10

[ VALERIE ]

Logo que escureceu, no sábado, Jason apareceu no hospital com pipoca de micro-ondas, duas caixas de jujubas e vários fi lmes para crianças.

— Adoro ?u?ubas? — disse Valerie, provocando seu irmão com o que ele estava plane?ando fazia dias.

Jason balançou a cabeça em forma de negação e disse:

— Ho?e é a noite dos meninos.

Valerie agarrou os braços de sua cadeira de balanço, lembrando-se de como se sentia frenética quando brincava de dança das cadeiras.

— Mas você sempre diz que sou um dos meninos — ela tentou.

— Mas ho?e não. Charlie e eu faremos uma festa do pi?ama. Meninas não podem participar. Não é, Charlie?

— É — Charlie conf i rmou, sorrindo para seu tio e cumprimentando-o, ?untando os nós dos dedos de sua mão esquerda com os nós de seu tio.

Valerie, que estava ansiosa poucos momentos antes, pensando no que Charlie e ela fariam a noite toda, sentia agora um pânico crescente só de pensar que se separariam.

Ela ?á tinha saído do hospital por algumas horas algumas vezes, para pegar comida ou resolver algum assunto rápido — uma tarde até voltou para casa para lavar roupa e dar uma olhada na correspondência. Mas ela ainda não havia deixado Charlie sozinho de um dia para o outro. Ele podia estar pronto, mas ela não.

— Vá em frente. Coma seus doces e assista a seus fi lmes — ela disse da maneira mais despreocupada possível para não transparecer seu pavor e não reforçar ainda mais a posição de Jason. Olhou para o relógio e murmurou que voltaria em algumas horas.

— Não — disse Jason. — Você volta amanhã, agora vá.

Valerie olhou pasma para seu irmão, o que o fez literalmente empurrá-la da cadeira.

— Some, vaza, vai embora, mulher.

— T udo bem, tudo bem. — Valerie fi nalmente disse enquanto pegava lentamente sua bolsa e seu BlackBerry recarregando no canto do quarto. Ela sabia que seus sentimentos não eram racionais, que deveria estar aliviada por poder ter uma boa noite de sono em sua própria cama e um pouco de privacidade. E, principalmente, porque sabia que Charlie estava em boas mãos com Jason. Seu fi lho está seguro e estável e, no geral, está perfeitamente confortável, pelo menos até sua cirurgia na segunda-feira. Mesmo assim, lá estava um sentimento de relutância profunda em suas entranhas. Respirou fundo e soltou o ar lentamente, dese?ando que ainda tivesse um calmante sobrando, algo para aliviar seus nervos.

— Vamos lá — sussurrou Jason para ela enquanto a a?udava com seu casaco. — Ligue para um amigo, vá tomar um drinque. Divirta-se um pouco.

Ela fez que sim, fi ngindo considerar o conselho de seu irmão, plenamente ciente de que não faria nada daquilo.

Diversão no sábado à noite, pelo menos à moda de Jason, ?á era rara antes do acidente e, com certeza, estava fora de cogitação nesse momento.

Então foi até Charlie e o abraçou, dando-lhe um leve bei?o no rosto, logo ao lado de sua cicatriz.

— Eu te amo, querido.

— T ambém te amo, mamãe — Charlie retribuiu, voltando rapidamente sua atenção para a seleção de DVDs que Jason havia espalhado sobre a cama.

— T udo bem, então. Estou de saída — disse Valerie, parando por um segundo enquanto olhava pelo quarto, f i ngindo procurar por algo. Quando essa desculpa ?á havia se esgotado, deu outro bei?o em Charlie, saiu pela porta e foi até a garagem fria e escura do hospital. Por alguns segundos, enquanto procurava por seu Volks?agen azul-petróleo empoeirado com um adesivo de para-choque de duas eleições atrás, convenceu-se de que seu carro fora roubado, de alguma maneira escolhido no lugar dos três BMWs estacionados no mesmo andar, e sentiu-se em parte aliviada por não ter outra escolha a não ser voltar para o hospital. Mas então se lembrou que o havia espremido em uma vaga estreita destinada a carros compactos depois de ir comprar burritos certa noite e encontrou-o exatamente onde o havia deixado.

Ela investigou o banco de trás do carro antes de destravar a porta, algo que ?á fazia havia anos, desde que um adolescente de sua cidade natal fora sequestrado no estacionamento de um shopping poucos dias antes do Natal. O momento assustador foi capturado por uma câmera de segurança.

Nesta noite, porém, o banco de trás do carro de Valerie não estava assustador, mas sim comum e sem graça. É o lado bom da história, ela pensou, quando um medo maior se concretiza, os medos menores perdem a importância. Dessa maneira, ela não morre mais de medo de estupradores de estacionamentos. Ela sentiu um arrepio enquanto entrava em seu carro e dava a partida. O rádio, deixado no volume mais alto na última vez em que usou o carro, gritava a música Nightswimming da banda R.E.M., uma canção que sempre a deixou vagamente deprimida, mesmo na melhor das circunstâncias. Ela soprou suas mãos para aquecê-las e então começou a mudar de estação, esperando achar algo mais animado. Parou quando ouviu “Sara Smile”, pensando que se Hall&Oates não pudessem a?udá-la, ninguém mais poderia. Então dirigiu lentamente até sua casa, cantarolando um refrão aqui, outro ali e esforçando-se ao máximo para esquecer a última vez em que deixou seu fi lho participar de uma festa do pi?ama só para meninos.

Só que ela não foi para casa, não imediatamente.

Realmente pretendia ir para casa, e até plane?ava retornar algumas ligações, para seus colegas de trabalho e algumas garotas de sua cidade natal, até mesmo para Laurel, que f i cou sabendo por aí, ou se?a, por Jason, sobre o acidente de Charlie. Mas, no último segundo, pegou outro caminho e foi direto até o endereço que procurou no computador, pesquisou em um mapa da internet e memorizou na noite anterior, logo depois que Charlie dormiu. Queria acreditar que o desvio que fez era uma travessura, um delírio, mas não se podia chamar nada de travessura ou delírio em razão do estado atual das coisas. Não podia ser tédio também, ?á que nunca está entediada, ela gosta demais da solidão para isso. Convenceu-se de que era apenas uma simples questão de curiosidade, como em meados dos anos de 1990, quando ela e Jason foram para Los Angeles no casamento de uma prima e passaram por South Bundy, o local onde ocorreu o duplo homicídio no caso de O.J. Simpson. Só que nesta noite sua curiosidade era do tipo fútil, e não mórbida.

Enquanto ia em direção ao coração de Wellesley, uma chuva leve começou a cair. Ligou o limpador de para-brisa no modo mais lento, a ?anela embaçada dava a sensação de proteção. Ela estava disfarçada, ?untando provas, sobre o quê, não sabia ao certo. Virou à esquerda e então duas vezes à direita em direção à rua, chamada elegantemente de “boulevard”. Era ampla, arborizada, com calçadas arrumadas e casas mais antigas, clássicas. Eram mais simples do que esperava, mas os terrenos eram fundos e generosos. Dirigiu mais lentamente, observando os números ímpares do lado direito da rua diminuírem até encontrar a casa que estava procurando, uma casa no estilo T udor, digna de um livro de histórias para crianças. Seu coração se acelerou enquanto analisava os detalhes. As duas chaminés idênticas ladeando o telhado acinzentado. O vidoeiro com galhos baixos, perfeitos para subir, não exatamente no centro do ?ardim da frente. Um triciclo rosa e uma bola de borracha vermelha como as dos velhos tempos, ambos abandonados na entrada para carros. A luz amarela quente vinda de um dos quartos do andar superior. Perguntou-se se era o quarto dele — deles — ou de um dos fi lhos e os imaginou todos dormindo confortavelmente lá dentro.

Esperava que fossem felizes enquanto virava o carro e dirigia para casa.

Pouco tempo depois estava no banho, seu passatempo favorito de sábado à noite. Geralmente lia uma revista ou um livro na banheira, mas nesta noite fechou os olhos, esvaziando sua cabeça o máximo possível. Ficou submersa, a água com sabão batia na altura de seu queixo, até sentir que estava quase cochilando. Então lhe ocorreu que pudesse estar cansada o suf i ciente para cair no sono e acabar se afogando. Charlie fi caria órfão. Seria forçado a se perguntar para o resto de sua vida se sua morte havia sido um suicídio e se teria sido sua culpa. Afastou o pensamento mórbido de sua cabeça e saiu da banheira, enrolando-se em sua maior e mais macia toalha de banho, quase um lençol de banho, para dizer a verdade. Ela se lembrou do dia em que encomendou o lindo ?ogo de toalhas de algodão egípcio, o mais luxuoso que p?de encontrar, e inclusive pagou cinco dólares a mais por toalha para que viessem com um monograma azul ultramarino com suas iniciais. Foi no dia em que recebeu sua primeira bonif i cação na empresa de advocacia, um prêmio por cobrar 2 mil horas, uma pequena fortuna que plane?ara gastar com artigos de conforto para o dia a dia. Depois das toalhas, encomendou travesseiros de pena de ganso australianos, lençóis de cetim, mantas de crochê de caxemira, panelas pesadas de ferro fundido e louças fi nas para 12 pessoas, produtos domésticos de qualidade que a maioria das mulheres ganha quando se casa, antes de comprarem uma casa ou terem um bebê.

T alvez ela estivesse fazendo ao contrário, mas estava fazendo tudo sozinha. “Quem precisa de um homem?”, pensava a cada item que comprava.

Essa frase se tornou seu mantra. Enquanto trabalhava muitas horas em sua empresa, economizando mais dinheiro até que ela e Charlie pudessem fi nalmente se mudar do porão deprimente onde moravam, com paredes totalmente brancas as quais o senhorio não a deixava pintar e o cheiro contínuo de caril e maconha vindo dos vizinhos do outro lado do corredor, para a casa aconchegante em estilo Cape Cod onde ainda moram. Enquanto removia a neve da entrada de casa com uma pá no inverno, regava as sementes de grama na primavera, lavava o alpendre com uma máquina de alta pressão no verão e ?untava as folhas das árvores no outono. Enquanto fazia todas as coisas para proporcionar um lar e uma vida a Charlie. Ela era independente, segura e reservada. Era todas as letras sobre o poder da mulher que ouvia no rádio: I am a woman, hear me roar… I Will survive… R-E-S-P-E-C-T.

Mas, nesta noite, depois de comer um sanduíche de pasta de amendoim com geleia sobre a pia da cozinha e deitar-se confortavelmente em sua cama, vestindo sua camisola preferida de fl anela branca com detalhes de ilhós, sentiu uma pontada aguda de solidão, uma sensação inegável de que algo estava faltando. Primeiro, acreditou que o vazio era por causa de Charlie, que, pela primeira vez em sua vida, não estava dormindo no quarto ao lado. Mas, então, pensou na luz do andar de cima da casa no estilo T udor e percebeu que era algo completamente diferente.

Ficou acordada na escuridão e tentou imaginar como seria ter alguém ao seu lado na cama. T entou se lembrar da sensação de estar entrelaçada com alguém, transpirando, sem f?lego e satisfeita.

Foi quando fechou os olhos e viu o rosto dele, seu coração se acelerou novamente, assim como na lanchonete do hospital e em frente a sua casa.

Ela sabia que era errado ter esses pensamentos sobre um homem casado, mas deixou-se levar mesmo assim, virando de lado e abraçando seu travesseiro. “Quem precisa de um homem?”, tentou dizer a si mesma. Mas, à medida que caía no sono, pensou: “Eu preciso”. E mais, “Charlie também precisa”.

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Comments

Divina Santos

Divina Santos

tomara q apareça alguem pr ela

2024-04-04

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