04

[ VALERIE ]

Na manhã seguinte, Charlie foi transferido para o outro lado da rua, do pronto-socorro do Hospital Geral de Massachusetts para o Hospital Infantil Shriners, que, como foi informado inúmeras vezes a Valerie, é um dos principais centros de tratamento de queimados do país. Ela sabia que estavam prestes a iniciar uma longa e trabalhosa luta quando chegassem lá, mas também se sentia aliviada porque o estado de Charlie não era mais um caso de vida ou morte, um sentimento que só aumentou quando avistou o Dr. Russo, que os esperava no novo quarto.

Não haviam se passado nem 24 horas desde a primeira conversa entre eles, mas ela já conf i ava mais nele do que jamais confiara em qualquer outra pessoa no mundo.

Quando ele foi até ela, com uma prancheta na mão, Valerie percebeu quanto seus traços chamavam sua atenção, admirando a curva de seu lábio inferior, seu nariz elegante e seus olhos castanhos e brilhantes.

— Olá — disse, formando cada sílaba cuidadosamente, com conduta e postura formais. Mesmo assim, havia nele algo familiar, e até consolador, e Valerie rapidamente cogitou se seus caminhos ?á não haviam se cruzado antes, em algum lugar, em um contexto bem diferente.

— Oi — respondeu, sentindo uma ponta de constrangimento por ter caído aos prantos na noite anterior.

Ela gostaria de ter sido mais forte, mas disse a si mesma que ele, com certeza, ?á vira de tudo diversas vezes e que provavelmente a veria chorar muitas outras vezes a partir de então.

— Como está? — perguntou com uma preocupação sincera. — Conseguiu dormir um pouco?

— Um pouco — respondeu mesmo que tenha passado a maior parte da noite ao lado de Charlie. Perguntou-se por que estava mentindo, e, mais, como qualquer mãe no mundo conseguiria dormir em uma situação como aquela.

— Bom, bom — ele disse, mantendo contato visual por vários segundos antes de virar-se para Charlie, que estava acordado, mas ainda sob os efeitos de sedativos pesados.

Ela o observou enquanto ele examinava o rosto e a orelha de Charlie com a a?uda ef i ciente de uma enfermeira, os dois trocando instrumentos, pomadas, gaze e comentários calmos. Então ele passou a examinar a mão de Charlie, utilizando uma pinça para remover um curativo de sua pele chamuscada e intumescida. O instinto de Valerie dizia para olhar para o outro lado, mas não se deixou levar. Em vez disso, superou uma onda de náusea e memorizou a imagem de sua pele manchada, avermelhada e rosada em algumas partes e preta em outras. Ela tentou comparar o estado de sua pele como estava poucas horas antes, da última vez em que os curativos foram trocados, e estudou o rosto do Dr.

Russo, procurando por alguma reação.

— Como ele está? — perguntou ansiosa, incapaz de ler sua expressão.

Dr. Russo respondeu de maneira rápida e gentil:

— Def i nitivamente nos encontramos em um momento crítico. Sua mão está um pouco mais inchada em razão dos líquidos que estão sendo ministrados. Estou um pouco preocupado com o fl uxo sanguíneo, mas ainda é cedo para dizer se precisará de uma escarotomia.

Antes que ela perguntasse, ele começou a explicar esse assustador termo médico de uma maneira mais simples:

— A escarotomia é um procedimento cirúrgico utilizado em queimaduras de espessura total de terceiro grau quando há edema, ou se?a, inchaço, limitando a circulação.

Valerie se esforçava para processar essas informações à medida que o Dr. Russo continuava a explicar, só que mais lentamente desta vez:

— As queimaduras deixaram a pele muito rígida e dura e, conforme Charlie recebe hidratação, o tecido queimado incha e se torna ainda mais tensionado. Isso produz pressão e, se ela continuar aumentando, a circulação na área pode ser pre?udicada. Caso isso ocorra, teremos de fazer diversas incisões no local para aliviar a pressão.

— Existe algum aspecto negativo nesse procedimento?

— perguntou, sabendo instintivamente que sempre há um aspecto negativo para tudo.

Dr. Russo acenou que sim.

— Bem, é sempre bom evitar cirurgias se puder — esclareceu pacientemente, tomando cuidado com as palavras. — Há um pequeno risco de hemorragia e infecção, mas geralmente conseguimos controlar. No geral, não estou preocupado demais.

A mente de Valerie ateve-se à palavra demais, analisando as nuances e as gradações da preocupação do médico, o signif i cado exato da frase. Como se percebesse isso, o Dr. Russo sorriu suavemente, apertou o pé de Charlie coberto por duas camadas de cobertores e disse:

— Estou muito satisfeito com o progresso de seu fi lho e acredito que estamos caminhando na direção de uma ótima recuperação. Ele é forte, sei disso.

Valerie assentiu, dese?ando que seu fi lho não tivesse de ser forte. Dese?ando que ela não tivesse de ser forte por ele.

Ela ?á estava cansada de ser forte mesmo antes de tudo isso acontecer.

— E o seu rosto? — indagou.

— Sei que é difícil, mas também temos de esperar.

Levará alguns dias até que possamos determinar se essas queimaduras são de segundo ou terceiro grau. Quando soubermos, poderemos estabelecer um plano de ação.

Valerie mordeu o lábio inferior e acenou positivamente.

Vários segundos de silêncio se passaram quando ela notou que sua barba negra havia crescido desde a noite anterior, formando uma sombra sobre seu maxilar e seu queixo. Ela se perguntou se ele havia ido para casa na noite anterior, e se tinha fi lhos.

Por fi m, ele disse:

— Por enquanto, vamos apenas manter a pele limpa e coberta e observaremos seu progresso de perto.

— T udo bem — ela respondeu, acenando positivamente mais uma vez.

— Nós observaremos seu progresso de perto. — disse o Dr. Russo tocando em seu cotovelo. — Você pode ir para casa tentar dormir ho?e à noite.

Valerie tentou sorrir.

— Vou tentar — ela disse, mentindo outra vez.

Mais tarde naquela noite, Valerie estava bem acordada em sua cadeira de balanço pensando no pai de Charlie e na noite em que se conheceram em um bar em Cambridge, poucos dias depois de sua grande briga com Laurel. Ela chegou sozinha, sabendo que aquela era uma má ideia mesmo antes de avistá-lo em um canto, também sozinho, fumando um cigarro atrás do outro, tão misterioso e atraente, além de parecer dominado pela angústia. Ela decidiu que precisava se divertir um pouco e, se tivesse alguma chance, sairia de lá com ele. E foi exatamente o que fez três horas mais tarde, depois de quatro taças de vinho.

Seu nome era Lionel, mas todos o chamavam de Lion, o que ?á serviria de aviso. Para começar, parecia um leão, com uma pele incrivelmente dourada, olhos verdes, uma ?uba espessa de cabelos enrolados e mãos cale?adas. E havia o seu temperamento, remoto e lânguido, com surtos de fúria.

E, assim como um leão, não via nenhum problema em deixar que sua leoa fi zesse todo o trabalho — se?a lavar suas roupas, cozinhar, se?a até mesmo cuidar de suas contas. Valerie atribuía esse comportamento à sua preocupação com o trabalho, mas Jason insistia que sua preguiça era causada pela sensação de direito de posse, típica de mulheres bonitas.

Ela entendia o que seu irmão queria dizer, mesmo quando estava enlouquecida de paixão, quando a maioria das mulheres geralmente fi ca cega de atração, ela simplesmente não se importava e, na verdade, achava que seus defeitos eram atraentes, românticos, característicos de um homem que era tanto escultor quanto pintor.

— Ele é um artista — ela dizia o tempo todo a Jason, como se isso ?ustif i casse suas falhas. Ela sabia como isso soava, sabia que Lion era um clichê, um artista temperamental e egoísta, e que ela era um clichê maior ainda por ter se apaixonado por ele. Havia visitado o ateliê de Lion e visto seu trabalho, mas ainda não o tinha visto trabalhando. Mesmo assim, podia imaginá-lo perfeitamente esparramando tinta vermelha sobre telas gigantes com um movimento rápido de seu pulso. Os dois ?untos, reencenando a cena do vaso de porcelana como Demi Moore e Patrick S?ayze no fi lme Ghost, e de fundo a música Unchained Melody.

— Que se?a — disse Jason, revirando os olhos. — Só tome cuidado.

Valerie prometeu que tomaria, mas havia algo em Lion que a fez ?ogar toda a cautela para o espaço, além dos preservativos, ?á que transavam em todos os lugares, em todo o ateliê de Lion, no apartamento de Valerie, no chalé em Vineyard onde ele cuidava de cães (que, depois, Valerie soube que eram o chalé e o cachorro de sua ex-namorada, que foi a razão da primeira grande briga entre eles) e até mesmo no banco traseiro de um táxi. Era o melhor sexo que Valerie ?á havia feito na vida, o tipo de atração física que a fez sentir-se invencível, como se tudo fosse possível.

Infelizmente, a euforia logo passou e foi substituída por ciúme e paranoia conforme Valerie ia descobrindo no apartamento de Lion perfumes diferentes em seus lençóis, f i os loiros em seu banheiro, marcas de batom em uma taça de vinho que ele nem se dera ao trabalho de colocar na lava-louças. Ela o interrogava em fúria, mas por fi m acreditava em suas histórias sobre uma prima que viera visitá-lo, sua professora do instituto de artes, a garota que ele conheceu na galeria que ?urou que era lésbica.

Durante todo esse tempo, Jason fez o que p?de para convencer Valerie que Lion não valia tamanho sofrimento.

Ele era só outro artista perturbado e pouco talentoso, nada além disso. Valerie fi ngia concordar, queria concordar, mas não conseguia acreditar que isso fosse verdade. Em primeiro lugar, Lion não era tão perturbado assim — não tinha problemas com drogas nem álcool e nunca havia tido problemas com a polícia. E, em segundo lugar, porém infelizmente, ele era talentoso sim — “brilhante, perceptivo e instigante”, de acordo com o crítico do ?ornal Boston Phoenix que analisou sua primeira exposição na galeria da Rua Ne?bury — por sinal uma galeria que pertencia a uma ?ovem socialite atrevida e elegante chamada Pondera, que viria a ser a próxima conquista de Lion.

— Pondera? Dá para ser mais pretensioso? — disse Jason depois de Valerie pegá-los se bei?ando na rua em frente ao apartamento de Lion e correr para casa, em frangalhos, para contar a seu irmão. — Lion e Pondera — ele continuou — Até que se merecem, com esses nomes então.

— Eu sei — disse Valerie, obtendo algum conforto do escárnio de seu irmão.

— Pondera isso? — brincou Jason, levantando as duas mãos e os dedos do meio.

Valerie sorriu, mas não conseguiu contar a Jason o principal problema, pois no dia anterior havia feito um teste de gravidez e descobrira que estava grávida de Lion. Ela não sabia exatamente por que estava escondendo isso de seu irmão, talvez fosse por vergonha, mágoa ou pela esperança de não ser verdade — ou talvez porque esperasse que tivesse feito o primeiro teste de gravidez com falso-positivo na história dos testes de farmácia. Alguns dias depois, quando o exame de sangue, no consultório do médico, conf i rmou que havia de fato um bebê em sua barriga, ela chorou em seu quarto e pediu a Deus por um aborto espontâneo, ou coragem para ir até uma clínica na Avenida Common?ealth onde várias amigas foram na época de faculdade. Mas, lá no fundo, sabia que não conseguiria ir até lá, talvez por causa de sua criação católica, ou, provavelmente, pelo fato de realmente querer fi car com o bebê. O fi lho de Lion. Ela negou veementemente que isso tivesse qualquer coisa a ver com o querer de volta, mas continuava ligando para ele, incessantemente, vislumbrando uma mudança, uma transformação de caráter.

Ele nunca atendeu o telefone, forçando-a a deixar mensagens vagas e desesperadas às quais ele nunca retornaria, mesmo quando lhe informou que tinha algo “muito importante” para dizer.

— Ele não merece saber — disse Jason, declarando que Lion era a primeira pessoa que de fato odiava no mundo.

— Mas esse bebê não merece ter um pai? — Valerie perguntou.

— Se a escolha for entre Lion ou nada, a criança estará melhor com nada.

Valerie compreendeu o que Jason quis dizer, entendendo que há um sofrimento maior quando nos decepcionamos constantemente do que quando existe apenas um vazio.

Mas, para ela, não contar sobre o bebê era tão errado quanto realizar um aborto. Então, em uma noite solitária no último trimestre da gravidez, ela decidiu ligar para Lion pela última vez, dar-lhe uma última chance. Mas, quando discou seu número, um estranho com sotaque característico do Oriente Médio disse à Valerie que ele havia se mudado para a Califórnia sem deixar informações. Ela não tinha certeza se isso era verdade ou se aquele era apenas um cúmplice de Lion, mas de qualquer maneira fi nalmente desistiu, assim como tinha desistido de Laurel e de seus amigos de Southbridge. Não havia mais nada que pudesse fazer, decidiu — e se consolava de maneira surpreendente com aquela sensação de impotência, lembrando-se disso durante todos os momentos difíceis que se seguiram: quando entrou em trabalho de parto, quando levou Charlie para casa, quando ele a manteve acordada tarde da noite com cólicas, quando teve infecção de ouvido, febre alta e também quando se machucou. Lembrou-se disso quando Charlie atingiu idade suf i ciente e perguntou sobre seu pai. Como Valerie temia, foi de partir o coração. Contou-lhe a verdade modif i cada, uma verdade que ela havia criado havia anos — que seu pai era um artista talentoso que teve de ir embora antes de Charlie nascer e que ela não sabia ao certo onde ele estava naquele momento. Pegou o único quadro que tinha de Lion, uma pintura abstrata cheia de círculos, todos em tons de verde, e o pendurou cerimoniosamente no quarto de Charlie. Então lhe mostrou a única foto que tinha de seu pai, uma imagem embaçada que guardava em uma velha caixa em seu armário. Perguntou-lhe se queria fi car com a foto, oferecendo-se para emoldurá-la se quisesse, mas ele não quis, e a colocou de volta na caixa.

— Ele nunca te conheceu — disse Valerie, tentando conter suas lágrimas — Se te conhecesse, tenho certeza de que te amaria tanto quanto eu.

— Ele vai voltar? — perguntou Charlie, com os olhos tristes, porém sem chorar.

Valerie abanou a cabeça em forma de negação e disse:

— Não, meu amor, ele não vai voltar.

Charlie aceitou a resposta, assentindo cora?osamente, enquanto Valerie dizia a si mesma que não havia mais nada que pudesse fazer — com exceção de ser uma boa mãe, a melhor mãe que pudesse ser.

Mas agora, anos mais tarde, encarando o teto do hospital, começava a duvidar disso, duvidar de si. Pegou-se pensando que deveria ter se esforçado mais para encontrar Lion. Dese?ando que seu fi lho tivesse um pai. Dese?ando que eles não estivessem tão sozinhos.

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Comments

Divina Santos

Divina Santos

de uma chanse pr outra pessoa,ñ fique pensando em quem ñ merece

2024-04-03

0

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