Um Destino... O Amor!"Questões do Coração!"
[ TESSA ]
Sempre que fico sabendo de alguém que passou por uma tragédia, não penso no acidente ou no diagnóstico, nem mesmo no choque inicial ou no posterior sofrimento.
Em vez disso, encontro-me recriando os momentos corriqueiros que antecedem a tragédia. Momentos que compõem nossa vida, momentos que passaram despercebidos e que, provavelmente, seriam esquecidos se não fossem os eventos que se seguiriam. As lembranças anteriores à tragédia.
Posso visualizar com clareza a mulher de 34 anos no banho em uma noite de sábado, pegando seu esfoliante de damasco favorito e contemplando o que vestir para a festa.
Torce para que aquele jovem atraente que conheceu em um café esteja lá, quando, de repente, encontra um inconfundível caroço em seu seio esquerdo.
Também posso imaginar o jovem pai dedicado, levando sua fi lha para comprar sapatos novos Mary Jane1 para seu primeiro dia de aula, aumentando o som do rádio que toca Here Comes the Sun e, afirmando, pela milésima vez, que os Beatles são, “sem dúvida, a melhor banda de todos os tempos”, quando um adolescente com a visão turva, em razão das cervejas que tinha tomado na madrugada, ultrapassa o sinal vermelho.
Posso ainda pensar no recebedor impetuoso do time de futebol americano do colegial, cheio de expectativas e orgulho, participando do treino excruciante um dia antes da grande partida, piscando para sua namorada que se encontrava em seu lugar de sempre, apoiada na cerca de arame, um pouco antes de saltar em busca da bola que ninguém mais seria capaz de pegar, se retorce, caindo de cabeça em um ângulo perturbador e inesperado.
Reflito sobre a tênue e frágil linha que nos separa da desventura, quase como uma forma de agradecer por não ter passado por isso, como uma proteção que evitasse que o mesmo acontecesse comigo. Conosco: meus filhos, Ruby e Frank e Nick, meu marido. Nosso quarteto — que é a fonte das minhas maiores alegrias, assim como das minhas mais desgastantes preocupações.
Assim, quando o pager do meu marido toca durante o jantar, não me permito ficar ressentida ou mesmo decepcionada. Digo a mim mesma que é apenas uma refeição, uma noite, mesmo sendo nosso aniversário de casamento e a primeira noite que Nick e eu passamos juntos em quase um mês, ou talvez dois. Não tenho nenhum motivo para me chatear, não quando comparo a minha vida com a de alguma outra pessoa que está sofrendo neste mesmo instante. Este não será o momento que terei de relembrar para sempre, pois ainda estou entre os afortunados.
— Droga. Sinto muito, Tess — diz Nick, desligando seu pager e correndo sua mão pelo seu cabelo negro. — Volto em um instante.
Aceno com a cabeça, indicando que compreendo e assisto a meu marido avançar, sexy e seguro, em direção à entrada do restaurante onde fará a ligação necessária.
Posso dizer, apenas pelas suas costas eretas e pelos ombros expandidos, enquanto circula primorosamente por entre as mesas, que está se preparando para a má notícia, para É curar alguém, para salvar uma vida. É quando dá o melhor de si. Foi esse o principal motivo pelo qual me apaixonei por ele há sete anos.
Nick sai de vista enquanto respiro fundo e estudo o ambiente ao meu redor, observando os detalhes do local pela primeira vez. A pintura abstrata verde-acinzentada acima da lareira, a oscilação suave da luz de velas, as risadas espirituosas da mesa ao lado onde um homem grisalho é o centro das atenções diante do que parece ser sua esposa e seus quatro filhos já adultos.
Minutos mais tarde, Nick retorna à mesa com o rosto pesaroso e se desculpa pela segunda, mas com certeza não pela última, vez.
— Tudo bem — digo, procurando por nosso garçom.
— Ali está ele — diz Nick. — Ele está trazendo nosso jantar embalado para viagem.
Estendo meus braços sobre a mesa e pego sua mão, apertando-a levemente. Ele corresponde e, enquanto esperamos por nossos filés em embalagens de isopor, cogito perguntar o que aconteceu, como quase sempre.
Porém, faço duas preces rápidas: para as pessoas que não conheço e outra para os meus filhos, dormindo seguros sob as cobertas em suas camas.
Imagino Ruby, roncando levemente, toda emaranhada em seus lençóis, travessa mesmo quando dorme. Nossa preciosa e destemida primogênita, com 4 anos, mas com atitude de 14, um sorriso encantador, cachos negros que ela torna ainda mais encaracolados quando faz desenhos de si mesma — jovem demais para saber que, como uma garota, se espera que queira o cabelo que não tem — e aqueles olhos azul-acinzentados, uma conquista genética já que seus pais têm olhos castanhos. Ela dominou nosso lar e nosso coração praticamente desde o dia em que nasceu, de tal maneira que chega a me consumir e, ao mesmo tempo, enche-me de admiração. Ela é exatamente como seu pai — teimosa, impulsiva e linda de morrer, a típica filhinha do papai.
E, então, temos o Frank, nosso menino com fofura e doçura superiores às dos bebês em geral, tanto que desconhecidos param e comentam no mercado. Ele tem quase 2 anos, mas ainda gosta de afagos. Aconchega seu rosto redondo e macio em meu pescoço, extremamente apegado a sua mamãe. Ele não é meu preferido, juro a Nick quando estamos a sós sempre que ele sorri e me acusa dessa transgressão parental. Não tenho um favorito, a não ser que seja o próprio Nick, mas é um tipo diferente de amor, claro. O amor por meus filhos é incondicional e infinito. Se, por acaso, os três fossem picados por uma cascavel durante um acampamento e eu tivesse apenas duas doses de soro antiofídico em minha mochila, salvaria meus filhos, e não a Nick. Contudo, não há ninguém com quem eu goste mais de conversar e passar o tempo e que eu ame mais admirar que meu marido, um sentimento sem precedentes que tomou conta de mim assim que nos conhecemos.
Nosso jantar e a conta chegam momentos depois. Nick e eu nos levantamos e saímos do restaurante sob uma noite estrelada e azul. É começo de outubro, porém, mais parece inverno que outono — frio até mesmo para os padrões de Boston —, e encolho-me de frio sob meu longo casaco de caxemira, enquanto ele entrega o bilhete ao manobrista. Em seguida, entramos em nosso carro. Saímos da cidade e voltamos para Wellesley, conversando pouco, ouvindo um de seus vários CDs de jazz.
Trinta minutos depois, entramos com o carro em nossa garagem.
— Acha que chegará muito tarde?
— Difícil dizer — diz Nick, parando o carro e se inclinando para beijar-me o rosto. Viro meu rosto em sua direção e nossos lábios se encontram suavemente.
— Feliz aniversário de casamento — ele sussurra.
— Feliz aniversário de casamento — retribuo.
Ele se afasta e nossos olhos se encontram quando pergunta:
— Depois continuamos de onde paramos?
— Sempre — digo, forçando um sorriso.
Antes que eu feche a porta do carro, Nick aumenta o volume do som, pontuando de maneira dramática o final de uma noite e o início de outra. Enquanto abro a porta de casa, a música Lullaby of the Leaves, de Vince Guaraldi, ecoa em minha cabeça, onde permanece mesmo muito tempo depois de pagar à babá, verificar se as crianças estão bem, tirar meu vestido preto decotado nas costas e comer filé frio no balcão da cozinha.
Bem mais tarde, depois de deixar o lado de Nick na cama e voltar para o meu, encontro-me sozinha na escuridão, pensando sobre a ligação no restaurante. Fecho os olhos, e pergunto-me se realmente somos surpreendidos pelo azar, ou se, de alguma maneira, em algum lugar, na forma de empatia, preocupação, ou até mesmo de uma premonição, pressentimos que ele chegará?
Pego no sono sem saber a resposta. Sem saber, no entanto, se essa será a noite da qual me lembrarei para sempre.
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Comments
Renata Garnier
o áudio não é o msm né
2023-08-08
5
Tina💕
começando a ler 31/07/23😊❤
2023-07-31
2