8

[VALERIE ]

Com o passar dos dias, Charlie lentamente começou a entender por que estava no hospital. Ele sabia que havia sofrido um acidente na casa de seu amigo Grayson e que seu rosto e sua mão tinham sido queimados na fogueira. Ele sabia que havia passado por uma cirurgia em sua mão e que logo passaria por outra em seu rosto. T ambém sabia que sua pele levaria tempo para cicatrizar e depois precisaria de muitos cuidados, mas que logo voltaria a dormir em sua própria cama, a ir à escola e encontrar seus amigos. Muitos lhe disseram isso — enfermeiras, psiquiatras, terapeutas ocupacionais, fi sioterapeutas, um cirurgião que ele chama de Dr. Nick, seu tio, sua avó e, principalmente, sua mãe, que estava constantemente ao seu lado, dia e noite. Ele viu seu rosto no espelho e estudou sua mão exposta com preocupação, medo ou pura curiosidade, dependendo de seu humor. Já havia sentido a dor ir e vir ?unto com as doses de morf i na e outros analgésicos, e ?á havia chorado de frustração na terapia.

Mesmo assim, Valerie tinha a sensação inquieta de que ele ainda não entendia completamente o que havia acontecido, ou se?a, a gravidade de seus ferimentos ou as implicações acarretadas por eles durante os meses, ou até anos, por vir. Ele ainda não havia interagido com ninguém que não fi zesse parte da equipe do hospital, nem havia sido encarado ou questionado sobre os ferimentos. Valerie se preocupava com tudo isso e gastava muita energia mental se preparando para o futuro, para o momento lúcido da verdade, quando Charlie fi zesse a inevitável pergunta que ela, muitas vezes, ?á se havia feito: “Por quê?”.

Esse momento chegou logo na manhã de quinta-feira, quase duas semanas depois do acidente. Valerie estava em pé olhando pela ?anela, prevendo a excitação de Charlie quando acordasse. Ela não se lembrava de ?á ter visto neve, até mesmo uns poucos fl ocos, no mês de outubro. Mas isso poderia ser o tipo de coisa que geralmente não percebemos quando estamos de um lado para o outro, correndo para resolver as coisas. Soltou um longo suspiro enquanto contemplava a ideia de tomar um banho ou, pelo menos, tomar uma xícara de café. Mas, em vez disso, voltou para a cadeira de balanço, arrastando seus chinelos pelo chão frio e duro. Então se sentou e fi cou parada, olhando para as imagens da TV pequena e muda, presa à parede sobre a cama de Charlie. Al Rocker estava distribuindo alegria no Rockefeller Plaza, entrevistando os turistas entusiasmados que seguravam seus cartazes feitos a mão em frente às câmeras com dizeres como “Feliz aniversário, Jennifer”, “Olá, Escola de Lionville”, “Parabéns, Golden Gophers”.

Valerie se perguntava quando voltaria a sentir uma alegria tão despretensiosa assim quando ouviu Charlie a chamar delicadamente. Ela rapidamente tirou os olhos da TV e se deparou com seu fi lho sorrindo para ela. Valerie sorriu de volta enquanto se levantava e dava os poucos passos necessários para chegar até a cama, abaixou a grade lateral da cama, sentou-se na beirada do colchão e acariciou seu cabelo.

— Bom dia, meu amor.

Ele lambeu os lábios, como sempre faz quando está empolgado ou tem algo bom a contar.

— Sonhei com baleias — ele disse, chutando suas cobertas e subindo os ?oelhos até a altura do queixo. Sua voz estava sonolenta e um pouco rouca, mas não falava mais como se estivesse sedado. — Eu estava nadando com elas.

— É? E o que mais aconteceu? — Valerie perguntou, dese?ando que seus próprios sonhos tivessem sido tão tranquilos.

Charlie lambeu os lábios mais uma vez e Valerie percebeu que o lábio inferior estava rachado. Inclinou-se para pegar um hidratante labial na gaveta ao lado da cama, quando ele falou:

— Eram duas baleias, e eram enormes. A água parecia muito fria, como nas fi guras do meu livro de baleias. Você sabe qual é?

Valerie fez que sim, indo até ele para aplicar o hidratante em seus lábios. Charlie contraiu os lábios rapidamente para ela e continuou:

— Mas, no meu sonho, a água estava bem quente, como em uma banheira. E eu até pude montar em uma delas, estava sentado bem em cima de suas costas.

— Parece maravilhoso, querido — Valerie disse, deleitando-se com o sentimento de normalidade, mesmo estando os dois em um hospital.

Mas, um segundo depois, Charlie pareceu ligeiramente incomodado.

— Estou com sede.

Valerie sentiu-se aliviada em saber que sua queixa envolvia sede e não dor, e rapidamente pegou uma caixinha de suco da geladeira no canto do quarto. Segurando o recipiente maleável, direcionou o canudo na direção de sua boca.

— Eu consigo — Charlie disse franzindo as sobrancelhas, fazendo com que Valerie se lembrasse do conselho do Dr.

Russo no dia anterior, de tentar deixá-lo fazer as coisas sozinho, mesmo quando fosse difícil.

Ela soltou a mão, observando a expressão no rosto de Charlie se tornar triste enquanto ele tentava, sem muito ?eito, agarrar a caixinha com a mão esquerda. Sua mão direita, elevada sobre um travesseiro, estava imóvel, presa a uma tala que continha medicamentos.

Valerie sentiu-se perdida, mas não p?de se conter:

— Quer que eu pegue alguma outra coisa para você? — perguntou com um nó de ansiedade crescendo em seu peito. — Está com fome?

— Não — Charlie respondeu. — Mas a minha mão está coçando tanto.

— Vamos trocar o curativo daqui a pouquinho — ela disse. — E passar a loção, isso vai a?udar a parar de coçar.

— Por que coça tanto assim? — Charlie perguntou.

Valerie explicou cuidadosamente o que ?á haviam explicado ao garoto várias vezes: que as glândulas que produzem óleo para lubrif i car sua pele estavam danif i cadas.

Então ele olhou para sua mão, franzindo as sobrancelhas novamente:

— Está horrível, mamãe.

— Eu sei, meu amor — ela concordou. — Mas está melhorando a cada segundo, a pele só precisa de um tempo para sarar.

Ela estava pensando em contar ao Charlie sobre seu próximo enxerto de pele, o primeiro para o rosto, que estava marcado para a manhã de segunda-feira, quando ele fez a pergunta que cortou seu coração:

— Foi minha culpa, mamãe? — sussurrou.

A mente de Valerie correu contra o tempo enquanto tentava se lembrar de artigos específ i cos de psicologia para vítimas de queimaduras, assim como dos avisos dos psiquiatras de Charlie — Haverá medo, confusão e até mesmo culpa. Mas deixou todas as palavras e conselhos de lado, percebendo que não precisava de mais nada além de seu próprio instinto maternal.

— Ah, querido. Claro que não foi sua culpa, não foi culpa de ninguém — respondeu, pensando em Romy e Daniel e em quanto de fato os culpava pelo que aconteceu, um sentimento que esperava nunca revelar a Charlie. — Foi apenas um acidente.

— Mas por quê? — ele perguntou com os olhos bem abertos, sem piscar sequer uma vez. — Por que eu tinha de sofrer um acidente?

— Eu não sei — respondeu, estudando cada curva e ângulo de seu rosto perfeito, em forma de coração. A testa ampla, as bochechas redondas e seu pequeno queixo pontudo. A tristeza brotava dentro de Valerie, mas ela não hesitou. — Às vezes, coisas ruins simplesmente acontecem, mesmo com as melhores pessoas do mundo.

Percebendo que esse conceito não era o suf i ciente para Charlie, assim como não era para ela, limpou a garganta e continuou:

— Mas sabe o que mais?

Ela sabia que estava falando em tom de falsa empolgação, aquele que usava para, por exemplo, prometer sorvete em troca de bom comportamento. Valerie gostaria de ter alguma coisa para oferecer neste momento — qualquer coisa —, para compensá-lo por seu sofrimento.

— O que mais? — Charlie perguntou esperançoso.

— Vamos superar isso ?untos — ela disse. — Somos um time muito bom e ninguém pode nos segurar. Nunca se esqueça disso.

Enquanto ela engolia as lágrimas, Charlie tomou outro gole de suco, deu-lhe um sorriso cora?oso e disse:

— Não vou me esquecer, mamãe.

No dia seguinte, depois de uma sessão dolorosa de terapia ocupacional para sua mão, Charlie estava prestes a derramar lágrimas de frustração quando ouviu a batida dupla e fi rme do Dr. Russo em sua porta, sua marca registrada. Valerie viu o rosto de seu fi lho se iluminar e também sentiu sua própria alma se elevar. É difícil saber quem espera mais ansiosamente por suas visitas.

— Pode entrar? — Charlie gritou, sorrindo enquanto seu médico entrava no quarto. Valerie estava surpresa em vê-lo vestindo outra roupa que não o avental e o tênis de sempre, vestia uma calça de brim escuro, uma camisa azul-clara aberta no colarinho e um casaco esporte azul-marinho. Ele parecia casual, porém elegante, com mocassins pretos e abotoaduras de prata.

De repente, Valerie lembrou que era noite de sexta e concluiu que ele provavelmente sairia para ?antar com sua esposa. Há tempos Valerie notara a aliança de ouro em sua mão esquerda, e lentamente ?untava detalhes de sua vida a partir de suas muitas conversas com Charlie. Ela sabia de seus dois fi lhos, uma menina e um menino. T ambém sabia que a menina era meio teimosa, os “Contos de Ruby, a travessa”, estavam entre as histórias favoritas de Charlie.

— Como está se sentindo ho?e, amigão? — perguntou o Dr. Russo, enquanto bagunçava o cabelo encaracolado de Charlie, que precisava urgentemente de um corte. Valerie lembrou que ?á achava que ele precisava de um corte desde o dia da festa de Grayson.

— Estou ótimo. Olhe, Dr. Nick, ganhei um iPod do meu tio Jason. — Charlie anunciou, segurando o pequeno aparelho que ganhara na semana anterior. Era o tipo de presente caro que Valerie nunca admitiria antes do acidente. Ela sabia que muitas coisas seriam medidas e categorizadas assim: antes do acidente e depois do acidente.

Charlie entregou seu iPod para o Dr. Russo, que o girou em suas mãos e disse com admiração:

— Muito legal, é muito menor que o meu.

— Cabem mil músicas — disse Charlie, observando com orgulho enquanto seu médico corria sua lista de músicas.

— Beethoven, T chaikovsky, Mozart — falou e assobiou em espanto — Nossa, amigão, você tem um gosto bem sof i sticado para música?

— Meu tio Jason baixou todas as minhas favoritas — Charlie respondeu, com suas palavras, sua voz e sua expressão tornando-se mais maduras, como se fosse uma criança bem mais velha. — Elas são muito relaxantes.

— Quer saber? T ambém acho. Adoro ouvir música clássica. Principalmente quando estou preocupado com alguma coisa — disse o Dr. Russo, ainda examinando a lista de músicas de Charlie. Em algum momento ele fez uma pausa, olhou para Valerie pela primeira vez desde que entrara no quarto e disse olá. Ela riu para ele, esperando que soubesse quanto estava grata por se dirigir a seu fi lho primeiro, antes de se dirigir a ela. E, mais ainda, quanto estava grata por seu esforço para criar uma ligação com Charlie de tal maneira que não tivesse nada a ver com seus ferimentos, sempre fazendo com que se sentisse importante, um efeito que permanecia por muito tempo depois que saía do quarto.

— Eu estava ouvindo a Sinfonia Júpiter enquanto vinha para cá — Dr. Russo comentou. — Você conhece?

Charlie fez que não.

— Mozart — disse Dr. Russo.

— Ele é seu compositor favorito?

— Bem. Essa é uma pergunta difícil. Mozart é demais, mas também curto Brahms, Beethoven, Bach. Os três “Bs” — disse o Dr. Russo, sentando-se na beirada da cama de Charlie, agora de costas para Valerie. Ela assistia aos dois ?untos quando sentiu uma pontada de tristeza aguda, dese?ando que Charlie tivesse um pai. Havia tempos ela aceitara sua situação, mas, em momentos como este, ela ainda achava inacreditável que o pai de Charlie não soubesse absolutamente nada sobre seu fi lho, sobre seu amor por música clássica, Star Wars, baleias-azuis ou Legos.

Sobre a maneira engraçada como corre, com um braço estendido na lateral de seu corpo, ou sobre as linhas enrugadas e alegres que se formam ao redor de seus olhos quando sorri, a única criança com pés de galinha que ela conhece. Que não soubesse que ele estava no hospital, falando sobre compositores com seu cirurgião plástico.

— Você gosta de Jesus, Alegria dos Homens? — Charlie perguntou sem f?lego, enquanto Valerie lutava contra as lágrimas que vinham sem avisar.

— Claro — respondeu Dr. Russo, e então soltou algumas notas em staccato enquanto Charlie o acompanhava com a letra em inglês, cantando com sua voz aguda e doce.

— Drawn by Thee, our souls, aspiring! Soar to uncreated light!14 Dr. Russo se virou e deu outro sorriso para Valerie dizendo:

— Quem te ensinou tudo isso sobre música, amigão? Sua mãe?

— Sim, e o meu tio Jason — Charlie respondeu.

Valerie sentiu que não podia levar nenhum crédito por isso, foi Jason quem fez esse trabalho, embora se lembre de ter ouvido música clássica quando estava grávida, segurando o aparelho de CD sobre sua barriga.

Dr. Russo fez que entendeu, devolvendo o iPod para Charlie, que estendeu a mão que não estava machucada até o outro lado de seu corpo para pegá-lo, apoiou-o em sua coxa e voltou a passar sua lista de músicas com o polegar.

— T ente usar a mão direita, amigão — sugeriu Dr. Russo gentilmente. Charlie franziu as sobrancelhas, mas obedeceu. A trama de pele roxa entre o polegar e o indicador fi ca bem esticada enquanto ele mexe no aparelho.

— Aí está — Charlie fi nalmente disse, apertando o “Play” e aumentando o volume. Mantendo um dos fones de ouvido, entregou o outro ao Dr. Russo e ouviram ?untos. — Eu gosto desta.

— Ah, sim. Adoro esta — concordou Dr. Russo.

— É ótima, não é? — Charlie perguntou atentamente.

Vários segundos tranquilos se passaram.

— Sim — disse Dr. Russo. — É linda. E essas trompas?

Elas com certeza têm um som alegre, não é?

— Sim — Charlie iluminou-se. — Muito, muito alegre.

Pouco tempo depois, Rosemary chegou sem avisar, carregando uma sacola de bugigangas da lo?a de 1,99 para Charlie e um pote de plástico com seu famoso frango com cogumelos. Valerie sabia quanto sua mãe estava se esforçando, quanto queria a?udá-los. Mesmo assim, dese?ava que ela não tivesse ido ao hospital, pelo menos não naquele momento, e estava assombrada com quanto sua mãe conseguia sugar o sentimento de paz de dentro do quarto simplesmente com sua presença.

— Oh? Olá, Rosemary — disse, olhando fi xamente para o Dr. Russo. Eles ainda não haviam se conhecido, mas ?á tinha ouvido falarem muito dele, principalmente Charlie.

O Dr. Russo se virou de maneira abrupta e se levantou com um sorriso polido, enquanto Valerie fez uma apresentação que parecia tão constrangedora quanto, de alguma forma, reveladora. Desde que chegaram ao hospital, Valerie e Charlie fi zeram alguns amigos, mas ela permaneceu como uma guardiã atenta de todas as suas informações pessoais. Raramente os detalhes escapavam, às vezes involuntariamente e outras vezes por necessidade.

O Dr. Russo sabia, por exemplo, que havia apenas um dos pais assinando os formulários de consentimento, e qualquer um conseguia perceber que não havia nenhum outro visitante homem além de Jason.

— Muito prazer, Sra. Anderson — disse Dr. Russo, enquanto estendia sua mão na direção de Rosemary.

— É um prazer conhecê-lo também — ela respondeu, cumprimentando-o com um olhar atordoado de admiração, a mesma expressão que fazia depois da missa, quando conversava com os padres, principalmente os mais ?ovens e atraentes. — Nem tenho como agradecer-lhe, Dr. Russo, por tudo que tem feito por meu neto.

Era algo adequado a se dizer e, mesmo assim, Valerie sentiu-se incomodada e até mesmo constrangida pelo leve terror presente na voz de sua mãe. Mais ainda, Charlie estava lá, ouvindo tudo atentamente, e não gostou do tom melodramático de sua mãe, recordando-lhes da razão pela qual todos estavam lá. Dr. Russo pareceu estar consciente dessa dinâmica também, pois rapidamente murmurou:

— Não há de quê — e então se virou para Charlie e falou:

— Bem, amigão, vou deixar você com sua avó.

O rosto de Charlie se contraiu quando franziu as sobrancelhas.

— Ah, Dr. Nick, você não pode fi car mais um pouquinho?

Por favor?

Valerie viu o Dr. Russo hesitar, e então correu para salvá-lo:

— Charlie, querido, o Dr. Russo precisa ir agora. Ele tem muitos outros pacientes para visitar.

— Na verdade, amigão, preciso falar com a sua mãe por um instante. Se não for problema para ela? — perguntou o médico, voltando o olhar para Valerie. — Você tem um minuto?

Ela assentiu, pensando em quanto sua vida fi cou mais lenta desde que chegaram ao hospital. Antes, ela sempre estava correndo, mas agora o tempo é a única coisa que tem de sobra.

Dr. Russo apertou o pé de Charlie e disse:

— Ve?o você, amanhã. T udo bem, amigão?

— T udo bem — Charlie respondeu relutante.

Valerie sabia que sua mãe se sentia triste por estar sempre em segundo plano e que ela compensava isso com uma empolgação forçada:

— Olhe? Eu trouxe um livro de caça-palavras? — ela vibrou. — Não é divertido?

Valerie sempre achou que procurar por palavras em um quadro cheio de letras estava entre os ?ogos mais entediantes do mundo e p?de perceber, pela reação sem brilho de seu fi lho, que ele compartilhava de sua opinião.

Era a mesma coisa que se sua avó o convidasse para contar o número de covinhas de uma bola de golfe.

— Pode ser — respondeu encolhendo os ombros.

Dr. Russo despediu-se de Rosemary com um aceno de cabeça antes de sair do quarto. Valerie o seguiu, lembrando-se da noite em que se conheceram e de sua primeira conversa fora do quarto, em um corredor tão estéril quanto o que estavam neste momento. Ela pensou em até onde ela e Charlie chegaram, em quanto seu medo e horror diminuíram, substituídos por uma grande medida de resignação impassível e uma pitada de esperança.

A sós, fi caram frente a frente em silêncio por alguns segundos antes de o Dr. Russo dizer:

— Você gostaria de tomar um café? Na lanchonete?

— Sim — ela respondeu, sentindo sua pulsação acelerar de tal maneira que a surpreendeu e, ao mesmo tempo, deixou-a incomodada. Sentiu-se ansiosa, mas não sabia ao certo o porquê, e esperava que ele não pudesse sentir sua inquietação.

— Ótimo — ele disse, enquanto se viravam e andavam em direção aos elevadores. Eles não conversaram no caminho, a não ser quando, às vezes, cumprimentavam alguma enfermeira. Valerie estudou o rosto de cada uma cuidadosamente, suas reações ao Dr. Russo, como ?á o fazia havia algumas semanas. Ela ?á havia determinado que o Dr.

Russo era admirado, quase venerado, em grande contraste com outros cirurgiões sobre os quais ouvira reclamações, acusações por serem condescendentes e arrogantes, ou simplesmente grosseiros. Ele não é afável nem falante demais, mas possui um ?eito cordial e respeitoso que, aliado à sua reputação de rock star, torna-o o médico mais popular do hospital. “Ele é o melhor do país”, ela ?á ouvira inúmeras vezes. “Mesmo assim é tão simpático, e muito atraente também.”

T udo isso tornou o convite ainda mais lison?eiro para Valerie. Ela tinha certeza de que ele queria apenas conversar sobre o enxerto de pele de Charlie que se aproximava ou sobre a evolução geral do quadro de seu f i lho, mas teve a impressão de que ele raramente fazia isso tomando um café, principalmente em uma noite de sexta-feira.

Alguns segundos depois, chegaram ao elevador e, quando a porta se abriu, Dr. Russo deu-lhe licença para que Valerie entrasse primeiro. Dentro do elevador, os dois olhavam fi xamente para a porta, silenciosos, até que ele limpou a garganta e falou:

— Ele é um garoto maravilhoso.

— Obrigada — respondeu Valerie, acreditando no que ele dizia. Essa é a única hora em que sabe aceitar elogios, quando se referem a seu fi lho.

Saíram do elevador e viraram o corredor em direção à lanchonete. Enquanto os olhos de Valerie se acostumavam com as luzes fl uorescentes, Dr. Russo perguntou:

— Quando ele começou a se interessar por música clássica?

— No ano passado — Valerie respondeu. — Jason toca piano e violão e lhe ensinou muito sobre música.

Dr. Russo fez um sinal com a cabeça, como se estivesse digerindo essa informação, e então perguntou se Charlie tocava algum instrumento.

— Ele faz aulas de piano — ela falou, seguindo o caminho ?á conhecido, passando pela grelha e pelas máquinas de refrigerante e chegando ao balcão do café.

Valerie p?de notar que ele estava pensando na mão de Charlie enquanto continuava:

— Ele é muito bom. Pode ouvir uma música e simplesmente... descobrir as notas, de ouvido — continuou hesitante, perguntando-se se estava se gabando demais. — É de família, parece que Jason tem ouvido absoluto, uma vez identif i cou nossa campainha como um Lá acima do Dó central.

— Uau — disse Dr. Russo, parecendo legitimamente impressionado. — Isso é raro, não é?

Valerie conf i rmou enquanto pegava um copo da pilha de descartáveis e analisava as opções de café.

— Acho que é uma em cada 10 mil pessoas, ou algo assim.

Dr. Russo assobiou impressionado e então perguntou:

— O Charlie consegue fazer isso?

— Não, não — Valerie respondeu. — Ele só é um pouco precoce, só isso.

Dr. Russo fez que entendeu enquanto enchia um copo de papel com o café comum. Enquanto isso, Valerie escolheu o que tinha avelã e o adoçou com açúcar cristalizado.

— Você está com fome? — ele perguntou quando passaram pelo balcão de doces e outros lanches.

Ela balançou a cabeça em negação, tendo se esquecido havia muito tempo de como era a sensação de fome. Em duas semanas, perdeu no mínimo dois quilos, indo de magra a muito magra, com os ossos de seu quadril fi cando bem saltados.

Foram até o caixa, mas, quando Valerie pegou sua carteira, Dr. Russo disse:

— Pode deixar.

Ela não fez ob?eções, para não criar caso por causa de um copo de café de 80 centavos. Em vez disso, agradeceu passivamente enquanto ele pegava seu troco e a levava até uma pequena mesa no canto ao fundo da lanchonete, um lugar onde ela ?á se sentara muitas vezes, mas sempre sozinha.

— Então — ele disse, sentando-se e tomando um gole de seu café. — Como você está?

Ela se sentou do outro lado da mesa, de frente para ele, e disse que estava bem, acreditando nisso naquele momento.

— Sei que não é fácil — ele disse —, mas tenho que te dizer, realmente acho que Charlie está indo muito bem, e, em grande parte, acredito que é por sua causa.

Valerie sentiu seu rosto corar enquanto lhe agradecia e falou:

— O hospital tem sido maravilhoso. Todos aqui têm sido maravilhosos.

Foi o mais perto que chegou de lhe agradecer, algo que ela geralmente não conseguia fazer diretamente, por medo de desabar. Dr. Russo agradeceu, sendo sua vez de ser modesto:

— Não há de quê — disse enfaticamente, em um tom bem diferente daquele que usara em resposta aos agradecimentos de Rosemary.

Valerie riu do médico de seu fi lho e ele sorriu de volta.

Então os dois tomaram seus cafés em perfeita sincronia, o tempo todo mantendo contato visual. Valerie decidiu que, em qualquer ângulo, eles haviam acabado de compartilhar um momento, e que o reconhecimento con?unto desse momento os deixara silenciosos por um período ainda maior.

A mente de Valerie fervilhava enquanto pensava no que dizer em seguida. Ela resistiu à vontade de bombardeá-lo com perguntas médicas, pois achava que ?á havia feito perguntas demais. E, ao mesmo tempo, não se sentia à vontade para puxar conversa sobre tópicos da vida lá fora, ?á que tudo parecia trivial ou pessoal demais.

— Bem — ele acabou por dizer —, queria falar com você sobre segunda--feira. O enxerto de Charlie.

— T udo bem — ela disse, sentando-se ereta e dese?ando estar com seu caderno e uma caneta, para que pudesse fazer anotações e assim aliviar a tensão.

— Eu queria ter certeza de que você entendeu o procedimento, além de responder a todas as dúvidas que possa ter — ele explicou.

— Eu agradeço — Valerie disse, enquanto reunia em sua cabeça todos os detalhes de suas conversas anteriores com o Dr. Nick, assim como as informações desconexas vindas das enfermeiras de Charlie e tudo o que ela havia pesquisado na internet.

Ele limpou a garganta e começou a explicar:

— T udo bem, a primeira coisa na manhã de segunda, um anestesista virá e fará o Charlie dormir.

Sentiu-se tensa enquanto ele continuava.

— Então rasparei sua cabeça e removerei a pele queimada de seu rosto.

Valerie aceitou e fez que estava entendendo.

— Pegarei um instrumento cirúrgico especial chamado dermátomo elétrico e removerei uma camada de pele de seu couro cabeludo para produzir um enxerto de espessura parcial.

— Espessura parcial? — ela perguntou preocupada.

Ele conf i rmou com segurança.

— Um enxerto de espessura parcial contém a epiderme e uma parte da derme.

— E isso voltará a crescer? Em seu couro cabeludo?

— Sim. A pele restante ainda terá folículos de cabelo e glândulas sebáceas que gradualmente se proliferarão formando uma nova camada de epiderme. Vamos revestir a área com uma gaze embebida em antibiótico para proteger a área de infecções.

— T udo bem — disse Valerie, contendo-se e assentindo com a cabeça. — E depois? Como você vai aplicar a pele?

— Então. Pegaremos a pele e simplesmente a colocaremos sobre seu rosto, utilizando um bisturi para fazer pequenos furos que permitirão a drenagem de sangue e líquidos. Daí fi xaremos o enxerto com suturas fi nas e um pouco de cola biológica e o cobriremos com um curativo umedecido e não aderente.

— E ele sempre... pega? — ela perguntou.

— Geralmente sim. O enxerto deve se prender e se revascularizar, e seu couro cabeludo será compatível com seu rosto.

Ela fez que entendeu com a cabeça, sentindo-se en?oada, porém segura, enquanto ele continuava a explicar que depois da cirurgia Charlie usaria uma máscara facial feita sob medida a fi m de controlar a cicatrização de seu rosto.

— Basicamente, queremos manter as cicatrizes baixas, suaves e fl exíveis.

— Uma máscara? — ela perguntou, tentando imaginar preocupada, mais uma vez, com o estigma social pelo qual seu fi lho teria de passar.

— Sim — ele conf i rmou. — Um terapeuta ocupacional passará por aqui no fi m da tarde para fazer um escaneamento do rosto de Charlie. Esses dados serão enviados a uma empresa que produz máscaras de silicone transparentes, feitas sob medida. A máscara cobrirá todo o rosto de Charlie, com exceção dos buracos para seus olhos, seu nariz e sua boca, e será presa com tiras.

— Mas então ela será transparente? Translúcida?

— Sim — ele esclareceu. — Para que possamos observar as partes esbranquiçadas da cicatriz e ver onde a pressão está sendo aplicada. Com o passar do tempo, o terapeuta fará a?ustes no encaixe da máscara, fazendo alterações no molde e reaquecendo o plástico. — Ele estudou o rosto de Valerie, como se estivesse procurando por algo. — Parece bom?

Ela concordou, sentindo-se levemente tranquila.

— Alguma outra pergunta?

— Não, no momento não — ela respondeu rapidamente.

Dr. Russo aceitou e disse:

— Bem, é só me ligar se as dúvidas surgirem. A qualquer hora, você tem o número do meu celular.

— Obrigada, Dr. Russo — ela agradeceu.

— Nick — ele disse. É pelo menos a quarta vez que ele a corrige.

— Nick — ela repetiu, enquanto seus olhos se encontravam novamente. Outro momento de silêncio, muito parecido com o anterior, mas desta vez Valerie se sentiu mais à vontade, quase que apreciando a camaradagem silenciosa.

Nick parecia sentir o mesmo, pois sorriu e facilmente mudou de assunto:

— Então, o Charlie disse que você é advogada.

Valerie conf i rmou, perguntando-se quando e em qual contexto Charlie falou de sua prof i ssão.

— Que tipo de advogada? — Nick perguntou.

— Direito empresarial — ela respondeu, pensando em como sua fi rma e sua política pareciam distantes e insignif i cantes para ela. A não ser por uns poucos telefonemas pelos quais conversou com o chefe de seu departamento, quem lhe garantiu que cuidaria de seus casos e de seus clientes. Disse-lhe que não precisava se preocupar com nada, ela não havia pensado uma única vez no trabalho desde o acidente e não conseguia entender por que alguma vez deixara que esse trabalho a estressasse tanto.

— Você estudou Direito por aqui?

Ela fez que sim e continuou:

— Sim, estudei em Harvard — disse, apesar de sempre ter evitado pronunciar essa palavra. Não por falsa modéstia, como a maioria de seus amigos diziam “Estudei em Cambridge”, mas porque ainda não se sentia merecedora do nome.

Mas com Nick era diferente, talvez porque soubesse que ele também havia estudado lá — que ele era bem-sucedido.

E, inabalável, ele disse:

— Você sempre soube que queria exercer advocacia?

Ela pensou sobre a pergunta, sobre a verdade, que na realidade ela não era apaixonada pelo direito, mas que simplesmente queria sentir o gosto da conquista. Charlie nasceu, e foi quando quis desesperadamente ganhar um bom dinheiro para poder sustentar seu fi lho. Fazer algo de que Charlie sentisse orgulho para que ela conseguisse, de alguma forma, compensá-lo por não ter um pai.

Mas é claro que ela não disse nada disso. No lugar, falou:

— Não, na verdade não. Eu fui assistente ?urídica por alguns anos e daí percebi que era tão inteligente quanto os advogados da minha fi rma. — Então sorriu e arriscou uma piada, sua primeira em anos. — Provavelmente o que as enfermeiras por aqui dizem de você.

— Provavelmente — concordou o Dr. Russo, sorrindo de volta modestamente.

— Ah, por favor. Você não acredita nisso. Você mesmo me contou quanto você é bom.

— Eu contei? — perguntou surpreso. — Quando?

— Quando nos conhecemos — ela disse, com o sorriso desaparecendo de seu rosto à medida que se lembrava daquela noite.

Ele olhou fi xamente para cima, como se também estivesse revivendo a noite do acidente de Charlie.

É — É, acho que disse, não é?

Valerie concordou e então concluiu:

— E até agora... tenho de concordar.

Ela o olhou enquanto ele se inclinou sobre a mesa e disse:

— Espere só. Dê-me alguns meses e mais umas cirurgias.

Valerie não falou nada depois disso, mas p?de sentir seu coração se acelerar por gratidão e algo a mais que ainda não conseguia identif i car, enquanto silenciosamente lhe concedia todo o tempo do mundo.

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Comments

Divina Santos

Divina Santos

vdd,espero q ela ñ comece a gostar dele,tomara q aparesa alguém q ela goste

2024-04-03

0

Elaine Coimbra

Elaine Coimbra

Poxa, não gostaria dele com a Valerie. A Tessa largou um casamento, ficou com ele, e eles vivem tão bem. Tirando o fato dele se preocupar mais com o trabalho, inclusive em seu aniversário de casamento.

2023-08-23

0

Soraya Zaidan

Soraya Zaidan

Não tô gostando do rumo dessa prosa. Se ele vive tão bem com a esposa, não deve se encantar por outra tão fácil.

2023-08-18

0

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