18

[ TESSA ]

Nos dias que se seguiram, os deuses do matrimonio resplandeciam sobre nossa casa e as coisas pareciam estar bem novamente. Nick era um marido — modelo, ligava do trabalho para dizer “oi”, voltava para casa a tempo de p?r as crianças para dormir e uma noite até me preparou um ?antar. E, mesmo assim, seus esforços não pareciam heroicos ou forçados, ao contrário, ele simplesmente parecia estar comprometido, como se fi zesse parte do biorritmo de nossa família, absorvendo os pequenos momentos que, às vezes, eu sentia estar vivenciando sozinha. Ele estava tão atencioso que comecei a me culpar pela briga, o que é sempre um alívio, isso porque você retoma o controle de sua própria vida. Rachel e Cate, minhas conf i dentes, concordaram que eu havia sido, pelo menos em parte, culpada pela nossa crise, responsabilizando os horm?nios, o tédio e a paranoia em geral, as marcas típicas da maternidade, brincou Rachel.

Nosso único contratempo foi no dia Das Bruxas, no meio da tarde, quando Nick ligou do hospital para dizer que provavelmente não voltaria para sair com as crianças pela vizinhança, acrescentando que com certeza sentiria falta do encontro de toda a vizinhança na casa de April antes da brincadeira. Quis lembrá-lo de que, para crianças, o Dia das Bruxas é a segunda noite mais sagrada do ano (talvez a mais sagrada para Ruby, que tem paixão por doces) e que, embora eu não concordasse com a divisão de papéis por sexo na criação dos fi lhos, eu achava que sair na rua pedindo doces era com certeza da alçada do pai. Mas, em vez disso, concentrei-me no fato de que ele havia levado a Ruby na escola pela manhã, fi cou lá para fi lmar seu desf i le de fantasias pelo corredor da pré-escola e voltou para casa para passar algum tempo com Frank antes de ir trabalhar.

— Você está bem? — eu perguntei calmamente, demonstrando apoio.

— Sim, sim. As coisas só estão um pouco agitadas por aqui — ele disse parecendo estressado e distraído, mas também decepcionado, o que acabou por abrandar a minha própria decepção. Então perguntou se fi caríamos bem sem ele, referindo-se à logística de distribuir doces e tudo o mais.

— Sim — respondi. — É só deixar uma tigela na varanda.

Não fi caremos na rua por muito tempo, sem problemas.

E não era um problema mesmo, disse a mim mesma enquanto Ruby, Frank e eu subíamos a rua até a casa de April antes de escurecer. Quando chegamos, ela estava amarrando balões alaran?ados e pretos em sua caixa de correios. Percebi imediatamente que ?á havia tomado várias taças de vinho e, de repente, senti que também queria uma.

Ela me lançou um bei?o e, então, elogiou as fantasias da Sharpay e do Elmo, com sua voz e seus gestos exagerados.

— Obrigada — eu disse pensando que, embora estivessem mesmo uma gracinha, seus elogios eram, em geral, desmedidos e que não havia nada de tão fofo assim em duas fantasias de lo?a, uma extremamente previsível e a outra meio cafona.

— Onde está o Nick? — ela perguntou, olhando para os lados, como se esperasse que ele pulasse de trás de um arbusto e a surpreendesse.

— Ele teve de trabalhar — expliquei com minha costumeira mistura de orgulho e arrependimento, consequência de ter um cirurgião como marido.

— Que chato — ela falou com compaixão.

— Pois é, fazer o quê? — dei de ombros e então vi sua casa, admirando toda a decoração. Os espantalhos ao longo da entrada de carros, pequenos fantasmas pendurados nas árvores e as abóboras entalhadas com capricho aglomeradas em sua varanda. Disse a ela que tudo estava lindo, tentando mudar de assunto, pelo menos para o bem de Ruby e Frank, já que não via nenhum motivo para dirigir a atenção para a ausência do pai.

— Obrigada? — ela disse. — Tem um moço fazendo pinturas de rosto lá no quintal, mas não sei se é uma boa ideia fazer a brincadeira da maçã. Você não acha que está frio demais? Dá muito trabalho?

— Sim, não complique sua vida — eu concordei, reconhecendo que esse conselho era como dizer a Madonna para ser discreta ou a Britney Spears para tomar boas decisões em suas relações amorosas.

Eu disse isso a April e ela riu, andando de braços dados comigo e dizendo que sentia minha falta, mas na verdade ela sentia falta de falar comigo sobre outra coisa que não fosse o drama da Romy.

— Eu também senti sua falta — retribuí sentindo-me contente enquanto íamos em direção a sua casa. Vimos Ruby e Frank cumprimentarem Olívia com abraços extremamente animados, sentindo uma onda de satisfação que surge sempre que conseguimos plane?ar com sucesso as amizades de nossos fi lhos.

Meu bom humor se manteve por mais uma hora, enquanto me misturava com os amigos e punha a conversa em dia com os vizinhos, discutindo os tópicos de sempre:

como o ano estava passando rápido; quanto as crianças estavam gostando da escola; que deveríamos nos encontrar em breve, para que nossos fi lhos pudessem brincar juntos.

O tempo todo fiz de tudo para não pensar na evidente ausência de Nick entre os pais, mesmo quando me perguntaram onde ele estava, não menos que uma dúzia de vezes. Estavam todos reunidos com suas carretas vermelhas cheias de saquinhos, para que seus fi lhos pudessem guardar doces e cervejas para si mesmos. Pude perceber que muitos estavam pensando em Romy, mas só a Carly Bre?ster teve a audácia de tocar no assunto.

Ironicamente, Carly é uma das mulheres mais faladas e menos estimadas da vizinhança. Ex-consultora com um MBA da Wharton, ela parece completamente entediada no seu papel de mãe em tempo integral de quatro garotos e compensa esse tédio metendo o nariz na vida de todos e iniciando brigas desnecessárias nas reuniões da Associação de Pais e Mestres e da Associação de Moradores. Na última primavera, chegou a sugerir que se estabelecesse uma lei para que gatos andassem de coleira na rua.

De qualquer maneira, ela começou o inquérito com um ar desinteressado, enquanto chacoalhava de maneira experiente seu fi lho mais novo em um canguru para bebês.

— Como está aquele garotinho? — ela perguntou como se a história fosse vaga em sua mente. — Aquele que se queimou na casa dos Croft.

— Ele está bem — eu disse, pousando os olhos na linha que separava seu cabelo loiro-acinzentado de suas raízes escuras.

— Seu marido está com ele esta noite?

— Não sei ao certo, não perguntei — respondi de maneira direta, sabendo que ela não ia pegar a dica.

Como era de esperar, ela inspirou o ar dramaticamente, olhou ao seu redor e diminuiu sua voz para um sussurro encoberto:

— Meu marido trabalha com a mãe dele, a Valerie Anderson. Eles trabalham na mesma empresa de advocacia — seus olhos se iluminaram enquanto continuava. — E disse que ela não vai trabalhar há semanas… — Humm — soltei em tom imparcial. Então fi z o possível para tentar desviar sua atenção para os seus próprios fi lhos, o único tópico que com certeza apreciaria mais que fi car especulando sobre a vida alheia. — E como estão os garotos? — perguntei.

— Insanos — ela respondeu, revirando os olhos enquanto observava seu segundo fi lho mais velho, vestido de Ursinho Pooh, arrancar sistematicamente os crisântemos do ?ardim de April. Obviamente, ela não é do tipo que acha que o fi lho é um an?inho, pois deixou que continuasse destruindo o ?ardim e disse:

— É, são garotos até o último fi o de cabelo.

— Ao contrário do Frank, que sempre pede por meu gloss labial, brinca com as bonecas da Ruby e há pouco tempo anunciou que queria ser cabeleireiro quando crescesse. Eu contei isso a Carly, que meu deu um aceno de cabeça indicando compaixão e soltou em tom acalorado:

— Eu não me preocuparia muito com isso.

O que na verdade ela queria dizer era que eu deveria sim me preocupar horrores com isso.

Assisti ao Ursinho Pooh pisotear as pétalas despedaçadas e deixar rastros de rosa e roxo por toda a entrada de carros da casa. Depois disso, tive a certeza de que ele matava insetos com a mesma destreza e pensei que preferia que meu fi lho fosse gay a ser um garoto mimado movido a testosterona — o que parecia ser o futuro do fi lho de Carly.

— E acredito que esse se?a o Leitão? — perguntei sorrindo para o bebê em seus braços, vestindo um body listrado rosa-choque e um narizinho de porco, procurando ao meu redor pelo Tigrão e pelo Bisonho.

Ela fez que sim e murmurei:

— Adorável.

— Ele não é tão adorável assim às 3 horas da manhã — ela disse exausta, usando seu cansaço como uma medalha de honra. — Eu tenho uma enfermeira, mas ainda acordo para amamentar a cada duas horas, então não adianta muito.

— Isso é barra — eu disse, pensando que ela havia acabado de se gabar, com maestria, de dois fatos: ela era privilegiada o suf i ciente para poder ter a?uda extra e era dedicada o suf i ciente para acordar e amamentar seu fi lho mesmo assim.

— É mesmo, mas vale tanto a pena… Você amamentou?

“Não é da sua conta”, pensei, enquanto me ocorria que eu podia mentir, como já fizera muitas vezes no passado, mas, em vez disso, deixei escapar a verdade, sentindo-me livre por ter deixado de considerar isso um segredo obscuro.

— Por algumas semanas, pois não funcionou muito bem para mim, desisti. Foi melhor para todos.

— Pouca produção de leite? — ela sussurrou.

— Não, é que voltei a trabalhar e usar a bomba era difícil demais — ex-pliquei localizando a Ruby, que fazia o possível e o impossível para tirar o Frank, aos berros, pela ?anela de um carrinho de plástico lilás.

— Ei, Ruby? Pare com isso? — eu gritei do outro lado do gramado.

— É a minha vez? — ela gritou de volta com uma impaciência histérica em sua voz. — Ele não quer dividir.

— Ele tem 2 anos — eu falei. — Você tem 4.

— Dois anos ?á é idade para dividir? — ela gritou novamente, o que, infelizmente, era um argumento válido.

— Com licença, é melhor eu ir até lá — disse, sentindo-me aliviada por sair de lá.

— É nesta hora que você quer que o pai este?a por perto, não é? — Carly disse enquanto dava um sorriso que queria dizer algo como “Minha vida é melhor que a sua”.

Mais tarde naquela noite, com as crianças ?á dormindo, as luzes de nossa varanda apagadas e eu tentado resistir aos doces, minha mente voltava a visualizar o sorriso presunçoso de Carly. Fiquei me perguntando se era da minha cabeça, se eu estava sendo sensível ou protetora demais quanto ao trabalho de Nick, pro?etando nela minha própria insatisfação. Mas me ocorreu que ela não era a única, que todas as mulheres comparam sua vida com a de outras. Sabemos qual marido trabalha mais, quem a?uda mais em casa, quem ganha mais dinheiro e quem está fazendo mais sexo. Comparamos nossos fi lhos, observando quem dorme a noite toda, quem come salada, quem tem bom comportamento e quem entrou na escola certa.

Sabemos quem cuida melhor da casa, quem dá as melhores festas, quem cozinha os melhores pratos e quem é a melhor ?ogadora de tênis. T ambém sabemos quem, entre nós, é a mais inteligente, tem menos rugas ao redor dos olhos e tem o corpo mais bonito, se?a ele natural, se?a ele artif i cial.

Sabemos quem trabalha em período integral, quem fi ca em casa com as crianças, quem consegue trabalhar e cuidar dos fi lhos e, ao mesmo tempo, fazer parecer que é fácil e, por fi m, quem vai às compras e sai para almoçar enquanto a babá faz todo o trabalho. Digerimos tudo isso e, então, conversamos com nossas amigas, comparando e conf i denciando, é isso que as mulheres fazem.

A diferença, acredito, está no porquê fazemos isso. Seria para avaliarmos nossa própria vida e nos sentirmos mais seguras por estarmos dentro do que se considera normal?

Ou estaríamos sendo competitivas, sentindo prazer em perceber as falhas das outras para que possamos ganhar o ?ogo, mesmo que por omissão?

O telefone tocou, resgatando-me de meus pensamentos errantes e de um chocolate desembrulhado. Vi que era o Nick e corri para atender.

— Oi? — tendo a sensação de que não nos falávamos havia dias.

— Oi, querida — ele disse. — Como foi a noite?

— Foi divertida — respondi, contando-lhe dos pontos altos da noite. Como o Frank fi cava dizendo doce ou “tavessula”. Como Ruby sempre lembrava Frank de dizer obrigado, e como sua fi lha fi cava orgulhosa sempre que alguma das meninas mais velhas elogiava sua fantasia. — Mas é claro que não foi a mesma coisa sem você lá.

Sentimos sua falta.

— T ambém senti falta — ele disse. — De vocês três.

Dei uma pequena mordida no chocolate, sabendo que essa primeira mordida fatal poderia ser meu fi m.

— Você está vindo para casa?

— Daqui a pouco.

— Daqui a pouco quando?

— Daqui a pouquinho — ele explicou. — Mas não me espere acordada.

Engoli o chocolate, sentindo uma onda de decepção e derrota, seguida por um alívio condenável por não ter ninguém vendo a expressão em meu rosto neste momento.

Então, desliguei o telefone, terminei de comer o chocolate e fui para a cama sozinha.

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