Superando Barreiras
...Leo....
O BMW preto estacionava sempre no mesmo lugar, exatamente três metros após o portão azul-enferrujado do colégio. Eu contava os passos até ele — sete desde a saída, sete respirações para engolir minha liberdade antes de entrar naquela jaula de couro e aço.
Dessa vez, porém, parei no quinto. Meu pai não olhava para mim. Seu perfil cortava o espaço como uma faca cravada no banco do motorista, os ombros tão rígidos que pareciam lascar. Até a veia temporal pulsava, marcando o ritmo do ódio que eu conhecia tão bem. Segui seu olhar até o portão, e então vi.
Stevam e Lucas, saindo de mãos dadas, despreocupados como só os verdadeiramente livres podem ser.
No último ano do colegial, meu pai ainda habitava meu corpo como um parasita, sugando meu ar, meu espaço, meu direito de ser. Enquanto caminhava em direção ao carro, o mundo insitia em sua rotina quase criminosa: um grupo de meninas ria de algum meme, dois garotos dividiam um salgadinho, a vida seguia como se a minha não estivesse sendo compacta a cada passo.
Na quarta série, aprendi o que acontecia com as “coisas diferentes”, como ele costumava chamar.
— O professor de artes é um viado no armário — ele cuspiu uma noite, esmagando o cigarro no pires como se extinguisse o próprio homem.
Eu chorava até vomitar — não pelo professor, mas pelo algoz que nego até a morte ter reconhecido no espelho do banheiro na manhã seguinte.
Agora, quando sua voz cortou ar.
— Por que sua escola aceita essas criaturas?— senti o gosto de bile subindo novamente. Seu ódio era uma animal domésticado: sabia exatamente onde morder.
Por que ele é assim? A pergunta girava minha cabeça feito bala perdida. Já conhecera suas respostas de cor:
— Eles não são normais.
Como se "normal" fosse sinônimo de humano e o resto descartável. Como se meus amigos o Stevam e o Lucas que colecionavam gibis e tinham medo da prova de matemática fossem criaturas de outro mundo só por serem um casal. Queria esmurrar aquela certeza podre até sobrar apenas carne crua e vergonha.
Mas eu? Era apenas um rato coverde que engolia o próprio chão quando ele pisava mais forte.
Assim que entrei no carro, ele ganhou vida com um rosnado do motor, meu pai sequer dignando-me um olhar. O couro do assento rangeu sob meu peso, enquanto atirava a mochila ao lado, como quem descarta um lastro inútil.
— Para onde estamos indo, pai? — minha voz soou mais áspera do que eu pretendia.
Os dedos dele se apertaram no volante, as unhas deixando marcas quase imperceptíveis no couro.
— Vamos nos encontrar com o Otávio Albuquerque.
Por um instante, o ar faltou. O nome ecoou no pequeno espaço como uma profanação.
— O bilionário? Aquele da revista..
— Da Riviera — ele cortou, como se eu tivesse cometido uma insolência por comentar o óbvio.
Arqueei as sobrancelhas. A Montenegro & Filhos mal chegava aos trinta funcionários; era uma gota no oceano para um homem como Albuquerque.
— Uau, você conseguiu uma reunião com ele?
Ele fez aquele movimento de cabeça que eu conhecia bem — meio balanço, meio tremor — como se estivesse sacudindo um inseto invisível da nuca.
— Ele não sabe que vamos aparecer — disse, enquanto o carro engolia a avenida. — Um contato que tenho no banco vazou esse almoço.
Era insanidade. A pura e crua espécie de loucura que só o desespero consegue vestir como lógica. Invadir o horário de almoço de Otávio Albuquerque como se fôssemos convidados? Ele era um homem que movimentava economias com um aceno de mão — e achar que receberia dois desconhecidos vindos do nada merecia, com folga, o prêmio de pior decisão possível.
O sol bateu em seu rosto através do para-brisa, revelando o suor que escorria pela têmpora como uma confissão involuntária. Aquele brilho úmido dizia tudo o que suas palavras jamais admitiriam: não havia escolha.
Estávamos prestes a invadir o território de um predador — sem armas, sem estratégias, apenas com um punhado de desespero e as mãos vazias. As minhas, tremendo. As dele, cravadas como garras no volante. A empresa afundava, a dívida crescia, e, pela primeira vez na vida, ele não tinha inimigos para culpar — só o próprio reflexo no retrovisor.
"Isso era insanidade", pensei, virando o rosto para a janela. Serra Azul desfilava em silêncio através dela: casinhas baixas, praça vazia, o mesmo poste quebrado desde minha infância. Mantive a boca fechada por três razões:
Ele nunca me ouviria.
O empresário aqui era ele.
Talvez... só talvez...
As revistas diziam que Otávio Albuquerque investia em negócios afundados em dívidas, mas com “alma de sobrevivente”. Nos tempos do meu avô, homens como ele davam chances. Já nos tempos atuais, só davam golpes.
O carro acelerou numa curva. Fechei os olhos, imaginando o bilionário vendo o que meu pai não conseguia: que aquela empresa moribunda ainda tinha os mesmos ossos bons que a sustentaram por três gerações.
Chegamos ao Metrô Palace. Ele se erguia como uma miragem no asfalto — colunas de mármore sugavam a luz do meio-dia, jardins geometricamente podados, carros que valiam mais que nossa casa.
Nosso BMW de 2012 estacionou entre duas Aston Martin, como um lobo velho em meio a panteras.
Mal descemos do carro, o segurança surgiu como se tivesse se materializado do ar. Seus dois metros de altura me forçaram a arquear o pescoço, revelando um nó de gravata tão perfeito que doía os olhos. Seu perfume — madeira nobre — cheirava a contas bancárias suíças.
— O evento é privado, senhores. — Sua voz tinha o som de um cofre sendo aberto.
Meu pai cerrou os punhos até os nós dos dedos empalidecerem. Veias saltavam em seu pescoço como cordas de um violino sob tensão extrema.
— Escuta bem... preciso ver o Albuquerque. Se eu perder essa oportunidade... — Ele fez uma pausa teatral que chamava de "efeito psicológico", como um juiz prestes a soltar uma sentença. — Você se arrependerá amargamente deste erro.
O homem sequer pestanejou. Inclinou a cabeça num movimento calculado, quase elegante, e sua voz deslizou como uma lâmina entre as costelas.
— Senhor, meu único arrependimento seria permitir sua entrada.
Com um gesto mínimo de dois dedos erguidos, como quem acena para um criado as portas de vidro fosco se abriram em câmera lenta, como cortinas de teatro, para a entrada dos autores principais.
Primeiro, a deusa trans entrou. Uma visão em vermelho-vampiro que teria feito Drácula tropeçar na própria capa. O vestido mais segunda pele do que tecido escorria por suas curvas como sangue fresco escorrendo no vidro. Seus saltos agulha cravavam o mármore com precisão cirúrgica. A barba, aparada com a exatidão de um ourives, emoldurava lábios pintados de um escarlate tão vivo que parecia zombar abertamente de qualquer conceito binário.
Seu acompanhante era um estudo em contradições. Camisa branca imaculada, jeans que custavam mais que nosso carro, e uma postura que transformava informalidade em declaração para os oligarcas que usavam ternos brancos em ilhas privadas.
Meu reflexo no vidro fosco me encarou: um fantasma pálido de boca entreaberta. Eu, que antes mesmo de aprender amarrar os sapatos aprendi abaixava os olhos, agora os mantinha fixos como um menino diante de sua primeira maravilha.
Foi um segundo de pura admiração. Um instante de traição involuntária. Uma náusea subiu pela minha garganta, pois meu pai já tinha capturado minha expressão.
— Pai! — o sussurro saiu mais como um apelo agonizante do que advertência. Estávamos ali para mendigar, e escândalos não constavam no menu de homens como Otávio Albuquerque. — Vamos embora! Não compensa.
— Você não vê, Leonardo? — Sua voz cortou o ar como arame farpado, crescendo em volume calculado. — Ele deixa essas aberrações desfilarem como reis, enquanto homens de bem são barrados na porta.
O silêncio caiu em ondas concêntricas. Conversas morreram no meio das frases. Garçons congelaram com as bandejas suspensas. Até os pássaros pareceram interromper seu canto. Senti a vergonha me consumir num incêndio lento, das clavículas até as têmporas — cada centímetro de pele queimando sob os olhares curiosos.
O homem de roupa casual virou-se com a elegância de um tigre entediado.
— Repita — duas sílabas que pesavam mais do que todo o discurso do meu pai.
— Senhor, me desculpe, meu pai não quis... — minhas mãos se fecharam sobre o braço paterno num gesto inútil.
Ele sacudiu meu toque como quem espanta mosca da fritura.
— Eu quis dizer cada palavra. Merecem todos a fogueira! — cuspiu as palavras, cada sílaba afiada com um ódio temperado por anos.
O soco chegou como vírgula final num argumento falho. Vi meu pai aquele colosso doméstico dobrar-se como um boneco de ventríloquo abandonado. Seu corpo atingiu a lataria do BMW com um baque metálico, o lábio inferior explodindo em vermelho vivo, que ironicamente combinava com o vestido da divindade que ele insultara.
Ao ajudá-lo a levantar, minhas mãos tremiam. Não de medo mas de uma revelação íntima. Naquele asfalto impiedoso, eu finalmente via ele não como o pai da minha infância, mas como um cachorro velho, espumando, mordendo as rodas do mundo que insistia em girar sem seu consentimento.
— Você cavou a própria cova. — sussurrei ao vento, minhas mãos trêmulas sustentando seu corpo cambaleante.
O homem de roupa casual nos observava com a frieza de um cirurgião avaliando um tumor. Seu braço protegia a deusa trans como se aquela fosse a única posição possível no mundo.
— Ofenda-me à vontade. Mas ofender minha mãe... — seus dedos se fecharam levemente no ombro dela — isso é inaceitável.
Meu pai ergueu o queixo, o orgulho mantendo-o em pé melhor que qualquer equilíbrio.
— Já chega, pai! — gritei, sabendo que minhas palavras eram tão inúteis quanto um guarda-chuva de papel.
— Quem diabos você pensa que é... pra me bater? — meu pai cuspiu sangue e arrogância no asfalto. — Você por acaso sabe quem eu sou?
— Não me importo com seu nome ou sua pretensão — o homem ajustou o punho da camisa com uma calma letal — mas, se voltar a insultá-la, transformarei essa sua cara num borrão.
O sorriso do meu pai escancarou-se, mostrando dentes manchados de sangue.
— Tô morrendo de medo, garotinho... Tá se achando tanto... Quando Otávio Albuquerque aparecer, vamos ver se mantém essa banca.
O nome ecoou. Vi o corpo do homem reagir antes mesmo do rosto: uma leve tensão nos ombros, o pescoço esticando meio centímetro. Não era medo — era reconhecimento íntimo.
Foi então que uma voz grave cortou o silêncio.
— Estou aqui. E vi tudo.
Me virei.
Otávio Albuquerque emergia das sombras do restaurante como um fantasma convocado por uma dívida antiga. Meu Deus... ele estava ali o tempo todo?
As revistas que eu colecionava não mentiram, mas falharam em capturar o magnetismo daquele homem.
Seus olhos âmbar-escuros escaneavam a cena com precisão cirúrgica. O lábio sangrando do meu pai. Minhas mãos trêmulas em seu ombro. Os dois personagens destratados, imóveis como estátuas de museu.
A polo branca caía sobre seu corpo com a perfeição arquitetônica de um edifício de I. M. Pei. Cada dobra estava no lugar exato. Os jeans cáqui, levemente amarrotados nos joelhos, eram sua única concessão à casualidade.
Mas o que me fez engolir em seco foram os tênis. Simples, brancos, silenciosos... E custavam mais do que seis meses da faculdade que eu ainda nem tinha começado.
Meu pai endireitou a postura com esforço visível.
— Excelente timing, senhor Albuquerque. Sou Alan Montenegro. Talvez o senhor possa explicar por que seus convidados acham que podem agredir homens de bem?
Engoli seco. Mesmo derrotado, ele insistia em cavar mais fundo. Minhas palavras saíram num sussurro ácido:
— Baita exemplo que você tá dando, pai...
Ele girou na minha direção, os olhos injetados de um ódio que agora se dividia entre quem o ofendera... e eu.
— Leonardo...
Meu nome saiu como ameaça embrulhada em ácido. Conhecia aquele tom há anos era o pré-requisito para todas as surras que levei depois dos doze. Mas desta vez, algo no meu olhar deve ter traído a revolta silenciosa. Porque ele hesitou.
Por uma fração de segundo, vi a dúvida cruzar seu rosto como uma sombra. Foi o suficiente. Seu braço se ergueu num gesto brusco. Virei o rosto de lado, já esperando o pior. Vi de relance o homem de roupa casual se tensionar parecendo pronto para intervir. Mas o que veio foi apenas:
— Depois conversamos.
A frase caiu como um tijolo. Era a primeira vez em dez anos que meu pai não terminava uma sentença com "cala a boca". E aquele pequeno silêncio, diante da presença do milionário, gritava: ele precisava fingir ser civilizado e estava falhando miseravelmente.
Otávio permaneceu imóvel por um longo tempo, o rosto um enigma sob a luz do sol.
Quando finalmente se moveu, foi com a precisão de um predador.
Cada passo em direção ao homem de roupa casual carregava a força de uma revolução.
Agarrei o braço do meu pai com força suficiente pra deixar marcas.
— Vamos embora. Agora.
Seus músculos enrijeceram sob meu toque, pulsando com a velha teimosia, mesmo ferido.
— Você não tá vendo, Leonardo? — seu sussurro era um misto de desespero e repulsa — Essa é a minha única chance de...
Mas o resto morreu nos lábios.
Num movimento fluido, que parecia desafiar as leis da física, Otávio envolveu a cintura do homem de roupa casual e o puxou para si.
O beijo que se seguiu não foi performático. Foi uma declaração de guerra em linguagem corporal. Os lábios se encontraram com intimidade crua — e a cada segundo, demoliam séculos de preconceito.
Meu pai ficou em choque. Seu pomo de Adão subia e descia em espasmos. As mãos se contraíram nas costuras da calça.
O mundo parecia em câmera lenta.
O beijo ainda ardia no ar.
A humilhação escorria dos poros dele.
Tudo girava na minha mente.
Então, a voz de Otávio cortou o silêncio, doce como mel envenenado:
— Desculpa o atraso, amor. — Seus dedos acariciaram o rosto do homem de roupa casual. — A reunião acabou se estendendo.
O ar ficou eletrizado. Meu pai, finalmente percebendo a armadilha em que caíra, virou-se com a lentidão de um condenado. O silêncio que se seguiu foi absoluto. Eu sabia — estávamos na boca da serpente.
— Vamos embora, Leo.
Mas Otávio já estava em movimento.
Seus olhos aqueles que as revistas chamavam de “poços de petróleo” agora brilhavam com algo mais sorrateiro que raiva.
— Ah, mas tão cedo? — o sorriso dele era cínico e cortante — Há minutos você implorava por minha atenção.
Meu pai, desconfortável, tentou dar um passo para trás.
— Esqueça isso, Otávio — sua voz carregava uma inquietação incomum.
Num estalo de dedos. Das sombras do Metrô Palace, cinco figuras emergiram como lobos bem vestidos.
Não correram. Não precisavam.
Cercaram-nos com a precisão de quem faz isso há anos.
"Merda, aqui vem o tsunami."
Claro que ele tinha um exército particular. Minhas unhas cravaram na palma da mão. O BMW parecia estar anos-luz de distância.
— Senhor Albuquerque... — minha voz soou mais firme do que esperava, mesmo com a imagem do meu pai em uma UTI e, se piorasse, em um caixão. — Peço desculpas pelo ocorrido. Meu pai...
— Não precisa falar por mim. — rosnou, teimoso.
Mas os seguranças já apertavam o cerco. Vi o exato momento em que ele percebeu que estava encurralado como um rato de laboratório.
— Desculpe... pelas minhas palavras, senhor Albuquerque.
Otávio cruzou os braços, o relógio de pulso brilhando sob a luz.
— Eu não fui o único insultado.
O silêncio pesou toneladas.
Meu pai engoliu seco. As veias do pescoço saltavam. Quando finalmente falou, as palavras saíram como um cuspe:
— Peço... desculpas. Aos dois.
A mulher de vermelho nos estudou com os olhos de quem já vira essa cena centenas de vezes.
Então, com uma voz delicada e elegante, disse:
— Tudo bem. Aceito suas desculpas.
Mas o perdão não era para meu pai. Ela olhava direto para mim. Foi aí que reparei nos olhos dela belos, quase dourados. No mesmo instante, os seguranças abriram caminho.
Estávamos livres. Mas quando demos as costas, a voz de Otávio nos alcançou. Um arrepio subiu pela minha nuca.
— Alan Montenegro, certo? — uma pausa, calculada como quem resolve um problema de matemática — Vou lembrar desse nome. E desse dia. Cada mísero segundo.
Fudeu.
Meu pai endureceu o corpo na hora.
Eu o guiei até o carro, notando como seu cotovelo tremia sob minha mão.
Ele tinha encontrado um oponente de verdade.
— Filho da pu... — ele começou, mas a frase morreu quando sua mão tocou o volante.
E como um eco fantasmagórico, Otávio ainda imóvel sussurrou a ameaça final:
— Isso ainda não terminou.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 51
Comments
Fátima Alfiery
odeio qualquer tipo de preconceito
2025-03-17
2