05

[ VALERIE ]

Em uma tarde de domingo, Nick, Ruby, Frank e eu estávamos comprando fantasias de Dia das Bruxas, na T arget, nossa ideia de diversão em família, quando percebi que oficialmente havia me tornado minha mãe. Certamente, não era a primeira vez que me pegava em um momento de “Barb-ismo”, como meu irmão chamava esses momentos.

Por exemplo, sei que falo exatamente como ela sempre que aviso a Ruby que está “mexendo com o perigo” ou que “apenas pessoas entediantes fi cam entediadas”. Eu a ve?o em mim quando compro algo que realmente não quero — se?a um vestido, se?a uma embalagem com seis pacotes de macarrão — só porque estava em liquidação. Ou quando ?ulgo alguém por esquecer de escrever um cartão de agradecimento, ou por dirigir um carro com uma placa personalizada ou, Deus me livre, por mascar chiclete vigorosamente em público.

Mas, à medida que parei no corredor de fantasias da lo?a e disse a Ruby que não, ela não podia comprar uma fantasia da personagem Sharpay do fi lme High School Musical, com um corpete mostrando a barriga com piercing e uma calça capri de lamê dourado, sei que entrei de vez no terreno de Barb. Nem tanto por causa da sensibilidade feminista que temos em comum, mas porque prometi à minha fi lha que ela poderia escolher a fantasia que quisesse este ano. Que ela podia ser “o que quisesse” — o que foi exatamente o que minha mãe me disse quando eu era uma menina e depois uma ?ovem mulher. Mas o que ela realmente queria dizer, nas várias vezes em que isso aconteceu, e claro o que eu queria dizer neste caso, era “pode ser o que quiser, contanto que eu aprove a sua escolha”.

Eu me senti horrível, recordando todas as conversas que tive com minha mãe no ano passado, quando lhe contei que estava abrindo mão de minha chance de me tornar uma professora acadêmica com cargo vitalício no Wellelsley College. Sabia que ela tinha algo (muito, aliás) a dizer sobre isso, ?á que estava acostumada a ouvir suas opiniões mesmo quando não as pedia. Na verdade, meu irmão e eu, geralmente, nos divertimos com suas visitas e todas as vezes que ela inicia suas frases com “Se quiserem uma sugestão” — o que é apenas o pontapé inicial para que comece a dizer que estamos fazendo tudo errado. “Se quiser uma sugestão, separe as roupas de Ruby na noite anterior – isso poupa muitas discussões pela manhã.” Ou, “se quiser uma sugestão, escolha um determinado lugar para colocar todas as correspondências e papéis. Isso realmente diminui a bagunça”. Ou a minha preferida, “se quiser uma sugestão: tente relaxar e criar um ambiente agradável quando amamenta o bebê. Acho que Frank percebe quando está estressada”.

Sim, mãe, com certeza ele percebe meu stress. Assim como todo mundo aqui em casa e no resto do mundo, por isso estou deixando meu emprego.

Essa, é claro, não foi uma explicação que a satisfez. Em vez disso, estava cheia de outras “sugestões”. T ais como, “Não faça isso. Vai se arrepender. Seu casamento será abalado”. E começou a citar Betty Friedan, que dizia que f i car em casa era “o problema sem nome” e Kates Shulman, que sugeriu que, em vez de deixar seus empregos, as mulheres deveriam simplesmente se recusar a fazer 70% do trabalho de casa.

— Não consigo entender como você pode deixar todos os seus sonhos de lado — ela disse de maneira intensa, invocando os espíritos de seus dias de hippie, queimadora de sutiãs. — Largar tudo o que você lutou para conseguir e f i car em casa de moletom, cuidando da roupa e assando tortas.

— Não é isso — retruquei, perguntando-me se conseguiria, de alguma maneira, me ver através da linha do telefone, em pé diante do fogão, preparando macarrão com quei?o, bacon e trufas negras a partir de uma receita que havia acabado de pegar de uma revista. — É que quero poder passar mais tempo com Ruby e Frank.

— Eu sei, querida — ela disse. — Sei que você acredita nisso, mas, no fi m das contas, você terá sacrif i cado sua alma.

— Ah, pelo amor de Deus, mãe — discordei, revirando os olhos —, não se?a tão dramática.

Mas ela continuou com o mesmo fervor:

— E, quando menos esperar, essas crianças passarão o dia todo na escola, e você fi cará em casa sozinha, esperando-as chegar, enchendo-as de perguntas sobre o dia delas, vivendo a sua vida por intermédio delas, daí olhará para trás e se arrependerá de sua decisão.

— Como sabe como eu vou me sentir? — perguntei indignada, assim como fazia no colegial sempre que ela tentava, em suas próprias palavras, me conscientizar. Como quando fi z teste para ser animadora de torcida e me disse com desprezo, na frente de todas as minhas amigas animadoras de torcida, que eu deveria participar de “um time de verdade” e não “f i car pulando, feito boba, na frente de um monte de garotos”.

— Porque te conheço, sei que isso não será suf i ciente para você, ou para Nick. Lembre-se, Nick se apaixonou pela ?ovem que ia atrás de seus sonhos, de seu coração. Você ama seu trabalho.

— Amo mais ainda minha família, mãe.

— Mas seu trabalho e sua família não são incompatíveis.

— Às vezes parece que são — respondi, lembrando-me da vez em que cheguei em casa e me deparei com nossa babá toda empolgada, contando sobre os primeiros passos de Ruby, e das inúmeras outras coisas que perdi. Momentos marcantes e também menos turbulentos.

— O que o Nick disse sobre isso? — ela perguntou. Tinha certeza de que essa era uma armadilha, um teste para o qual não tinha uma resposta certa.

— Ele apoiou minha decisão — respondi.

— Bom, não me surpreende — com um tom suf i cientemente mordaz para que eu me perguntasse pela centésima vez o que ela tinha contra ele, ou talvez contra todos os homens, com exceção de meu irmão.

— O que você quer dizer com isso? — perguntei desaf i ando-a, sabendo que ela via isso como via todo o resto, por meio da experiência de seu próprio divórcio e do ódio que sentia por meu pai mulherengo.

— Bem, se posso dizer, em parte, acho que é muito nobre da parte de Nick apoiá-la em sua decisão — começou utilizando seu tom calmo e complacente, só um pouco menos irritante que seu tom estridente. — Ele quer que você se?a feliz e acha que isso a fará feliz, e também está priorizando o tempo, e não a renda extra, o que pode ser uma coisa sábia a fazer.

Mergulhei uma colher de pau em meu molho de quei?o borbulhante e provei-o. Perfeito, pensei, enquanto ela continuava a discursar.

— Mas os sonhos de Nick não estão sendo adiados, e, conforme os anos forem passando, isso pode criar um muro entre vocês, pois ele terá uma vida excitante, desaf i adora, recompensadora e vibrante longe de você, Ruby e Frank.

Enquanto isso, todas as tarefas domésticas enfadonhas f i carão com você.

— Ainda terei minha vida, mãe. Ainda terei meus interesses e meus amigos, além de mais tempo para cultivá-los, e sempre terei a opção de voltar a trabalhar, dar uma ou duas aulas como professora ad?unta, caso sinta muita falta.

— Não é a mesma coisa, seria um emprego e não uma prof i ssão. Um passatempo, não uma paixão. Além disso, com o tempo, o Nick pode perder um pouco do respeito por você, e, pior ainda, você pode perder um pouco do respeito por si mesma — ela disse enquanto eu respirava fundo e me preparava para o que ainda estava por vir.

E, como eu previa, ela terminou com uma insinuação pesada e amarga:

— E é nesse momento — disse — que seu casamento se torna suscetível.

— Suscetível a quê? — indaguei, fi ngindo-me de burra para ver até onde isso chegaria.

— A uma crise de meia-idade — respondeu. — Ao chamado irresistível clamando por carros esportivos vermelhos, suntuosos e por mulheres com seios enormes e sonhos maiores ainda.

— Não gosto de carros vermelhos nem de mulheres com seios enormes — rebati zombando da maneira como minha mãe expressa suas ideias.

— Eu estava falando de Nick — explicou-se.

— Eu sei — respondi, resistindo ao impulso de apontar todas as inconsistências presentes em seus argumentos: o fato de as traições de papai terem começado quando ela abriu seu próprio negócio como designer de interiores. Na verdade, seu trabalho de decoração de uma mansão de Murray Hill acabara de ser publicado na revista de decoração Elle Decor quando, na mesma semana, ela descobriu o último caso de meu pai, fl agrando-o com uma mulher desempregada que não tinha nenhum plano além de aperfeiçoar a arte do ócio. Seu nome era Diane, e meu pai está com ela até ho?e. David e Diane (com seus cães Dottie e Dalilah). Com as iniciais “DD” gravadas em tudo que têm em sua casa, um retrato da alegria do segundo casamento, os dois ?untos e orgulhosos buscando o hedonismo, desfrutando do fundo fi duciário de Diane e da aposentadoria que meu pai recebia por seus mais de 30 anos de trabalho em uma fi rma de advocacia tradicional.

Entretanto, me segurei para não dizer que trabalhar não era uma tática infalível, porque não queria machucá-la e não queria sugerir que tivesse qualquer coisa além de todo o respeito do mundo por ela. Minha mãe pode não ter lidado com seu divórcio com o equilíbrio de um mestre de ioga (como no dia em que fi cou sabendo sobre Diane e arrebentou a Mercedes conversível do meu pai com um taco de beisebol), mas ela fez o melhor que p?de. Apesar de todos os contratempos em sua vida, ela sempre conseguiu vencer e até mesmo, superando as expectativas, ser feliz.

Desde criar meu irmão e eu, até sua breve, porém intensa, luta contra o câncer de mama (que escondeu de nós no ensino fundamental, insistindo que havia raspado a cabeça em virtude da intensa onda de calor que atingira Nova York) e sua carreira, que construiu a partir do zero, Barbie era uma mulher durona e maravilhosa, e sempre tive orgulho de tê-la como minha mãe, mesmo quando era extremamente dominadora.

Por isso, não a rebati. Apenas me mantive fi rme e disse:

— Mãe, escuta. Sei que suas intenções são boas, mas essa é a escolha certa para nós. Para a nossa família.

— T udo bem, tudo bem — ela cedeu. — Espero estar errada, T essa. De verdade.

Pensei nessa conversa e no meu voto de tentar apoiar as escolhas de Ruby mesmo quando não concordasse com elas. Mas, enquanto analiso a foto de Sharpay, observando o batom vermelho, os saltos e a pose provocativa, descarto minha decisão e tento criar uma exceção chamada “nada de roupas vulgares” e fazer minha fi lha mudar de ideia. Só dessa vez.

— Ruby, acho que essa roupa não é adequada à sua idade — disse casualmente, tentando não incentivar ainda mais sua decisão.

Mas Ruby apenas negou com a cabeça de maneira decidida e falou:

— Não é não.

Pisando em ovos, tentei novamente:

— Você vai congelar de frio com essa roupa na rua.

— T enho o sangue quente — respondeu, mostrando que obviamente não havia entendido a aula de Biologia que seu pai havia dado naquela manhã.

Enquanto isso, assistia a outra dupla de mãe e fi lha, usando vestidos roxos aveludados combinando, concordando na escolha de uma fantasia da Dorothy,11 muito apropriada. A mãe sorria orgulhosa e, como se quisesse me mostrar como se faz, diz com uma voz sugestiva direcionada à Ruby:

— Olhe que fantasia linda de Branca de Neve. Ficaria perfeita em uma menininha de cabelos escuros.

Entrei na dança, só para mostrar que seus truques fa?utos não funcionariam na minha casa.

— É verdade? Ora, Ruby, você tem cabelos escuros. Não gostaria de ser a Branca de Neve? Você poderia carregar uma maçã vermelha bem lustrosa?

— Não. Não quero ser a Branca de Neve, e não gosto de maçãs. — Ruby revidou, com uma expressão pétrea.

A outra mãe encolheu os ombros de maneira descontraída e, com um sorriso artif i cial, como se dissesse “T entei. Mas meus poderes de mãe do ano vão só até aí”.

Retribuí com um sorriso falso, abstendo-me de dizer o que realmente estava pensando: que é uma ?ogada cármica pouco inteligente sair por aí se sentindo superior a outras mães. Porque, quando menos esperar, seu an?inho se tornará uma adolescente tatuada escondendo cigarros de maconha em sua bolsa de grife e fazendo sexo oral no banco de trás de sua BMW.

Segundos depois, enquanto as duas seguiam a estrada de ti?olos amarelos, Nick virou o corredor carregando Frank em um braço e uma fantasia de Elmo no outro, provando mais uma vez que, pelo menos em nossa casa, os meninos são mais fáceis de lidar. Os olhos de Ruby se iluminaram quando viu seu pai e não perdeu tempo em me entregar no volume mais alto possível:

— A mamãe disse que eu podia ser qualquer coisa que quisesse no Dia das Bruxas e agora não quer me deixar ser a Sharpay? — gritou.

Nick levantou as sobrancelhas.

— A mamãe não quebraria uma promessa como essa, quebraria? — ele perguntou.

— Quebraria sim, pode fi car sabendo — Ruby respondeu, fazendo bico. — Ela acabou de quebrar.

Nick olhou para mim enquanto eu assumia relutante.

— Ve?a por si mesmo — resmunguei, apontando para a foto da fantasia e sentindo uma onda secreta de satisfação enquanto lia a mente de Nick. Por um lado, sei que seu instinto básico lhe diz para sempre fazer a vontade da fi lha, fazê-la feliz a praticamente qualquer custo. Por outro lado, ele é extremamente protetor e prefere que sua fi lha não ande pela vizinhança vestida como uma prostituta infantil.

Esperançosa, vi Nick a?oelhar-se ao lado de Ruby e dar o melhor de si:

— Acho que isso parece um pouco… velho para você, Ruby. Quem sabe no ano que vem?

Ruby balança a cabeça negativamente e responde:

— Não é muito velho, papai, é do meu tamanho? — ela diz, apontando para a etiqueta no canto da embalagem.

No primeiro sinal de resistência, Nick fi cou em pé e se rendeu, dando-me um olhar de impotência.

— Bem, então acho que a decisão fi ca para você e sua mãe.

Pensei em minha mãe mais uma vez, tentando imaginar o que ela diria a Ruby e, principalmente, o que diria sobre Nick e sua psicologia liberal. “As tarefas enfadonhas fi carão com você”, ouvi em minha cabeça. Então dei o suspiro sobrecarregado típico de todas as mães e falei:

— Promessa é promessa. Vamos levar a fantasia da Sharpay.

— Oba? — Ruby celebrou, correndo até a fi la do caixa.

— Oba? — imitou Frank, enquanto Nick e ele iam atrás de Ruby.

— Mas nada de batom — disse para mim mesma, assim como minha mãe fazia. — E vai usar uma blusa de gola rulê, mocinha. Queira ou não.

Mais tarde naquela noite, depois que fi nalmente as crianças foram dormir, olhei em nosso calendário e descobri que o dia seguinte era o dia em que Ruby seria a “a?udante especial” em sua escolinha. Essa notícia era ótima para Ruby, que, de acordo com o folheto que explicava as funções do “a?udante especial”, teria de alimentar o peixe dourado de sua turma, escolher um livro para ser lido para os amiguinhos na hora da historinha e ser a primeira da fi la no parquinho. Mas, infelizmente, isso também signif i cava que era o meu dia de preparar um lanche saudável e, ao mesmo tempo, delicioso para 16 crianças, um que não contivesse produtos derivados de amendoim ou outros frutos secos, em virtude de uma alergia letal dentro da sala de aula — o que praticamente descarta tudo o que tínhamos em mãos.

— Droga — resmunguei me perguntando como pude ignorar o aviso grifado de laran?a fl uorescente que havia escrito apenas duas semanas antes.

— Você prefere o Napa ou o Rhone? — perguntou Nick, com uma garrafa de vinho em cada mão.

Apontei para o Rhone e resmunguei mais uma vez olhando para o calendário enquanto Nick devolvia a garrafa do Napa para a estante de vinhos e remexia na gaveta à procura do abridor.

— O que foi? — perguntou.

— Ruby é a “a?udante especial” amanhã, na escolinha.

— E daí?

— E daí que nós temos que levar um lanche — respondi usando nós, apesar de saber que essa tarefa fazia parte das minhas funções, mesmo quando eu trabalhava.

Infelizmente, não tenho mais meu trabalho como desculpa — o que eu sempre achei que fi zesse com que as expectativas quanto a mim fossem um pouco menores.

— Então qual é o problema? — perguntou sem fazer a menor ideia do que estava acontecendo.

— Nossos armários estão vazios — respondi.

— Que nada — Nick diz despreocupado. — T enho certeza de que temos alguma coisa aqui.

— Na verdade não — eu falei, pensando no almoço e no ?antar improvisados que preparei neste dia, utilizando sobras da semana anterior.

Ele tirou a rolha da garrafa, serviu duas taças e foi até a despensa.

— Aha? — disse, pegando um saco de bolachas ainda fechado — um dos meus vários prazeres condenáveis.

— Bolachas? — disse sorrindo.

— Sim, bolachas. Você sabe, leite com bolachas, como nos velhos tempos.

Balancei a cabeça em negação enquanto analisava a liberdade hilária de ser um homem, o papai. Pensando que bolachas poderiam, possivelmente, ser levadas para qualquer escola ou estratosfera como lanche, ou ainda, como lanche para uma sala toda.

— Isso é tão errado — disse, divertindo-me. — Você não é médico? Não é algo como a fi lha do pastor fazendo sexo?

Ou o fi lho do sapateiro andando descalço pela cidade?

— Nossa, ainda existem sapateiros? — Nick brincou, e então falou:

— Ah, vai, crianças adoram bolachas. Além disso, sua analogia é suspeita, af i nal não sou um dentista, sou um cirurgião plástico.

— T udo bem, mas não dá para mandar bolachas.

— Por quê?

— Em primeiro lugar, tenho certeza de que elas contêm derivados de amendoim — disse, lendo os ingredientes. — Em segundo lugar, têm uma quantidade incrível de açúcar.

Além disso, não são caseiras. Você faz a mínima ideia do que as outras mães diriam de mim se eu levasse bolachas?

Nick me entregou uma taça de vinho enquanto continuei meu discurso inf l amado. — Eu seria completamente ignorada durante o resto do ano, e até mesmo anos depois.

Quero dizer, é melhor então que eu vá lá, acenda um cigarro e prof i ra um palavrão. “P .q.p., essas bolachas dão barato?” E-mails em massa seriam mandados enlouquecidamente espalhando a última fofoca.

Nick deu uma risada e disse:

— Essas mães são tão críticas assim?

— Algumas são — respondi. — Você nem imagina.

— E você liga?

Encolhi os ombros, pensando que esse era o “xis” da questão. Não queria ligar para esse tipo de bobagem. Não queria ligar para o que os outros pensam, mas ligo.

Principalmente nos últimos tempos.

E, como se fosse providência divina, o telefone tocou e vi que era April, minha amiga. April é a minha amiga mais próxima depois de Cate e, def i nitivamente, minha amiga-mãe mais próxima no dia a dia, mesmo fazendo com que me sinta inferior na maior parte do tempo. Não é de propósito, mas é que ela é tão perfeita, sua casa está sempre em ordem, seus fi lhos são comportados e estão sempre bem-vestidos, seus álbuns de fotos e seus scrapbooks12 estão sempre em dia e cheios de fotos maravilhosas em preto e branco (e foi ela mesma quem fez, claro). Ela faz tudo do ?eito certo, principalmente quando se trata de seus fi lhos, desde a alimentação até encontrar a escola certa (além de sempre exigir a melhor professora da escola). Ela ?á leu e pesquisou sobre tudo e compartilha qualquer informação cheia de entusiasmo, tanto comigo quanto com qualquer pessoa, principalmente quando há algum tipo de perigo. Uma garrafa de água contém níveis excessivos de chumbo? Um homem suspeito dirigindo uma van branca pela vizinhança? Um novo estudo que liga vacinas ao autismo? Ela será a primeira a dar o furo?

Infelizmente para mim, sua fi lha, Olívia, é um ano mais velha que Ruby e agora frequenta o ?ardim de infância em outra escola (Longmere Country Day — que é, obviamente, a melhor escola da cidade), caso contrário, teria me lembrado de preparar o lanche.

— É a April — disse a Nick — Vamos perguntar sobre as bolachas.

Ele revirou os olhos enquanto eu atendi o telefone.

April começou a falar imediatamente, pedindo-me desculpas por ter ligado tão tarde, que é como ela começa quase todas as suas conversas. Geralmente ela usa “sei que não é uma boa hora”, o que é interessante porque, até onde sei, ela nunca passou por momentos particularmente caóticos na hora de dormir, na hora do banho ou durante uma refeição, os rituais exaustivos que desconcertam qualquer mãe menos perfeita. E, no mínimo, ela treinou seus fi lhos a não choramingar ou interromper quando está ao telefone. Aliás, Olívia é a única criança que ?á ouvi dizer a expressão perdoe-me.

— Você sabe que não temos hora de dormir aqui — disse (sabendo que ela tinha um limite fi rme para as 20 h e só faltavam cinco minutos para esse horário). Então, antes que ela começasse a falar, eu falei:

— Perguntinha rápida. Amanhã é o dia de Ruby levar o lanche na escola. A única coisa que temos na despensa é um pacote de bolachas. Você acha que serve?

Coloquei o telefone no viva-voz, mas só havia um silêncio do outro lado.

— April? — perguntei, com um sorriso largo. — Você ainda está aí?

E ela responde:

— Bolachas, T ess? Você está falando sério?

— Não. Mas o Nick está, expliquei.

Ela engasgou como se eu tivesse acabado de contar que Nick havia me golpeado com um gancho de esquerda durante uma discussão e, então, disse:

— T essa, você me colocou no viva-voz?

— Sim — respondi sabendo que mais tarde ela me mataria por isso.

— O… Nick está… aí do lado? — sussurrou.

— Está sim — respondi com um sorriso mais largo ainda.

— Olá, April — respondeu revirando os olhos mais uma vez. Nick até que gosta de April, mas não entende a razão de nossa proximidade e a acusa de ser neurótica e intensa demais, duas características irrefutáveis de sua personalidade. Mas ?á expliquei que por morarmos na mesma rua e termos fi lhos com a mesma idade (seu fi lho, Henry, é seis meses mais velho que Frank) ?á é o suf i ciente para nos aproximarmos. Embora, é verdade, eu acredite que nossa amizade vá além da circunstância e da conveniência.

Em primeiro lugar, ela é o tipo de amiga que faria absolutamente qualquer coisa por você, ela não oferece a?uda só da boca para fora, ela cumpre o que promete. Traz sopa quando você está doente, empresta-lhe um vestido quando você não tem nada adequado para usar porque se esqueceu de ir comprar e até cuida das crianças quando há uma emergência. Em segundo lugar, ela é uma boa plane?adora que consegue organizar coisas divertidas para fazermos, se?a com as crianças, se?a com nossos maridos ou apenas nós duas, mesmo. E, por fi m, é rápida para servir uma taça de vinho — ou duas ou três —, além de fi car hilária e muito irreverente quando bebe. Uma peculiaridade surpreendente em uma pessoa que é sempre tão disciplinada, além de ser garantia de uma boa diversão.

Mas neste momento ela não tinha tempo a perder, a perfeccionista prestativa e determinada que tanto amo, às vezes a despeito de tudo.

— A intenção foi boa — disse em um tom condescendente, um tom que acho que ela nem percebeu que usou. — Mas tenho certeza de que podemos pensar em algo melhor.

Conseguia imaginá-la andando pela cozinha, mexendo rapidamente seus braços delgados, tonif i cados pelo tênis, e suas pernas — como de costume.

— Ah? Já sei, acabei de fazer uns muf f i ns de cenoura de dar água na boca, são perfeitos para a ocasião.

Nick faz uma careta, ele odeia ad?etivos como “de dar água na boca”, e odeia mais ainda a combinação “úmidos e fof i nhos”.

— Humm, sim, mas não sei se tenho tempo de fazer os muf f i ns — respondi.

— Mas é tão fácil, T essa. Mamão com açúcar.

Para April, tudo é fácil. No ano passado, ela teve a audácia de dizer que beef Wellington era mamão com açúcar quando lhe falei que eu tinha de pensar em algo para servir no ?antar de Natal. Por fi m, acabei encomendando toda a refeição, mas fui desmascarada quando minha sogra me perguntou como eu tinha feito o molho. Eu não tinha a menor ideia de como fazer qualquer molho, ainda mais aquele sobre a minha mesa.

— Bem, acho que vou ter de comprar alguma coisa pronta mesmo. — disse, tirando o telefone do viva-voz para poupar Nick do resto da conversa.

— Humm. Bem, há sempre a opção de preparar espetinhos com frutas — ela sugeriu, explicando:

— Você só precisa comprar espetinhos de plástico na lo?a especializada em festas e, então, espetar uvas, morangos, pedaços de abacaxi e de melão. Daí você compra alguns sacos de pipoca orgânica… tem uma marca bem gostosa… Embora a pipoca este?a na lista de um dos produtos mais perigosos que podem fazer crianças engasgar, ao lado de uvas, cachorros-quentes, passas, chicletes, balas… Então talvez não se?a uma boa ideia… Engasgamentos me assustam. Afogamentos também. E Deus… sem querer ser uma estraga-prazeres, mas é por isso que estou te ligando… — Para me avisar sobre engasgamentos? — perguntei, sabendo que isso não estava fora de cogitação.

— Não. O Nick não te contou? — perguntou, voltando a sussurrar.

— Já tirei o telefone do viva-voz — avisei. — Mas me contou o quê?

— Sobre o acidente?

— Que acidente?

Quando eu disse a palavra acidente, Nick me olhou surpreso, de alguma forma sabíamos o que estava por vir.

— Com aquele garoto da mesma sala de Grayson Croft, Charlie Anderson?

— O que tem?

— Queimou-se na casa de Romy, em um acidente com uma fogueira.

Fiquei sem fala enquanto minha mente tentava se lembrar dos poucos graus de separação entre as pessoas de Wellesley: Romy Croft é uma das amigas mais próximas de April em sua turma de tênis. O fi lho de Romy e a fi lha de April estão na mesma sala no ?ardim de infância na escola Longmere Country Day, assim como o paciente de Nick, ao que me parece.

Como se esperava, April perguntou:

— Ele não é paciente de Nick? Pelo menos é o que me contaram… — Sim — respondi, abismada ao perceber que a usina de fofocas funciona a todo o vapor no fi m de semana.

— O que foi? — Nick perguntou, desta vez me olhando f i xamente.

Cobri o telefone com as mãos e disse:

— Seu paciente da noite de sexta-feira, ele estava na casa de Romy Croft quando o acidente aconteceu.

— De quem? — perguntou, provando mais uma vez ser péssimo em guardar nomes e, menos ainda, saber quem é o que de quem. Na verdade, ele é tão ruim que, às vezes, parece que está fazendo de propósito, quase como se achasse graça. Principalmente no caso de pessoas de alto nível, como Romy, que oferece ?antares suntuosos e muito comentados, está envolvida em quase todos os eventos de caridade da cidade e faz parte do conselho da escola de seu f i lho, onde espero que Ruby estude no próximo ano.

Neguei com a cabeça enquanto levantava um dedo indicador, mostrando que ele teria de esperar um segundo.

Enquanto isso, April me contava que Romy estava fora de si de tanta preocupação.

— Como foi que tudo aconteceu? — perguntei.

— Não sei, ela deve estar passando por algum tipo de transtorno de stress pós-traumático, porque ela meio que se esqueceu dos detalhes.

— Ela não se lembra de nada?

— Na verdade, não. Pelo menos nada específ i co, mas, em algum momento, Daniel correu para dentro de casa para pegar mais chocolate, ou marshmallow, ou bolacha, e Romy f i cou sozinha com os meninos… e acho que, nessa hora, alguns deles começaram a fazer algazarra e, não sei como, Charlie deve ter tropeçado e caído. Ela não se lembra de nada depois disso, a não ser de gritar pedindo que Daniel chamasse uma ambulância. Meu Deus, deve ter sido tão horrível.

— Foi mesmo — murmurei, tentando imaginar essa cena terrível e assustadora.

— Quero dizer, nunca vi a Romy tão chateada. Em geral, ela é tão calma com tudo. Mas desta vez… está preocupada principalmente com Charlie, claro, mas com Grayson também. Ela me contou que ele chorou até dormir e depois acordou tendo pesadelos, ela vai marcar uma consulta com um psiquiatra infantil para a?udá-lo a lidar com tudo isso.

— Sim, posso imaginar.

— E, que fi que entre nós, mas Romy e Daniel estão morrendo de medo de sofrer um processo.

— Você acha mesmo que eles vão processá-los? — perguntei, pensando no caos que seria se um pai processasse o outro sendo que os fi lhos estudam na mesma sala. E eu que achei que tinha sido grave quando um garotinho mordeu outro na sala de Frank.

— Ela — esclareceu April. — O garoto não tem pai, ela é mãe solteira, e ninguém a conhece muito bem. Claro que enviei um e-mail às demais mães e aos professores, explicando tudo o que aconteceu. Mas, até agora, ninguém conversou com ela, pelo menos até onde eu sei. Então ninguém sabe ao certo o que ela fará.

— Certo — disse, sentindo-me tensa sem saber ao certo por quê. — T enho certeza de que ela nem está pensando nisso neste momento.

— Ah, claro que não — concordou April, percebendo que talvez estivesse sendo insensível. E, como tal, adicionou rapidamente — Então, como ele está? O Charlie?

— Humm… Não sei ao certo — respondi. Nick e eu ainda não tivemos tempo de conversar sobre detalhes. Não percebi que havia uma… conexão.

— Entendo. Você pode perguntar a ele?

— Uh… sim, só um segundinho — respondi. Então olhei para Nick, que negava veementemente com a cabeça, obviamente pressentindo a direção que a conversa havia tomado. Isso não me supreendeu, ?á que, quando se trata de ética, Nick segue as regras ao pé da letra.

E, como eu ?á esperava, ele sussurrou:

— Por favor, T ess. Você sabe que não posso fi car falando sobre meus pacientes por aí.

— É isso que devo dizer a ela?

— Sei lá. Diga algo geral, você sabe. Diga que ainda não pude determinar a profundidade do trauma térmico na pele.

Que ainda é cedo demais para saber.

— Profundidade do trauma térmico? — perguntei, reconhecendo a terminologia, mas me esquecendo de seu signif i cado exato.

— Se são de segundo ou terceiro grau, se ele precisará sofrer uma cirurgia — explicou, fi cando impaciente.

Acenei e entrei na sala de TV, para que Nick não me ouvisse:

— Voltei.

— O que ele disse?

— Bem, pelo que entendi — disse limpando a garganta — o rosto e a mão do garoto foram gravemente queimados, mas isso fi ca entre nós. Você sabe, essas coisas de sigilo médico.

April soou um pouco na defensiva quando me disse que compreendia.

— Só espero que ele este?a bem. Sinto-me tão mal por todos os envolvidos.

— Sim. É uma situação realmente terrível. As coisas podem acontecer tão rapidamente — falei, perguntando-me por que me sinto tão dividida durante essa conversa. Digo a mim mesma que não é possível escolher um lado.

— Acho que Romy irá ao hospital amanhã — contou-me, para levar uma cesta e tentar conversar com a mãe do menino. E eu vou organizar um grupo de entrega de refeições. Passar uma lista pela escola para saber quem quer participar. As pessoas vão querer a?udar, é uma comunidade tão incrível, um grupo muito unido.

— Você a conhece? A mãe de Charlie? — perguntei, identif i cando-me mais com ela que com Romy, não sei ao certo por quê.

— Não, mas me lembro dela na noite em que a escola estava aberta aos pais, alguns dias atrás. — Então April começou a descrevê-la fi sicamente dizendo:

— Ela é muito delicada… e bonita de uma maneira bem simples. Cabelos lisos e escuros, como se lavasse e ?á saísse de casa. Parece ?ovem, também. Tão ?ovem que dá a impressão de que tenha engravidado ainda adolescente.

Embora eu possa estar completamente enganada quanto a isso, talvez até se?a viúva.

— Certo — concordei, tendo certeza de que April chegaria a algum ponto com isso.

E continuou, como se lesse minha mente:

— Não quero me envolver demais, mas já estou envolvida. Você sabe, sendo amiga de Romy e tendo uma f i lha na escola… E, de certa forma, sendo amiga de vocês.

Meu Deus, como este mundo é pequeno… — Sim — concordei, voltando à cozinha para tomar um gole, muito necessário, de vinho.

— De qualquer modo — April continuou, com o tom de voz repentina e drasticamente mais suave —, você precisa de a?uda com os espetinhos? Acabei de chegar do mercado, então tem bastante fruta aqui em casa, posso te arran?ar algumas.

— Obrigada — respondi. — Mas é muito trabalho. Acho que vou comprar alguma coisa pela manhã mesmo.

— T em certeza?

— T enho sim — assegurei.

— T udo bem — aceitou —, mas nada de bolachas.

— Nada de bolachas — repeti, perguntando-me por que estava tão estressada com algo tão simples como um lanche para crianças.

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