03

[TESSA ]

Em algum momento no meio da noite, acordei com a presença terna de Nick ao meu lado. Com os olhos ainda fechados, passei minha mão sobre seu ombro, descendo pelas suas costas nuas, sua pele estava perfumada por causa do banho que tomou, como de costume, assim que voltou do hospital e senti uma onda de atração que foi rapidamente desfeita por uma dose ainda maior de cansaço, o que era comum desde que Ruby nasceu — e, com certeza, desde a chegada de Frank. Ainda amo fazer amor com meu marido, tanto quanto antes, mas após vencermos a inércia.

O que acontece é que, ho?e em dia, pref i ro dormir a fazer qualquer outra coisa — chocolate, vinho tinto, HBO e sexo.

— Olá — ele sussurrou com a sua voz abafada pelo travesseiro.

— Não te ouvi chegar… que horas são? — pergunto esperando que se?a meia-noite e não 7 horas, o horário em que as crianças acordam automaticamente, mais implacáveis que meu despertador e sem opção de botão de soneca.

— Duas e meia.

— Hora de ir ao dentista — murmuro.

É É uma de suas brincadeiras com Ruby:

— Que horas são, papai?

Nick faz uma careta, aponta para sua boca e diz:

— Duas e meia.4 Hora de ir ao dentista. — T odo mundo adora.

— Uh-huh — Nick diz distraído, demonstrando claramente que não está a fi m de conversa. Contudo, quando abri os olhos e o vi virar seu corpo e encarar f i xamente o teto, a curiosidade tomou conta de mim. Então perguntei, da maneira mais casual que pude, dada a natureza da minha indagação, se era algum defeito congênito, problema muito frequente no trabalho de Nick.

Ele suspirou e disse que não.

Hesitei e tentei adivinhar mais uma vez:

— Um acidente de carro?

— Não, T ess — falou tão pacientemente que acabou por entregar sua impaciência. — Foi uma queimadura, um acidente.

Ele adicionou essa última frase como uma explicação.

Em outras palavras, não era caso de maus-tratos;

infelizmente, longe de ser um dado, Nick me disse uma vez que cerca de 10% de todas as queimaduras pediátricas eram resultantes de maus-tratos.

Mordi meu lábio inferior, minha mente fervilhando com as possibilidades de sempre, uma panela de água fervente caindo do fogão, uma banheira com água escaldante, um incêndio, uma queimadura química, e sou incapaz de resistir à pergunta seguinte. A pergunta de como isso aconteceu. É a pergunta à que Nick geralmente resiste, sua resposta costuma ser algo como:

— Que diferença faz? Foi um acidente, acidentes são assim, simplesmente acontecem.

Nesta noite ele limpou a garganta e se resignou a me contar o que aconteceu. Um garoto de 6 anos estava assando marshmallows, e de alguma maneira caiu na fogueira e queimou sua mão e o lado esquerdo do rosto.

O discurso de Nick foi rápido e desapegado, como se estivesse me contando a previsão do tempo. Mas sei que é apenas uma encenação — um disfarce muito bem treinado.

Sei que provavelmente fi cará acordado uma boa parte da noite, incapaz de cair no sono por causa da adrenalina desta noite, e, mesmo amanhã pela manhã, ou mais provavelmente à tarde, descerá as escadas com uma expressão distante, fi ngindo estar envolvido com sua própria família enquanto pensa na mão e no rosto daquele garotinho.

A medicina é uma amante ciumenta, penso, uma expressão que ouvi pela primeira vez durante o primeiro ano de residência de Nick, da esposa amarga de um médico que, soube depois, trocou seu marido por seu personal trainer. Jurei, então, que nunca me sentiria assim. Que sempre veria a nobreza do trabalho de meu marido, mesmo que isso signif i casse certa quantidade de solidão.

— É muito grave? — perguntei a Nick.

— Poderia ser pior — respondeu. — Mas não é bom.

Fechei meus olhos, procurando por um lado positivo em tudo isso, sabendo que esse é o papel implícito que me cabe em nosso relacionamento. O Nick pode ser o eterno otimista no hospital, transbordando conf i ança, até vanglorioso. Mas aqui em casa, em nossa cama, ele depende de mim para obter esperança, mesmo quando está em silêncio, impenetrável.

— Seus olhos foram afetados? — pergunto por fi m, lembrando que Nick uma vez conf i denciou quanto era complexo reparar o que todos acreditam ser a ?anela para a alma.

— Não — disse enquanto virava de lado, voltando-se para mim. — Seus olhos estão perfeitos. Grandes e azuis… como os de Ruby.

Sua voz desapareceu como acredito ser um sinal de entrega, quando Nick compara um paciente a Ruby ou Frank, sei que começara a fi car obcecado.

— Além disso, ele tem um médico até que bom — eu disse, por fi m.

Ouvi um pequeno sorriso sair na voz de Nick enquanto repousava sua mão em meu quadril e dizia:

— Sim, ele tem essa vantagem, não tem?

Na manhã seguinte, logo depois que Nick voltou ao hospital, preparei o café da manhã resistindo a um sho? de reclamações estrelado por minha fi lha. Para se ter uma ideia, Ruby não gosta de acordar cedo, outro traço herdado de seu pai. Em 15 minutos, ela ?á havia reclamado que Frank a estava “encarando”, que sua banana estava muito mole e que preferia a torrada que o papai fazia na chapa à minha, feita na torradeira.

Assim, quando o telefone tocou, atendi rapidamente, sentindo o alívio de uma companhia adulta e civilizada (outro dia, fi quei empolgada quando um entrevistador de pesquisas de opinião ligou), ainda mais quando vi o nome de Cate no identif i cador de chamadas do telefone. Cate Hof f man e eu nos conhecemos há quase 16 anos em uma festa fora do campus na primeira semana como calouras da Universidade de Cornell, quando fomos formalmente apresentadas ao mundo universitário de ?ogos como beer pong,5 quarters6 e “Eu nunca”.7 Vários drinques mais tarde, depois de perguntarem inúmeras vezes se éramos irmãs, e de reconhecermos algumas semelhanças como lábios carnudos, nariz pronunciado e luzes loiras, prometemos cuidar uma da outra — uma promessa que cumpri mais tarde, salvando-a de um mauricinho com olhar malicioso, membro de uma fraternidade universitária, levando-a até seu dormitório e segurando seu cabelo enquanto vomitava as tripas em uma hera. A experiência nos aproximou e continuamos melhores amigas nos quatro anos seguintes e depois da formatura. De nossos 20 e poucos anos em diante, nossa vida tomou caminhos diferentes ou, mais precisamente, a minha mudou e a dela permaneceu praticamente igual. Ela ainda vive na cidade (no mesmo apartamento em que uma vez moramos ?untas), ainda namora um homem atrás do outro e ainda trabalha com televisão. A única diferença de fato é que agora ela trabalha na frente das câmeras, apresentando um programa de entrevista da televisão a cabo chamado Cate’s Corner e, muito recentemente, obteve um pouco de fama na área de Nova York.

— Olhe, Ruby? É a tia Cate? — disse com extremo ânimo, esperando que meu entusiasmo surtisse algum efeito sobre minha fi lha, que, nesse momento, estava emburrada, pois me recusei a colocar mais chocolate em seu leite. Atendi o telefone e perguntei a Cate o que estava fazendo acordada tão cedo.

— Estou indo à academia, comecei um novo regime para entrar em forma — disse Cate. — Preciso perder alguns quilinhos.

— Ah, precisa nada — disse revirando os olhos. Cate tem um dos corpos mais lindos que ?á vi, mesmo entre as mulheres que nunca tiveram fi lhos ou as que foram “retocadas”. Infelizmente, as pessoas não acham mais que somos irmãs.

— O.k., talvez não na vida real. Mas você sabe que a câmera engorda no mínimo quatro quilos — disse, mudando abruptamente de assunto, como sempre. — Então, o que você ganhou? O que você ganhou?

— O que eu ganhei? — perguntei, enquanto Ruby reclamava que queria sua torrada “inteira”, uma decisão radical, ?á que sempre exige que sua torrada se?a cortada em “pequenos pedacinhos quadrados”, todos exatamente do mesmo tamanho e sem casca. Cobri o telefone com a mão e disse:

— Querida, acho que alguém esqueceu a palavra mágica.

Ruby me olha pasma, indicando que não acredita em mágica. Até agora, ela é a única criança em idade pré-escolar que conheço que ?á questionou a veracidade do Papai Noel, ou pelo menos a logística de suas entregas.

Contudo, mágica ou não, não me mexo até ela retif i car seu pedido.

— Quero inteira, por favor.

Aceno enquanto Cate continua ansiosamente:

— De aniversário de casamento. O que o Nick te deu?

Os presentes de Nick constituem um dos tópicos favoritos de Cate, talvez por nunca ter passado da fase dos buquês de fl ores com cartões escritos “obrigado pela noite passada”. Por isso, diz que vive indiretamente através de mim. Em suas palavras, tenho a vida perfeita — palavras que ela solta em um tom que fi ca entre o dese?oso e o acusatório, dependendo do último encontro que teve.

Não importa quantas vezes eu diga que não é bem assim e que morro de inve?a de sua agitada agenda social, de seus encontros picantes (incluindo um ?antar recente com um ?ogador do Yankee) e de sua absoluta e maravilhosa liberdade, o tipo de liberdade para a qual ninguém dá valor, até que se tenha fi lhos. E não importa quanto eu conte, em meus desabafos, sobre as queixas típicas de uma mãe que não trabalha, mais precisamente da frustração de terminar o dia no mesmo lugar onde começou, e do fato de eu, às vezes, passar mais tempo com o Elmo, a Dora e o Barney que com o meu marido. Nada disso consegue convencê-la.

Ainda assim, ela trocaria sua vida comigo em um piscar de olhos.

Quando comecei a responder à pergunta de Cate, Ruby soltou um grito assustador:

— Nãããããão, mamãe? Eu disse inteira?

Fiquei paralisada com a faca no ar, percebendo que acabara de cometer um erro fatal, fazendo quatro cortes horizontais em sua torrada. Droga, pensei enquanto Ruby exigia que eu colasse os pedaços de pão de volta, acrescentando à sua atuação uma corrida melodramática até o armário onde guardávamos os materiais de artes.

Enquanto ela pegava um tubo de cola entrando na minha frente de maneira desaf i adora, eu considerava a possibilidade de provocá-la passando de fato a cola sobre sua torrada “com um R cursivo, igual ao do papai”.

Entretanto, em vez disso, disse com toda a calma que me cabia:

— Ruby, você sabe que não pode colar comida.

Ela me encarou como se eu falasse grego, o que exigiu que eu fosse mais clara:

— Você terá de sobreviver com os pedaços.

Ouvindo essa pequena dose de disciplina, ela continuou a sofrer pela torrada que poderia ter sido inteira. Pensei que uma maneira fácil de consertar as coisas teria sido comer eu mesma a torrada e fazer outra para ela, mas havia algo tão irritante em sua expressão que me encontrei recitando em silêncio as palavras do pediatra, de vários livros e de minhas amigas mães que também não trabalham: “Não se renda às exigências de seus fi lhos”. Uma fi losof i a totalmente oposta ao ditado que costumo defender:

“Escolha suas batalhas” — que confesso ser o código secreto para “Mantenha-se fi rme apenas se for conveniente;

caso contrário, satisfaça a vontade do outro a fi m de facilitar sua vida”. Além do mais, pensei enquanto me preparava para um impasse terrível, estava tentando evitar carboidratos desde aquela manhã.

Então, com as minhas celulites resolvendo o caso, coloquei determinadamente o prato com a torrada diante dela sobre a mesa e anunciei:

— É isso ou nada.

— Nada, então? — ela gritou.

Mordi os lábios e encolhi os ombros como se dissesse “Pode fazer greve de fome, então” e saí para a sala de TV onde Frank comia silenciosamente seus cereais secos, sem leite, um de cada vez, a única coisa no mundo que ele come no café da manhã. Passando minha mão por seus cabelos macios, suspiro no telefone e digo:

— Desculpa, Cate. Onde estávamos?

— Falando sobre seu aniversário de casamento — disse Cate, cheia de expectativas, esperando ansiosamente que eu descrevesse uma noite romântica perfeita, o conto de fadas a que ela tanto se apega e que tanto dese?a.

Na maioria dos dias, odeio desapontá-la. Porém, enquanto escutava os soluços cada vez mais altos de minha f i lha e a via tentar enrolar sua torrada como uma massinha de modelar, só para provar que eu estava errada e que aquele alimento podia sim ser colado, senti prazer em dizer a Cate que Nick havia sido chamado pelo hospital no meio do ?antar.

— Ele não mudou seu horário de plantão? — perguntou decepcionada.

— Não, ele esqueceu.

— Nossa, que chato — disse. — Sinto muito.

— Pois é.

— Então vocês não trocaram presentes? Nem mesmo quando ele chegou em casa?

— Não — respondi. — Combinamos de não darmos presentes este ano. Estamos um pouco apertados.

— Sim, claro — concordou Cate, recusando-se a acreditar em outra coisa sobre a minha vida, que cirurgiões plásticos não são podres de ricos, pelo menos os que trabalham em hospitais universitários a?udando crianças, e não em clínicas particulares realizando implantes de silicone.

— É verdade — eu falei. — Abrimos mão de uma de nossas fontes de renda, lembra?

— Que horas ele chegou em casa? — Cate perguntou.

— T arde. T arde demais para s-e-x-o — disse torcendo para que minha fi lha superdotada não memorizasse as quatro letras e as proferisse para, digamos, minha sogra, Connie, que disse há pouco tempo que achava que as crianças viam muita TV.

— E você? — indaguei, lembrando que ela havia tido um encontro na noite anterior. — Aconteceu algo de interessante?

— Não, o período de seca continua — respondeu.

— O quê? A seca de cinco dias? — brinquei.

— Cinco semanas, para falar a verdade — ela respondeu.

— O sexo nem foi o problema, levei um bolo.

— Ah, cala a boca — disse, perguntando-me que homem poderia dar-lhe um bolo. Além de seu corpo perfeito, ela também é engraçada, inteligente e uma grande fã de esportes, capaz de falar sem parar sobre beisebol como a maioria das mulheres fala das últimas fofocas de Holly?ood.

Em outras palavras: ela é o sonho da maioria dos homens.

T udo bem que ela pode ser bastante carente e assustadoramente insegura, mas eles nunca saberiam disso logo de início. Em outras palavras, é possível que os homens terminem com ela, mas nunca deem um bolo.

Ruby avisa do outro c?modo que não é educado dizer “cala a boca”, enquanto Cate continua:

— Sim. Antes da noite passada, sempre tive isso ao meu favor, nunca havia levado um bolo e nunca saí com homem casado. Sempre achei que a primeira era minha recompensa pela segunda. Que carma?

— T alvez fosse casado.

— Não, def i nitivamente não era casado. Fiz minha lição de casa.

— Espere um pouco. Esse era o contador do eHarmony8 ou o piloto da sua última viagem?

— Nenhum dos dois, era o botânico da Starbucks.

Eu assobiava espiando escondida no canto do c?modo quando vi Ruby dar uma mordida furtiva na torrada. Ela odeia perder quase tanto quanto seu pai, que não consegue nem deixá-la ganhar em Candy Land.9 — Nossa? — disse. — Você levou um bolo de um botânico, incrível.

— Nem me diga — ela concordou —, e ele nem mandou uma mensagem de celular explicando-se ou pedindo desculpas. Um simples “Sinto muito, Cate, mas acho que pref i ro fi car com minha samambaia ho?e à noite”.

— Bem, talvez apenas tenha se esquecido — sugeri.

— T alvez tenha me achado velha demais — ela sup?s.

Abri a boca para refutar essa declaração, mas não consegui pensar em nada além do velho bordão, dizendo que o homem certo para ela está em algum lugar e que ela vai encontrá-lo em breve.

— Não sei não, T essa. Acho que você pode ter pego o último que havia sobrado.

Pela pausa que ela fez, eu ?á sabia exatamente o que diria a seguir, e logo adicionou em tom sádico:

— Os últimos dois melhores, sua desgraçada.

— Você pode me dar uma ideia de quando vai parar de falar sobre ele? — perguntei, referindo-me ao meu ex-noivo.

— Só para eu saber?

— Que tal nunca? — ela respondeu. — Ou, digamos, quando eu me casar. Mas espere aí. Essa é a mesma coisa que nunca, não é?

Soltei uma risada e disse que tinha de ir, ?á que minha memória estava me levando até Ryan, meu namorado da faculdade, e ao nosso noivado. Estávamos a poucas semanas de nosso casamento, concentrados nos roteiros para a lua de mel, nas provas fi nais do vestido e nas aulas para a primeira dança do casal. Os convites ?á haviam sido enviados, nossa lista de presentes estava completa e nossas alianças gravadas. Para todos em minha vida, eu era uma noiva típica e resplandecente, com os braços torneados, a pele bronzeada e o cabelo brilhante.

Literalmente resplandecente. Para todos, com exceção de minha terapeuta, Cheryl, que era quem, todas as terças-feiras às 19 horas, me a?udava a examinar a linha turva entre a ansiedade normal que antecede o casamento e o medo de compromisso proveniente do divórcio recente e doloroso de meus pais.

Pensando agora, a resposta era óbvia, a mera indagação sugerindo um problema, mas havia tantos fatores ofuscando a questão, confundindo meu coração. Para início de conversa, Ryan era tudo o que eu conhecia. Namorávamos desde o segundo ano na Cornell e perdemos a virgindade ?untos. Eu não conseguia nem imaginar bei?ar outro homem, muito menos amar outro homem. Tínhamos o mesmo círculo de amigos com quem compartilhávamos preciosas recordações dos tempos de faculdade e não queria perdê-los com um possível fi m no relacionamento. T ambém éramos apaixonados por literatura, fazíamos especialização em língua inglesa e éramos professores em escolas do ensino médio, embora eu estivesse prestes a começar a pós-graduação em Columbia, com o sonho de me tornar uma professora universitária. Na verdade, apenas alguns meses antes eu o havia dissuadido de se mudar para a cidade comigo, convencendo-o a deixar seu emprego e sua amada cidade natal de Buf f alo para viver uma vida mais excitante. E, embora fosse mesmo excitante, também era assustador. Eu cresci próximo a Westchester, fazendo viagens constantes para Manhattan com meu irmão e meus pais, mas morar na cidade era outra coisa, e Ryan era como minha rocha e meu porto seguro nesse mundo real, incerto e assustador. Ele era conf i ável, sincero, gentil e divertido, tinha uma família grande e barulhenta, e seus pais eram casados havia mais de 30 anos — um bom sinal, como dizia minha mãe.

Perfeito em tudo.

Por fi m, havia as doces declarações do próprio Ryan de que éramos perfeitos um para o outro. Que eu estava analisando demais as coisas, sendo neurótica como sempre.

Ele realmente acreditava em nosso relacionamento — o que, na maioria dos dias, era suf i ciente para que eu também acreditasse.

— Você é o tipo de garota que nunca estará totalmente pronta — ele me disse depois de uma sessão com Cheryl, contada a ele em detalhes apenas minimamente editados.

Estávamos sentados em um restaurante italiano no Village,10 aguardando pelo nhoque do dia, quando ele estendeu seu braço longo e delgado sobre a mesa e acariciou minha mão.

— É uma das coisas que mais amo em você.

Lembro-me de levar isso em consideração enquanto analisava sua expressão pragmática de decidir, com certo grau de tristeza e perda, que ele provavelmente estaria certo. Que talvez eu não estivesse preparada para aquele tipo de paixão incondicional e avassaladora que havia lido em livros, visto em fi lmes e mesmo ouvido alguns amigos, incluindo Cate, descrever. T alvez eu tivesse que me virar com os alicerces de nosso relacionamento — conforto, compatibilidade e compaixão. T alvez o que tínhamos fosse bom o suf i ciente e eu pudesse procurar pelo resto da vida e não encontrar nada melhor.

— Eu estou totalmente pronta — disse por fi m, convencendo-me de que essa era a verdade. Ainda não tinha certeza se estava decidida, mas, pelo menos em minha mente, a questão estava resolvida. Eu me casaria com Ryan. Decisão fi nal, última palavra.

Até três dias depois, ou se?a, quando vi o Nick pela primeira vez.

Eu estava em um vagão lotado do metr?, encarando minha viagem matinal até a aula, quando ele entrou duas paradas depois da minha, segurando uma caneca térmica de café grande e vestindo um avental cirúrgico azul-acinzentado. Seu cabelo negro e ondulado era mais longo do que é ho?e e lembro-me de pensar que ele se parecia mais com um ator que com um médico — e que talvez fosse um ator fazendo o papel de um médico, a caminho do set de fi lmagens. Lembro-me de olhar em seus olhos — os olhos castanhos mais acolhedores que eu ?á havia visto — e sentir-me dominada por um sentimento louco e visceral que só pode ser descrito como amor à primeira vista. Recordo-me de acreditar que estava salva por um momento, por uma pessoa que eu não conhecia e provavelmente ?amais conheceria.

— Olá — ele disse, sorrindo, enquanto alcançava a mesma haste de apoio à que me agarrava.

— Oi — respondi, recuperando o f?lego enquanto nossas mãos se tocavam. Conversamos durante todo o caminho até a cidade, falando sobre tópicos que nós dois, por incrível que pareça, não nos lembramos mais.

Em um dado momento, depois que nos aprofundamos em alguns assuntos pessoais, incluindo meu programa para me tornar Ph.D. e sua residência, ele avistou meu anel de diamantes e disse:

— Então, quando é o grande dia?

Disse que seria em 29 dias, e eu deveria parecer triste quando lhe respondi, pois seu olhar era compreensivo e perguntou-me se eu estava bem. É como se ele pudesse ver através de mim, em meu coração, e, enquanto eu olhava de volta para ele, não consegui me conter. Não podia acreditar que estava chorando diante de um total estranho, sendo que ainda não havia feito isso nem mesmo no sofá de tweed de Cheryl.

— Eu sei — disse ele gentilmente.

Perguntei como ele sabia.

— Estive em seu lugar — ele respondeu. — Claro que não estava a caminho do altar, mas mesmo assim… Ri soltando um soluço pouquíssimo atraente.

— T alvez tudo fi que bem — confortou-me, olhando para outro lado, como se estivesse tentando me dar alguma privacidade.

— T alvez — concordei, encontrando um lenço de papel em minha bolsa e me recompondo.

Um pouco depois, saímos do vagão na Rua 116 (que só depois eu soube que não era o destino de Nick) e a multidão se dispersou ao nosso redor. Lembro que estava muito quente, com o cheiro de amendoins torrados e o som de uma cantora de folk soprano vindo da rua de cima. O tempo parecia não correr enquanto o observava retirar uma caneta de um dos bolsos de seu avental e escrever seu nome e número do telefone que até ho?e guardo em minha carteira.

— Aqui está — disse ele, pressionando o cartão na palma de minha mão.

Li seu nome no cartão e pensei que ele tinha mesmo cara de Nicholas Russo. Deliciosamente sólido, sexy, bom demais para ser verdade.

Experimentei dizer em voz alta:

— Obrigada, Nicholas Russo.

— Nick — corrigiu. — E seu nome é?

— T essa — respondi, com as pernas bambas de tanta atração.

— Então, T essa, se quiser conversar, me ligue. Você sabe, às vezes a?uda conversar com alguém que não está… envolvido.

Olhei em seus olhos e consegui enxergar a verdade, ele estava tão envolvido quanto eu.

No dia seguinte disse a Ryan que não podia mais me casar com ele. Foi o pior dia da minha vida até aquele momento. Já haviam partido o meu coração antes dele — se bem que em um nível muito mais adolescente —, mas aquilo era muito pior. Era coração partido mais remorso e culpa, e até mesmo vergonha com o escândalo do cancelamento do casamento.

— Por quê? — ele indagou entre lágrimas sobre as quais ainda não consigo pensar atentamente.

Mesmo sendo difícil, senti que devia dizer a verdade, por mais brutal que fosse.

— Eu te amo, Ryan, mas não estou apaixonada por você, e não posso me casar com alguém por quem não estou apaixonada — sabendo que soava como uma desculpa de rompimento ?á muito man?ada. Como o tipo de desculpa superf i cial e sem conteúdo que homens de meia-idade dão antes de abandonar suas esposas.

— Como você sabe? — Ryan perguntou. — O que isso signif i ca, af i nal?

E eu só conseguia balançar a cabeça negativamente e pensar naquele momento no vagão, com o estranho chamado Nick vestindo o avental azul-acinzentado, e dizer incessantemente que sentia muito.

Cate foi a única que soube da história completa. A única que sabe a verdade, mesmo ho?e. Que conheci Nick antes de terminar o noivado com Ryan. Que, se não fosse por Nick, eu teria me casado com Ryan e que, provavelmente, ainda estaria casada com ele, morando em outra cidade com outros fi lhos e vivendo outra vida. T odas as mesmas desvantagens da maternidade, nenhuma das vantagens do amor.

É claro que houve especulações sobre inf i delidade entre alguns de nossos amigos que tomaram as dores de Ryan quando Nick e eu engatamos o namoro sério apenas alguns meses depois. Mesmo Ryan (que, naquela época, ainda me conhecia melhor que qualquer um, mais até que Nick) exprimiu dúvidas quanto à ordem e ao ritmo dos acontecimentos, como eu havia superado o ocorrido tão rapidamente.

— Quero acreditar que você é uma boa pessoa — ele escreveu em uma carta que ainda guardo em algum lugar.

— Quero acreditar que você foi sincera comigo e que nunca me trairia. Mas tenho dif i culdades em não me perguntar quando você e seu novo namorado de fato se conheceram.

Respondi a sua carta, apesar de ter me dito para não o fazer, declarando minha inocência e me desculpando mais uma vez pela dor que eu havia causado. Disse-lhe que sempre teria um lugar especial em meu coração e esperava que, com o tempo, me perdoasse e encontrasse alguém que o amasse como ele merecia ser amado. Estava implícito que eu havia encontrado o que queria para ele. Estava apaixonada por Nick.

É um sentimento que ?amais fora abalado. A vida não é divertida o tempo todo, e quase nunca é fácil, pensei, enquanto voltava à cozinha ainda relembrando meus erros, pronta para a minha segunda xícara de café, mas estou apaixonada por meu marido e ele por mim. É a constante em minha vida e continuará sendo conforme nossas crianças forem crescendo, minha carreira mudando, nossos amigos indo e vindo. Tenho certeza disso.

Mas ainda me pego batendo três vezes na tábua de carne de madeira, pois não faz mal se prevenir quando se trata das coisas que mais amamos.

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