.

— Ah, é?, perguntei. — Ele sabia por que vocês estavam lá?

— Provavelmente — ela respondeu. — Mas não falamos sobre isso, não queria colocá-lo em uma situação constrangedora. Então, só ?ogamos conversa fora, falamos de Longmere. A Romy ofereceu-se generosamente para escrever uma carta de recomendação para Ruby, disse a Nick que seria uma honra. Com uma carta vinda de um membro do conselho, vocês ?á estão praticamente dentro da escola.

— Nossa, isso é muito gentil da parte dela.

— Eu ?uro que não toquei no assunto com ela, foi tudo ideia dela, mesmo. Ela não é o máximo?

— Sim — conf i rmei, eno?ada por minha própria hipocrisia.

— O máximo.

Depois de resolver quatro incumbências na rua debaixo de chuva, voltei para casa e me deparei com uma cena doméstica desanimadora. Pratos su?os e restos de pasta de amendoim e geleia estavam espalhados por toda a cozinha, e a sala de TV parecia uma explosão de bonecas, peças de quebra-cabeça e uma miscelânea de peças de plástico.

Ruby e Frank estavam sentados inertes, a apenas alguns centímetros de distância da TV, assistindo a um desenho, não um do tipo educativo, mas sim um violento com tiros de laser e indícios de machismo, homens salvando o dia e mulheres indefesas com corpos de violão. Havia um pouco de geleia de uva na bochecha de Frank, perigosamente próximo do braço da cadeira cinza-amarronzada, a qual eu sabia que deveria ter encomendado em um tom mais escuro, e Ruby estava ostentando uma saída de praia felpuda, apesar do dia chuvoso e de estar fazendo quatro graus lá fora.

Enquanto isso, nossa babá, Carolyn, uma garota de 24 anos parecida com a Jessica Simpson, com uma bela comissão de frente e tudo o mais, estava reclinada no sofá lixando as unhas e rindo com seu iPhone. Enquanto eu a ouvia discutir em qual casa noturna ela e suas amigas comemorariam um aniversário, fi quei impressionada com sua aparente incapacidade de trabalhar durante as míseras dez horas por semana que fi ca em nossa casa (em vez de se socializar, de se arrumar, de comer, de mandar e-mails e de “t?ittar” obsessivamente) e, então, senti um tipo familiar de fúria subindo à minha cabeça, um sentimento que me domina com muita frequência desde que me tornei mãe. Pensei em adotar meu caminho típico de menor resistência, ir para o andar de cima sem me preocupar, f i ngindo que nada estava errado, e depois ligar para Cate ou Rachel para reclamar da babá, como de costume.

Mas, depois de minha conversa com Nick na noite anterior, e daquela com April mais cedo, eu não estava a f i m de disfarçar meus verdadeiros sentimentos. Em vez disso, passei aceleradamente na frente de Carolyn e comecei a atirar os brinquedos em um cesto de vime que estava no canto da sala. Obviamente surpresa com minha chegada, Carolyn encerrou rapidamente seu telefonema, guardou a lixa de unhas no bolso de trás de sua calça ?eans ?usta e a?eitou sua postura. No entanto, não se desculpou pela bagunça, nem me a?udou em minha evidente tentativa de arrumação, nem ao menos se sentou direito.

— E aí, T essa — disse animada. — Beleza?

— Sim — respondi, dese?ando que eu tivesse imposto um pouco de formalidade quando ela começou a trabalhar aqui, quatro meses atrás. T alvez se eu fosse a “Sra. Russo” ela levaria seu trabalho um pouco mais a sério. Peguei o controle remoto na mesa de centro e desliguei a TV sob um coro de protestos.

— Não quero saber — disse às crianças com minha voz mais ríspida, o que, é claro, só me fez sentir pior. Não é culpa deles que a babá se?a tão relaxada.

Com os olhos arregalados e ainda olhando para a tela desligada da TV, Frank colocou o polegar na boca e Ruby, fungando, disse:

— Estava quase no fi nal.

— Não quero saber, você não deveria estar vendo TV — eu disse, esperando que Carolyn escutasse.

— A Carolyn disse que podíamos — Ruby replicou, uma resposta a qual eu não poderia ter orquestrado melhor.

Voltei-me para Carolyn e lancei-lhe um olhar com uma sobrancelha levantada, ao passo que ela me lançou um olhar inocente e um sorriso envergonhado.

— Mas eles se comportaram tão bem, e comeram todas as vagens do prato. Achei que podia dar-lhes um agrado — ela disse, dando uma de boazinha de uma maneira que me enfureceu ainda mais.

— Claro, claro. Mas, da próxima vez, vamos fi car com o canal da Disney e a Nickelodeon — eu disse, com um sorriso animado, sabendo que estava impondo a ideia de um peso para duas medidas, ?á que, quando estou no telefone, permito que assistam a praticamente qualquer coisa desde que isso me dê um minuto de paz. Mesmo assim, não estou f i nanciando as idas de Carolyn a casas noturnas nem sua farra consumista extravagante na French Lessons para que ela possa ser eu.

— T udo bem. Claro — Carolyn disse, enquanto eu lembrava o dia em que a entrevistamos, ou, mais precisamente, eu a entrevistei enquanto Nick fi cava sentado no canto distraído, fi ngindo participar do processo.

No fi nal, ele levantou os dois polegares em sinal de aprovação, dizendo que ela era “doce e inteligente o suf i ciente” e me acusou de ser exigente demais quando apontei os sinais de perigo, a saber, seu relógio Rolex, as sandálias Jimmy Choo e uma bolsa da Luis Vuittton gigantesca, além, é claro, de sua declaração de que não “curtia” muito fazer o trabalho doméstico.

Mas, eu tinha de admitir, ela mostrou uma boa af i nidade com as crianças, principalmente com Ruby, que pareceu adorá-la instantaneamente, ou ao menos adorou seu cabelo comprido e as unhas dos pés pintadas com esmalte magenta. E era melhor que as outras três que entrevistamos antes. Uma quase não falava inglês, a seguinte era vegan e se recusava a tocar em um pedaço de carne, e a terceira era a perfeita Mary Poppins, com referências obviamente fi ctícias. E, nesse momento, Carolyn é meu único caminho para a liberdade, ou ao menos minhas dez horas de liberdade por semana. Então eu disse seu nome da maneira mais calma possível.

— Uh-huh? — ela disse, estalando um chiclete na boca, enquanto eu plane?ava meu discurso de “bem que eu avisei” para Nick.

— Preciso subir e fazer algumas coisas antes que você vá embora. Você poderia ler um livro para eles, por favor?

— Claro — respondeu Carolyn de maneira arrogante.

— E pode colocar uma roupa mais quente em Ruby?

— Claro — disse novamente. — Sem problemas.

— Muito obrigada — disse com uma paciência exagerada. Então dei um bei?o rápido nas crianças, ao qual apenas Frank retribuiu, e fui para o meu escritório, que é mais uma alcova do lado de fora de nosso quarto. É uma das muitas coisas que eu gostaria de mudar em nossa casa, uma casa em estilo T udor construída em 1912, que é rica em charme, porém pobre em espaços funcionais.

Por meia hora respondi a alguns e-mails, encomendei diversos presentes atrasados para bebês e baixei centenas de fotos. Então, algo me forçou a abrir um documento antigo, um plano de uma aula que dei chamada “Jogos e Esportes no Romance Vitoriano”. Foi há apenas dois anos, mas parecia ter sido há muito mais tempo, e senti saudade dos debates que mediava, das palestras que abordavam o ?ogo de xadrez e a política sexual no livro A Moradora de Wildfell Hall, os ?ogos sociais de A Feira das Vaidades e os ?ogos ao ar livre e as danças elegantes de O Prefeito de Casterbridge.

Então, quando ouvi um grito alto de Ruby que identif i quei como grito de alegria e não de dor, senti-me dominada pelo arrependimento, uma angústia intensa de saudade da vida que tinha. Do oásis de calma do meu escritório no campus, das tardes em que tinha de me encontrar com meus alunos, do estímulo intelectual e, honestamente, da possibilidade de fugir da minha vida mundana. Uma sensação de perda tomou conta de mim e disse a mim mesma para me acalmar. Eu só estava tendo um dia ruim, só estava chateada com a discussão da noite anterior com Nick, com a conversa perturbadora com April, com o caos no andar de baixo. Que é o que geralmente acontece na vida — quando há problemas em uma esfera, eles se espalham para todas as outras.

Peguei o telefone para ligar para Cate, para ter um pouco do incentivo do qual eu tanto precisava. Mas tudo o que Cate quer é ter minha vida, ao menos é isso que ela acha que quer, e na verdade não quero ninguém me dizendo quanto minha vida é ótima. Não estou a fi m de conversar nem com Rachel, que sempre sabe dizer a coisa certa, talvez porque, por mais que ela reclame, eu acredite que no fundo ela adore ser uma mãe em tempo integral.

Pensei até em ligar para o Nick, só para espairecer e desabafar sobre a April, mas sei que ele não poderá conversar. E, além disso, posso até imaginar sua ótima solução para o problema, algo como “Consiga seu trabalho de volta” ou “Encontre novas amigas” ou “Mande a Carolyn embora”.

Como se fosse tão simples assim, acho. Como se qualquer coisa na vida fosse tão simples assim.

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