02

[VALERIE ]

Valerie sabia que deveria ter dito não, ou, mais precisamente, que deveria ter continuado dizendo não como resposta mesmo depois das mais de dez vezes em que Charlie implorou para ir à festa. Ele tentou de tudo, incluindo apelar para o peso na consciência com a frase “Mas eu não tenho um papai nem um cachorro”. Mas, quando, mesmo assim, não conseguiu nada, convocou o apoio de seu tio Jason, a pessoa mais convincente que Valerie conhecia.

— Ah, por favor, Val. Deixe o garoto se divertir um pouco — ele disse.

Valerie mandou seu irmão gêmeo se calar, apontando para a sala, onde Charlie construía uma elaborada masmorra de Legos. Jason repetiu a mesma frase, com as mesmas palavras, mas desta vez com um sussurro exagerado, enquanto Valerie abanava negativamente a cabeça, argumentando que era cedo demais para uma criança de 6 anos dormir na casa de um amigo, principalmente ao ar livre, dentro de uma barraca. Era um bate-boca habitual, ?á que Jason sempre acusava sua irmã de ser superprotetora e rígida demais com seu único fi lho.

— Claro — disse Jason, zombando de Valerie —, ouvi dizer que os ataques de ursos estão aumentando em Boston.

— Muito engraçado — respondeu Valerie, explicando que não conhecia bem a família do outro garoto o suf i ciente, e que, do pouco que conheceu, não gostou muito.

— Deixe-me adivinhar, eles são podres de ricos? — Jason caçoou, puxando sua calça ?eans, que deslizava o tempo todo de seu corpo magro, exibindo o elástico de sua boxer.

— E você não quer que ele se misture com esse tipo de gente?

Valerie encolheu os ombros e se entregou a um sorriso, perguntando-se como ele havia adivinhado. Por acaso ela era tão previsível assim? E como, perguntou-se pela milionésima vez, ela e seu irmão gêmeo podiam ser tão diferentes, ?á que cresceram ?untos na mesma casa de telhas marrons em uma vizinhança católico-irlandesa em Southbridge, Massachusetts? Eram melhores amigos, dividiram o mesmo quarto até os 12 anos, quando Jason se mudou para o sótão frio, cheio de correntes de vento, para dar mais espaço à sua irmã. Com cabelos castanhos, olhos azuis amendoados e pele clara, eles até se pareciam e, muitas vezes, as pessoas, inclusive, achavam que eram gêmeos idênticos quando ainda bebês. Além disso, de acordo com a mãe deles, Jason ?á saiu da barriga sorrindo, enquanto Valerie saiu franzindo a testa e preocupada. E assim permaneceram por toda a infância: Valerie, a tímida solitária, sempre sob à sombra de seu irmão popular, extrovertido e quatro minutos mais velho.

Agora, 30 anos depois, Jason continua feliz como sempre, um otimista despreocupado, pulando de um hobby ou emprego para outro, absolutamente confortável em sua própria pele, principalmente desde que saiu do armário logo depois da morte do pai, no último ano do colegial. Como sempre, foi mau aluno; ho?e trabalha em um café em Beacon Hill, fazendo amizade com todos os que entram pela porta e em todos os lugares aonde vai, como sempre.

Enquanto isso, Valerie ainda estava insegura e deslocada na maior parte do tempo, apesar de todas as suas conquistas. Não mediu esforços para fugir de Southbridge, terminou o colegial como uma das alunas mais brilhantes, frequentou a Amherst College com bolsa plena e foi trabalhar como assistente ?urídica em uma renomada empresa de advocacia de Boston enquanto estudava para o LSAT2 e ainda economizava para pagar o curso de direito.

Ela dizia a si mesma que era tão boa quanto os outros e mais inteligente que a maioria, mas, mesmo assim, nunca se sentiu enturmada depois de deixar sua cidade natal.

Quanto mais sucesso obtinha, mais se sentia afastada de seus velhos amigos, principalmente de sua melhor amiga, Laurel, que cresceu três casas para baixo de Val e Jason.

Esse sentimento, sutil e difícil de identif i car no início, culminou em uma grande discussão durante um churrasco na casa de Laurel em um dia de verão.

Depois de alguns drinques, Valerie fez um comentário impensado sobre como Southbridge era tão sufocante quanto o noivo de Laurel. Ela estava apenas tentando a?udar e até sugeriu que Laurel se mudasse para seu pequeno apartamento em Cambridge, mas arrependeu-se assim que falou, e fez de tudo para reparar o dano, pedindo desculpas incessantemente nos dias seguintes. Mas Laurel, que sempre teve pavio curto, isolou-a sumariamente, espalhando rumores do esnobismo de Valerie entre seu velho círculo de amigas — garotas que, como Laurel, viviam com seus antigos namoradinhos da adolescência, agora maridos, na mesma vizinhança onde cresceram, frequentavam os mesmos bares nos fi ns de semana e tinham o mesmo emprego sem graça de seus pais.

Valerie fez o que p?de para se defender dessas acusações e conseguiu consertar superf i cialmente as coisas, mas, a não ser que se mudasse de volta para Southbridge, não havia mais nada que pudesse fazer para que as coisas voltassem a ser como antes.

Foi durante esse período solitário que começou a agir de uma maneira que nem ela mesma conseguia explicar.

Fazendo tudo o que havia ?urado que nunca faria, mais especif i camente, apaixonar-se pelo homem errado, engravidar um pouco antes de ele deixá-la e comprometer seus planos de estudar direito. Anos mais tarde, às vezes, se perguntava se havia inconscientemente tentado sabotar seus próprios esforços para fugir de Southbridge e estabelecer um tipo diferente de vida para si mesma, ou talvez achasse que não merecesse a carta de admissão no curso de direito, de Harvard, colada à geladeira ao lado das fotos do ultrassom.

De qualquer maneira, encontrou-se presa entre dois mundos, orgulhosa demais para ir atrás de Laurel e suas velhas amigas e constrangida demais com sua gravidez para manter as amizades da faculdade ou fazer novos amigos em Harvard. Sentia-se mais só do que nunca, lutando para terminar o curso de direito e cuidando de um recém-nascido. Jason entendia como as coisas podiam ser difíceis para sua irmã durantes esses primeiros meses e anos de maternidade. Ele podia ver claramente quanto ela estava consumida pelo cansaço, pelo trabalho e pela preocupação, e possuía um respeito inf i ndável pelo grande esforço de sua irmã para sustentar a si mesma e a seu fi lho.

Mesmo assim, não conseguia entender por que ela insistia em se isolar, sacrif i cando qualquer indício de vida social, com exceção de algumas poucas amizades casuais. Sua desculpa era falta de tempo, assim como sua devoção e atenção unicamente direcionadas a Charlie, mas Jason não acreditava nela e constantemente a convidava para sair, af i rmando que ela utilizava Charlie como um escudo para não correr riscos e evitar a re?eição.

Agora ela pensava sobre a teoria de seu irmão, enquanto se voltava para o fogão e preparava panquecas. Ela não era uma ótima cozinheira, mas fazia muito bem todos os pratos típicos de café de manhã graças ao seu primeiro emprego, como garçonete em uma cafeteria, e a uma paixonite por um dos cozinheiros do local. Isso aconteceu há muito tempo, mas, na opinião de Jason, ela ainda se identif i cava mais com aquela garota que servia café do que com a advogada bem-sucedida que se tornou.

— Você é uma orgulhosa, sabia? — disse Jason, arrancando três toalhas de papel para utilizá-las como guardanapo e pondo a mesa.

— Não sou, não? — Valerie replicou, revirando a acusação em sua cabeça e admitindo a si mesma, de maneira envergonhada, quantas vezes tinha passado pelas casas suntuosas de Clif f Road e suposto que seus moradores eram, na melhor das hipóteses superf i ciais e, na pior, grandes mentirosos. É como se ela, inconscientemente, relacionasse a riqueza com alguma fraqueza de caráter e desaf i asse esses estranhos a provarem o contrário. Não era ?usto, ela sabia, mas muitas outras coisas não eram ?ustas na vida.

Em momento algum, Daniel e Romy Croft tentaram provar que ela estava errada na noite em que os conheceu, quando a escola estava aberta aos pais. Como a maioria das famílias na Longmere Country Day, a escola particular de ensino fundamental de Wellesley que Charlie frequentava, os Croft eram inteligentes, atraentes e polidos. Mesmo assim, enquanto liam a etiqueta com seu nome presa em sua blusa, ou tentavam uma conversa superf i cial, Valerie sentia que estavam olhando além dela, através dela, procurando por outra pessoa na sala — uma pessoa mais interessante.

Mesmo quando Romy falou de Charlie, algo pareceu falso e arrogante em seu tom de voz.

— O Grayson adora o Charlie, disse, colocando intencionalmente uma mecha de cabelo loiro-claro atrás da orelha, pausando, com as mãos soltas no ar, aparentemente para exibir o imenso diamante em seu dedo anelar. Em uma cidade conhecida por possuir pedras enormes, Valerie nunca vira uma tão impressionante.

— Charlie também gosta muito de Grayson — Valerie respondeu, cruzando seus braços sobre sua blusa rosa-f l amingo e lamentando não estar vestindo seu terno cinza-escuro. Não importava quanto tentasse, quanto gastasse em seu guarda-roupa, parecia que sempre escolhia a roupa errada.

Naquele momento, os dois garotos atravessaram a sala de mãos dadas, Charlie abrindo o caminho até a gaiola do hamster. Qualquer um perceberia que os dois eram melhores amigos, fundadores inabaláveis de uma sociedade de admiração mútua composta de apenas duas pessoas.

Então, por que Valerie presumiu que Romy não estava sendo sincera? Por que não conseguia dar algum crédito a si mesma ou, bem dizer, ao seu próprio fi lho? Perguntava a si mesma quando Daniel Croft se aproximou com um copo plástico de ponche em uma mão, pousando a outra nas costas de sua esposa. Era um gesto sutil que ela veio a identif i car em seu estudo implacável sobre os casais, um gesto que a enchia de quantidades iguais de inve?a e arrependimento.

— Querido, esta é Valerie Anderson… mãe de Charlie — Romy indicou, dando a Valerie a impressão de que eles ?á haviam conversado sobre ela antes daquela noite — além do fato de não haver um pai ao lado do nome de Charlie registrado no diretório da escola.

— Ah, claro? — acenou Daniel, apertando-lhe a mão vigorosamente e estabelecendo um contato visual rápido e indiferente.

— Olá.

Valerie retribuiu o cumprimento e, depois de alguns segundos de silêncio, Romy ?untou as mãos e disse:

— Então, Valerie, você recebeu o convite para a festa de Grayson? Mandei-o há algumas semanas.

Valerie sentiu seu rosto corar enquanto respondia.

— Sim, sim. Muito obrigada — queria morrer por não ter conf i rmado presença, pois tinha certeza de que isso seria um grande problema para Romy, mesmo sendo apenas uma festa de criança.

— Então? — insistiu Romy. — O Charlie pode ir?

Valerie hesitou, sentindo-se intimidada por essa mulher impecável e extremamente segura, como se estivesse novamente no colegial e Kristy Mettelman tivesse acabado de lhe oferecer um trago de seu cigarro e uma carona em seu Mustang vermelho-cere?a.

— Não sei. T enho de… ver em minha agenda. É na próxima sexta-feira, não é? — gague?ou com se tivesse centenas de eventos sociais a frequentar.

— Isso mesmo — disse Romy, abrindo os olhos e o sorriso enquanto acenava para outro casal que acabara de chegar com sua fi lha. — Olhe, querido, April e Rob chegaram — murmurou a seu marido. Então Romy tocou no braço de Valerie, deu-lhe um último sorriso impessoal e disse:

— Foi tão bom te encontrar. Esperamos que o Charlie vá à festa na próxima sexta.

Dois dias depois, segurando o convite em forma de barraca, Valerie discou o número da casa dos Croft. Sentiu uma onda inexplicável de nervosismo — fobia social era como seu médico chamava — enquanto esperava que alguém atendesse. Sentiu um alívio palpável quando ouviu a secretária eletr?nica lhe pedindo que deixasse um recado.

Então, apesar de todos aqueles argumentos contra a ida de seu fi lho à festa, sua voz subiu várias oitavas e disse:

— Seria um prazer para Charlie ir à festa de Grayson.

Um prazer.

Essas foram as palavras que ela repetia quando recebeu a ligação, apenas três horas depois de deixar Charlie na festa com seu saco de dormir de dinossauro e seu pi?ama estampado com foguetes. E não acidente, ambulância, pronto-socorro ou qualquer uma das outras palavras que ouviu claramente Romy Croft dizer, mas ainda não conseguia processar enquanto se vestia, pegava sua bolsa e dirigia até o Hospital Geral de Massachusetts. Ela não conseguia nem dizer essas palavras em voz alta quando ligou do carro para seu irmão, acreditando irracionalmente que dizê-las tornaria a situação mais real.

Em vez disso, disse:

— Venha ?á. Rápido.

— Aonde? — perguntou Jason, tentando ouvi-la apesar da música alta que tocava no fundo.

Quando ela não respondeu, a música parou e ele perguntou novamente, mais preocupado:

— Valerie? Aonde?

— Hospital Ger… É o Charlie — conseguiu responder, pisando mais fundo no acelerador, ultrapassando muito o limite de velocidade.

Suas mãos presas ao volante estavam suadas, com os nós dos dedos esbranquiçados, mas por dentro sentia-se estranhamente calma, mesmo quando ultrapassava um sinal vermelho e depois outro. Era quase como se ela estivesse assistindo a si mesma de fora de seu corpo ou a outra pessoa. É isso o que as pessoas fazem, pensou.

Chamam os mais próximos, correm até o hospital e ultrapassam os sinais vermelhos.

Seria um prazer para Charlie ir à festa, ouviu novamente, enquanto chegava ao hospital e seguia as placas até o pronto-socorro. Perguntou-se como p?de ser tão descuidada, sentada no sofá vestindo um moletom, com um saco de pipoca de micro-ondas e um fi lme de ação do Denzel Washington. Como ela poderia não saber o que estava acontecendo no palacete da Rua Albion? Por que ela não seguiu seus instintos quanto a essa festa? Então prague?ou em voz alta um único e rouco “droga”, com o coração cheio de culpa e arrependimento, diante do prédio nebuloso de ti?olo e vidro diante de si.

A noite tornou-se confusa a partir de então — um con?unto de momentos desconexos, e não uma cronologia suave. Mais tarde, ela se lembraria de ter deixado o carro no meio-f i o, ignorando a placa de PROIBIDO ESTACIONAR e de ter encontrado Jason, com o rosto pálido, atrás das portas duplas de vidro; da enfermeira da triagem, digitando calma e ef i cientemente o nome de Charlie antes de outra enfermeira guiá-los por longos corredores com cheiro de alve?ante até a unidade para queimados da UTI Pediátrica;

de ter cruzado com Daniel Croft no caminho e parado quando Jason perguntou o que havia acontecido e de sua resposta vaga e cheia de culpa:

— Eles estavam preparando smores.3 Eu não vi. Então, veio à sua cabeça a imagem de Daniel digitando em seu BlackBerry ou admirando a paisagem, de costas para a fogueira e para o seu único fi lho.

Ela também se lembraria da imagem assustadora quando viu o pequeno corpo de Charlie, imóvel, sedado e entubado, de seus lábios azuis, do pi?ama cortado e das ataduras branquíssimas cobrindo sua mão direita e o lado esquerdo de seu rosto. Recordaria o bip dos monitores, o zunido do respirador e as enfermeiras frias e alvoroçadas.

Lembraria seu apelo desesperado a Deus, a quem, fazia muito tempo, havia deixado de lado enquanto segurava a mão esquerda do fi lho e esperava.

Mas, principalmente, se lembraria do homem que chegou para examinar Charlie no que parecia ser o meio da noite, depois que seu maior medo havia se dissipado. Como ele descobrira delicadamente o rosto de Charlie, expondo a pele queimada sob as ataduras. Como a levou até o corredor, onde se voltou para ela e começou a falar.

— Eu sou o Dr. Nick Russo — disse com a voz profunda e lenta. — E sou um dos melhores cirurgiões plásticos pediátricos do mundo.

Valerie olhou em seus olhos castanhos e suspirou, suas entranhas se soltaram, enquanto dizia a si mesma que não mandariam um cirurgião plástico se a vida de seu fi lho corresse perigo. Ele fi caria bem. Não morreria. Ela soube disso quando olhou nos olhos do médico. Então, pela primeira vez, pensou em como a vida de Charlie havia mudado. Como essa noite o marcaria de diversas maneiras.

Sentindo-se determinada a proteger seu fi lho qualquer que fosse o resultado, ela se ouviu perguntando ao Dr. Russo se ele poderia corrigir o rosto e a mão de seu fi lho, se poderia deixá-lo lindo como era antes.

— Farei tudo o que puder pelo seu fi lho — disse —, mas quero que se lembre de uma coisa. Pode ser?

Concordou, pensando que ele diria para não esperar por milagres. Como se ela ?á tivesse feito isso alguma vez em sua vida.

Em vez disso, o Dr. Russo olhou em seus olhos e falou as palavras que ela nunca esquecerá:

— Seu fi lho é lindo — ele disse. — Ele é lindo agora.

Ela concordou novamente, acreditando e conf i ando no médico. E só então, pela primeira vez em muito tempo, as lágrimas afloraram de seus olhos.

Mais populares

Comments

Luciane Gomes

Luciane Gomes

A história começou com fortes emoções 😥

2023-10-06

0

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!