6

[ VALERIE ]

A vista do lado de fora do quarto de Charlie era bem agradável, contemplava um pátio cheio de hortênsias cor-de-rosa e brancas, mas Valerie preferia manter as persianas fechadas, a pequena abertura para o lado norte praticamente não permitia que nenhum feixe de luz passasse pelas tiras de plástico. Por isso, ela rapidamente perdeu a noção de dia e noite, uma lembrança de quando Charlie era apenas um bebê, quando tudo o que queria fazer era fi car ao seu lado e cuidar de tudo o que precisasse. Mas agora ela só podia assistir, sem ter o que fazer, enquanto ele resistia bravamente a trocas de curativos e bolsas de líquidos que entregavam, gota a gota, nutrientes, eletrólitos e analgésicos através de suas veias.

As horas demoravam a passar e eram interrompidas apenas pelas duas visitas diárias do Dr. Russo e pelo ciclo inf i ndável de enfermeiras, assistentes sociais e funcionários do hospital, a maioria vinha para cuidar de Charlie, alguns vinham ver se Valerie estava bem e outros simplesmente para esvaziar os cestos de lixo, trazer refeições e limpar o chão. Valerie recusava-se a dormir na cama de aço inoxidável que uma das enfermeiras sem nome nem rosto trouxe, com lençóis brancos desgastados e um cobertor azul f i no esticados e asseadamente presos nas laterais. Em vez disso, ela fi cava na cadeira de balanço de madeira ao lado da cama de Charlie, de onde podia observar seu peito estreito subir e descer, o movimento de suas pálpebras, o sorriso que, às vezes, surgia enquanto dormia. De vez em quando, porém, apesar de todos os seus esforços para fi car acordada, cochilava por alguns minutos, outras vezes por um pouco mais de tempo, sempre acordando em sobressalto, revivendo a ligação de Romy, percebendo mais uma vez que seu pesadelo era real. Charlie ainda estava sedado demais para compreender o que acontecera e, ao mesmo tempo em que Valerie rezava para que ele acordasse logo, morria de medo do momento em que teria que explicar tudo a ele.

No quarto ou quinto dia, a mãe de Valerie, Rosemary, voltou de Sarasota, onde estava visitando uma prima. Era outro momento que Valerie temia, sentindo-se irracionalmente culpada por encurtar a visita de sua mãe, ?á que ela quase nunca saía de Southbridge, e mais culpada ainda por adicionar outro capítulo trágico a sua vida ?á bastante trágica. Viúva duas vezes, Rosemary perdeu os dois maridos, o pai de Valerie e o vendedor depois dele, em decorrência de ataques cardíacos.

O pai de Valerie estava removendo a neve da entrada da garagem depois de uma nevasca (teimoso, recusava-se a pagar ao garoto da casa ao lado por algo que ele mesmo podia fazer) quando teve o ataque. E, embora sua teoria nunca tenha sido conf i rmada, Valerie tinha certeza de que o segundo marido de sua mãe morreu enquanto transavam.

Durante o funeral, Jason virou-se para Valerie e comentou sobre o número de Ave-Marias que seria necessário para pagar pelo pecado das relações carnais letais e sem fi ns de procriação.

Essa é uma das várias coisas que Valerie ama em seu irmão, sua capacidade de fazê-la rir nas situações mais improváveis. Mesmo agora, ele tentava contar piadas, geralmente à custa das enfermeiras mais zelosas e falantes, e Valerie forçava um sorriso como uma maneira de agradecer--lhe pelo esforço, por sempre estar ao seu lado. A coisa mais antiga de que se lembra é dos dois em uma carreta vermelha, descendo rapidamente pelo morro íngreme e gramado próximo à casa deles, rindo tanto que, por fi m, os dois molharam as calças e a carreta se encheu de um líquido quente. Claro que depois puseram a culpa no bassê do vizinho.

Anos mais tarde, foi ele quem segurou sua mão durante o primeiro ultrassom de Charlie, levou-a até o hospital quando sua bolsa estourou, fi cou acordado à noite, cuidando do bebê, quando ela não conseguia mais parar em pé e a apoiou enquanto fazia o curso de direito e prestava o exame da Ordem dos Advogados, insistindo o tempo todo que ela era capaz, que ele acreditava nela. Ele era seu irmão gêmeo, seu melhor amigo e, desde a briga com Laurel, seu único conf i dente.

Então, não é de admirar que continuasse por perto neste momento também, levando roupas e produtos de higiene para ela no hospital, telefonando para a escola de Charlie e para seu chefe na fi rma de advocacia, explicando que ela precisaria de uma licença por tempo indeterminado e, nesta manhã em particular, foi buscar Rosemary no Logan Airport.

Valerie conseguia imaginar seu irmão atualizando sua mãe, sugerindo delicadamente o que deveria ou não dizer. Não que faria muita diferença, ?á que, apesar da melhor das intenções, sua mãe possui a habilidade sobrenatural para dizer exatamente o que não se deve dizer, especialmente à sua fi lha.

Então, quando Rosemary e Jason chegaram do aeroporto e se depararam com Valerie na lanchonete, olhando para longe com um copo de refrigerante de máquina, um hambúrguer intacto e um prato cheio de fritas diante de si, não foi surpresa alguma que as primeiras palavras de sua mãe ?á tenham sido de crítica, e não de consolo.

— Não acredito que um hospital possa servir uma comida tão ruim? — disse para ninguém especif i camente. É um ponto de vista compreensível depois de se perder dois maridos para doenças do coração, mas Valerie não estava a f i m de ouvir isso neste momento, principalmente quando não tinha nenhuma intenção de comer qualquer coisa que fosse. Afastou a bande?a vermelha de plástico para longe e se levantou para cumprimentar a mãe.

— Oi, mãe, obrigada por vir — disse, ?á exausta pela conversa que ainda nem havia começado.

— Val, querida — Rosemary retribuiu. — Não precisa me agradecer por vir ver meu único neto.

É assim que ela sempre se refere ao Charlie. Uma vez Jason brincou sobre a graça divina de ser mãe solteira. Ele disse que “Charlie pode ser um bastardo, mas ao menos daria continuação ao nome da família”.

Valerie riu, pensando que nunca toleraria a palavra bastardo referindo-se a seu fi lho vinda de qualquer outra pessoa no mundo que não fosse Jason. Mas Jason tinha passe livre, com validade para a vida toda. Ela podia contar nos dedos de apenas uma mão o número de vezes que ele a irritara na vida. Ultimamente, o oposto parecia ser verdade quanto à sua mãe. Ela então partiu para um abraço relutante em sua mãe, que retribuiu constrangida. As duas mulheres, com seus corpos esbeltos, são cópias idênticas uma da outra, ambas contidas e rígidas.

Jason revirou os olhos, perguntado-se como duas pessoas que se amam podem ter tanta dif i culdade em demonstrar seu afeto. Valerie sente inve?a de seu irmão quando se lembra da primeira vez em que Jason levou um namorado para conhecer a família (um corretor de valores muito atraente, chamado Levi) e de quanto fi cara confusa observando os dois se tocarem, fi carem de mãos dadas e, até mesmo, em certo momento, abraçarem-se despreocupadamente. A surpresa de Valerie não tinha nada a ver com o fato de seu irmão ser gay, algo que ela ?á sabia fazia anos, talvez antes mesmo de o próprio Jason saber, mas sim com sua habilidade de demonstrar um afeto tão fácil e natural.

Lembra-se de Rosemary olhando para o outro lado nesses momentos, aparentemente em negação quanto à natureza da “amizade” entre os dois. Quando Jason anunciou sua homossexualidade, sua mãe aceitou impassivelmente (mais impassivelmente do que como aceitara a notícia da gravidez de Valerie), mas nunca admitiu isso desde então, a não ser quando comentou inesperadamente com Valerie que ele com certeza não parecia gay, como se esperasse que tudo tivesse sido apenas um mal--entendido. Valerie tinha que admitir que isso era verdade, que Jason não se encaixava nos estereótipos gays. Falava e andava como um hétero, torcia fervorosamente pelo Red Sox e pelo Patriots e tinha pouca noção de moda, vestindo-se quase sempre com calças ?eans e camisas de fl anela.

— Mas ele é gay, mãe — conf i rmou Valerie, reconhecendo que amar consiste em aceitar e que não mudaria nada em seu irmão, assim como não mudaria nada em seu fi lho.

De qualquer maneira, Valerie temia a reação de sua mãe quando visse o estado de Charlie, antecipando reações de negação despreocupada, um caminhão de culpa ou uma série interminável de frases iniciadas com “se ao menos”.

Então, depois de pegar a bande?a e despe?ar seu conteúdo em uma lixeira próxima, levou sua mãe e seu irmão até a saída da lanchonete. A caminho do elevador, Rosemary soltou sua primeira bomba:

— Ainda estou meio confusa. Como diabos isso aconteceu?

Jason olhou incrédulo para sua mãe, enquanto Valerie suspirou e respondeu:

— Não sei, mãe. Eu não estava lá e, claro, ainda não consegui conversar com o Charlie sobre isso.

— E os outros garotos que estavam na festa? Ou os pais?

O que lhe contaram? — indagou Rosemary com o rosto angular se movendo para a frente e para trás, como aqueles brinquedos de dar corda antigos.

Valerie pensou em Romy, que lhe deixou diversas mensagens de voz no celular e ?á passou no hospital duas vezes, deixando cartões feitos à mão por Grayson. Apesar de querer saber cada detalhe do que acontecera naquela noite, ela ainda não consegue encarar Romy, muito menos retornar suas ligações. Não está pronta para ouvir suas desculpas e explicações e tem certeza de que nunca lhe perdoará. Valerie e sua mãe também têm isso em comum, Rosemary guarda rancor com mais determinação que qualquer pessoa que ela conheça.

— Bem, então vamos vê-lo — Rosemary diz, soltando o ar apreensivamente.

Valerie assentiu e os três entraram no elevador subindo dois andares e andaram em silêncio até o fi m do corredor. À medida que iam se aproximando do quarto, Valerie ouviu sua mãe murmurar:

— Você deveria ter me ligado assim que o acidente aconteceu.

— Eu sei, mãe. Sinto muito. Eu só queria chegar ao fi m das primeiras horas. Além disso, não havia nada que pudesse fazer a distância.

— Rezar — respondeu Rosemary, levantando uma sobrancelha — Eu poderia ter rezado por ele. E se, Deus me perdoe… — sua voz sumiu, dando lugar a uma expressão de dor em seu rosto de traços fortes.

— Sinto muito, mãe — Valerie repetiu, contabilizando suas desculpas em silêncio.

— Bem, você está aqui agora — concluiu Jason, dando a Rosemary seu sorriso mais cativante. A família toda sabe que Jason é seu fi lho favorito, apesar de ser homossexual.

— E você? Está magro demais, meu amor — disse Rosemary, examinando-o da cabeça aos pés, como se procurasse pelos sinais da AIDS, brincaria Jason com Valerie mais tarde.

Jason pendurou um braço sobre o ombro de Rosemary e, usando todo o seu charme, disse:

— Ah, por favor, mamãe. Olhe para esse rosto. Você sabe que estou lindo.

Valerie analisou sua frase e sentiu-se tensa. Não exatamente porque Jason estava falando de seu rosto bonito e livre de cicatrizes, mas por causa do olhar que ele lhe deu depois. Um olhar de preocupação, de compaixão, de perceber que ele também dissera algo de errado. Valerie conhece bem esse olhar de piedade e sentiu o peito doer ao perceber que seu fi lho também o conheceria a partir de agora.

Na manhã seguinte, enquanto Charlie ainda estava cochilando, o Dr. Russo chegou para examinar sua mão.

Valerie p?de dizer imediatamente que havia algo errado, apesar de sua expressão impassível e de seus movimentos lentos e deliberados.

— O que há de errado? — perguntou. — Conte-me.

Ele abanou a cabeça em negação e disse:

— Sua mão não está com um bom aspecto. Está muito inchada.

— Ele vai precisar de cirurgia? — Valerie perguntou, preparando-se para a má notícia.

Dr. Russo acenou que sim e disse:

— Sim. Acho que precisaremos mexer em sua mão para aliviar a pressão.

Valerie sentiu sua garganta fechar só de pensar o que “mexer em sua mão” queria dizer, até que ele explicou:

— Não se preocupe, vai dar tudo certo. Só precisamos aliviar a pressão e fazer um enxerto em sua mão.

— Um enxerto?

— Sim, um enxerto de pele.

— Pele de onde?

— Da sua perna, da área da coxa. Só precisamos de uma pequena tira de pele. Então a colocaremos em um aparelho para expandi-la e a prenderemos em sua mão com um grampeador cirúrgico.

Ela podia sentir seu rosto se contorcer enquanto ele continuava, explicando que todo o enxerto seria nutrido por um processo chamado imbibição plasmática, o que signif i ca que o enxerto iria, literalmente, beber plasma e produzir novos vasos sanguíneos na pele transplantada.

— Você faz parecer fácil — comentou.

— E é bem fácil mesmo — ele concordou. — Já fi z isso milhares de vezes.

— Então não há riscos? — perguntou, pensando se não havia nenhum ?uízo de valor envolvido, se não precisava procurar por uma segunda opinião.

— Na verdade não, a principal preocupação é o acúmulo de líquidos sob o enxerto — continuou a explicar. — Para evitar que isso aconteça, faremos um aspecto de malha no enxerto criando linhas de pequenos cortes interrompidos — ele fez um pequeno movimento, como se estivesse cortando o ar e continuou. — Então cada linha será contrabalanceada por um comprimento da metade de um corte, como os ti?olos em uma parede. Além de possibilitar a drenagem, isso permitirá que o enxerto se estique e cubra uma área maior… e que fi que mais parecido com os contornos da mão.

Ela assentiu, sentindo-se en?oada, mas, ao mesmo tempo, tranquilizada pela ciência tão exata disso tudo.

— T ambém vou usar a terapia VAC, Vacuum Assisted Closure,13 que fecha a ferida a vácuo. Colocarei um pedaço de espuma sobre a ferida e, então, posicionarei um tubo perfurado sobre ela, prendendo-a com ataduras. Em seguida, um aparelho de vácuo produzirá pressão negativa, colando as bordas do enxerto à espuma e extraindo o sangue e os líquidos que estiverem em excesso. Esse processo a?udará a manter o local do enxerto limpo, minimizando o risco de infecções, e promoverá o desenvolvimento de uma nova pele ao mesmo tempo que remove líquidos e mantém o enxerto no lugar.

— Certo — Valerie respondeu absorvendo tudo.

— Parece um bom plano? — o médico perguntou.

— Sim — ela respondeu, pensando que não precisava de uma segunda opinião, que conf i ava plenamente no Dr.

Russo. — E depois?

— Manteremos sua mão imobilizada com uma tala por quatro ou cinco dias, então continuaremos o tratamento e trabalharemos a função do membro.

— Então você acha que ele voltará a usá-la novamente?

— Sua mão? Claro. Estou muito otimista, e você também deveria estar.

Ela olhou para o Dr. Russo, perguntando-se se ele conseguia perceber que o otimismo nunca havia sido seu forte.

— T udo bem — ela disse, tentando mudar esse fato.

— Está pronta? — ele perguntou.

— Você vai fazer a cirurgia agora? — perguntou assustada.

— Se você estiver pronta, sim — esclareceu.

— Sim — respondeu —, estou pronta.

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