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Superando Barreiras

Fogo no olhar

Leo.

A Combinação de uma manhã como qualquer outra na pequena cidade de Vale Azul, junto com meu pai, esperando em seu carro. O modelo era um BMW preto, e seus ombros tensos, com o olho esquerdo se apertando - um sinal claro que algo não lhe agradava.

Segui seu olhar e entendi o motivo: dois colegas, Stevam e Lucas, saiam de mãos dadas pelo portão. O gesto era natural e livre. Suspirei, desejando ter a mesma liberdade que eles. Mas meu pai, ao contrário, olhava com armagura, quase nojo.

Aos 17 anos, a exaustão de lidar com ele era esmagadora. Enquanto caminhava em direção ao carro, o movimento ao redor era tranquilo: pessoas cruzando a rua, outras conversavam em frente ao colégio - mas para mim, tudo estava envolto em um peso opressivo.

Meu pai nunca escondeu sua intolerância. Desde os nove anos, ouvia suas palavras carregadas de ódio. Para ele qualquer um que fosse diferente era um erro. Tentar mudar sua mente era como bater em parede de concreto. Ele sempre achava que estava certo.

Antes mesmo de abrir a porta do carro, sua voz ecoou, carregada de desprezo:

— Por que sua escola aceita essas criaturas?

Meu estômago se revirou. Eu já sabia o que viria a seguir.

Esperei o sinal verde para me aproximar. Meu pensamento era um só: Por que ele é assim? Já tinha perguntado inúmeras vezes, mas sempre recebia as mesmas respostas:

— Não confie nessas coisas, eles não são normais.

Essas palavras estão gravadas na minha mente, ressoando como um mantra. Quando você escuta coisas negativas sobre um certo tipo de pessoa, é difícil esquecer. Mas, à medida que fui conhecendo amigos gays e lésbicas, percebi que eram apenas pessoas normais, com sonhos e medos. Queria gritar :"Pai, acorde, eles não são monstros cruéis!"

Mas às vezes me pergunto se sou um homem ou um rato. Pode parecer estúpido, mas tenho medo dele.

Entrei no carro, e ele nem sequer olhou para mim, apenas deu partida.

— Para onde estamos indo, pai? — indaguei, jogando minha mochila no assento ao lado.

— Vamos nos encontrar com Otávio Albuquerque.

Meus olhos se arregalaram.

— Você tá falando do homem mais rico do mundo? Aquele da revista Reviera?

— Esse mesmo — afirmou, girando o volante com precisão.

— Uau, você conseguiu uma reunião com ele? — arqueei as sobrancelhas. Não fazia sentido. A empresa do meu pai nem era tão grande para despertar o interesse de um bilionário.

Ele apenas balançou a cabeça antes de responder:

— Ele nem tem noção de que estamos indo ao seu encontro. Recebi uma dica quente de um colega.

Era insanidade. Invadir o horário de almoço de alguém assim, como se fosse algo trivial? Mas permaneci em silêncio, observando pela janela do carro. Afinal, o empresário aqui era ele.

Chegamos ao Metrô Palace, um restaurantee cinco estrelas. O lugar era um espetáculo a parte: árvores imponentes, asfalto impecável e carros de luxo estacionados. A fachada refletia o céu, com colunas de mármore e jardins podados com precisão.

Assim que estacionamos, um homem alto, de pele morena e postura impecável, aproximou-se. Ele vestia um terno cinza-escuro, com traços marcantes e olhar intenso.

— Desculpas, senhores, mas o restaurante está reservado para um evento particular — informou, com uma voz calma, mas firme.

Meu pai suspirou, cerrando os punhos, as veias saltavam em seus braços. Ele estava prestes a explodir.

— Escuta bem... Preciso ver alguém que está aí dentro. Se eu perder essa chance... — Ele fez uma pausa, como juiz se preparando para dar uma sentença. — Será um erro do qual se arrependerá.

O homem suspirou, mas não cedeu. Apenas fez um gesto discreto e outro dois convidados passaram. Um deles era uma mulher trans, impecável, com uma barba bem aparada, vestido vermelho-sangue e saltos agulha. O outro, um homem de roupa casual, exalava confiança.

Meu estômago se revirou, sabendo o que viria em alguns instantes.

— Pai — tentei deter o inevitável. — Vamos embora. Não vale a pena.

— Nem vem, Leonardo! Ele deixa essas aberrações entrarem, enquanto eu, um empresário normal, fico de fora?!

Sua voz ergue-se, chamando a atenção. Algumas pessoas pararam na calçada, enquanto outras saíram do restaurante, provavelmente atraídas pela curiosidade.

Meu rosto queimou de vergonha, só queria sumir, mas sabia que não podia fazer nada. Meu pai estava irredutível, e eu, preso na posição de filho, me sentia impotente diante da situação.

— Do que você me chamou? — perguntou o cara de roupa casual, cruzando os braços, com uma expressão de total desgosto.

— Senhor, me desculpe, meu pai não quis dizer isso. — tentei intervir, puxando meu pai para longe.

Mas ele se soltou, arrogante como sempre.

— Eu quis dizer cada palavra. Esse tipo de gente deveria queimar viva.

O soco do homem de roupa casual foi rápido e certeiro fazendo meu pai cair alguns metros para trás. Meu corpo reagiu antes da, minha mente. Corri para socorrê-lo, mesmo sabendo que ele havia provocado aquilo.

— Você procurou por isso — murmurei, mais para mim mesmo do que para qualquer outra pessoa.

O homem de roupa casual o olhava sério.

— Pode me ofender o quanto quiser, mas ofender minha mãe... é inaceitável.

Meu pai se levantou cambaleante, mas ainda arrogante.

— Já chega, pai — tentei intervir, frustrado.

Ele ignorou completamente minha súplica.

— Seu desgraçado, quem você pensa que é para me bater?

Senti o sangue ferver, mas permaneci calado. O olhar do cara se estreitou, e a mulher ao lado dele ficou tensa.

— Pai, para!

Mas ele continuou:

— Você, por acaso, sabe quem eu sou?

— Não me importo com quem você é — o homem rebateu com calma, mas a tensão em sua voz era clara. — Mas, se ofender minha mãe de novo, o farei pagar caro.

Meu pai sorriu com arrogância, como se estivesse se impondo:

— Tô morrendo de medo de você, garotinho. Se acha tanto... espera só o Otávio Albuquerque aparecer para te colocar no seu lugar!

O nome de Otávio fez o homem demonstrar uma reação quase imperceptível de choque, mas não parecia realmente intimidado.

Foi então que uma voz grave cortou o ar.

— Já estou aqui e vi tudo.

Quando me virei, vi Otávio Albuquerque. Ele era ainda mais impressionante do que nas revistas. Alto, olhos castanho-escuros profundos, cabelo negro impecável. Usava uma polo justa que moldava bem o corpo, calça jeans cáqui. O tênis que usava, certamente de uma marca de luxo, parecia custar mais do que o valor de uma mensalidade de faculdade de alguém comum.

Meu pai endireitou-se ainda tentando se impor.

— Que bom, que precisou tudo, como esse cara e a mãe dele me trataram. Sou Alan Montenegro e gostaria de falar com o senhor.

Como ele podia culpabilizar outras pessoas por algo tão evidente? Aquela cena era um reflexo direto da sua falta de autocrítica e vergonha.

Em um sussurro baixo, mal consegui segurar minha frustração:

— Que grande exemplo você tá dando.

Ele respondeu com um resmungo, tentando se manter firme diante do que estava acontecendo.

— Fica quieto, Leo.

Otávio permaneceu impassível. Caminhou lentamente até o homem de roupa casual.

Tentando manter algum controle da situação, puxei o braço de meu pai.

— Acho melhor irmos embora, pai.

Mas ele se manteve firme, teimoso como sempre.

— Otávio está aí, Leo; é a minha chance! O que tá fazendo me puxando? Não posso sair antes de falar com ele.

Mas antes que pudesse explicar, a resposta veio de Otávio. Que puxou o homem de roupa casual e, sem hesitação, beijo-o nos lábios.

Foi um beijo simples, mas repleto de significado. Meu pai ficou atônito. A arrogância desapareceu em segundos.

Ainda estava tentando processar tudo o que tinha acontecido. O beijo, a humilhação que meu pai tinha feito - tudo isso se misturava em minha mente, deixando-me atordoado. Mas foi a voz suave, porém mortal, de Otávio que me trouxe de volta à realidade.

— Desculpa a demora, amor, me atrasei um pouco — ele disse, olhando fixamente para o cara de roupa casual.

O silêncio que se seguiu foi absoluto. Eu sabia que estávamos na boca da serpente.

Meu pai finalmente percebeu que a situação havia saído do controle. Com um suspiro pesado, se virou para mim e disse:

— Vamos embora, Leo.

Mas Otávio não parecia disposto a deixar aquilo passar tão facilmente. Seu olhar, calmo e penetrante, carregava uma ameaça silenciosa, e por um instante, o ar ao nosso redor pareceu ficar mais denso, como se faíscas de fogo estivessem prestes a saltar de seus olhos.

Com uma voz doce, mas perigosamente afiada, ele respondeu:

— Ah, mas tão cedo você não queria falar comigo.

"Vish," pensei.

Otávio não parecia ser o tipo de homem que deixaria uma ofensa passar em branco. A tensão no ar se intensificou, e naquele momento, percebi que talvez tivéssemos metidos em um tipo de problema que meu pai não poderia resolver com sua arrogância.

Meu pai, desconfortável, tentou dar um passo para trás.

— Tudo bem, Otávio. Esqueça isso, devemos ir — sua voz carregava uma inquietação incomum.

Mas já era tarde demais.

De repente, cinco seguranças de terno surgiram ao nosso redor, bloqueando qualquer tentativa de fuga. Era como se tivessem brotado do chão.

"Merda," pensei. Isso é coisa de segurança VIP, claro.

Aquele era o tipo de gente que meu pai, com toda sua bravata, não sabia lidar. Já conseguia prever o desfecho: ele acabaria no hospital ou, pior ainda, no necrotério, se continuasse com esse comportamento. Não consegui ficar quieto. Precisava tentar salvar o que fosse possível.

— Senhor Albuquerque, lamento muito pelo meu pai e peço desculpas em nome dele pela ofensa ao seu companheiro e à mãe dele — falei, tentando soar o mais sincero possível.

Meu pai, engoliu o orgulho, percebendo que estava encurralado. Os seguranças o pressionavam, sufocando sua soberba em menos de dois segundos. Sem saída, foi forçado a dizer, com dificuldade:

— Lamento minhas palavras, senhor Albuquerque.

Otávio manteve a calma. Seu olhar frio perfurava meu pai como uma lâmina afiada.

— Não fui eu quem foi insultado, ou fui?

Ele não desviou os olhos, esperando que meu pai se desculpasse corretamente. A humilhação estava estampada no rosto dele. Mesmo sem dizer nada, seu corpo tremia sob o peso daquilo.

— Peço que me desculpem pela ofensa, tanto o senhor quanto sua mãe — murmurou, sem conseguir encarar o homem de roupa casual ou a mulher ao seu lado.

A jovem mãe, até então em silêncio, pronunciou-se com suavidade impressionante:

— Tudo bem. Aceito suas desculpas.

Aquelas palavras caíram como uma cortina de alívio, mas eu sabia que aquilo não significava o fim. Meu pai estava engolindo veneno das próprias palavras, e eu sentia o peso disso. Respirei fundo, percebendo que estava segurado ar sem querer.

Os seguranças finalmente abriram passagem, mas o olhar de Otávio continuava queimando em nossas costas.

Quando estávamos prestes a sair, ele disse, sua voz ainda calma, mas agora carregada de uma ameaça sutil:

— Alan Montenegro, né? Vou me certificar de lembrar seu nome.

Meu pai ficou tenso. Não respondeu. Apenas acelerou o passo.

Otávio manteve a mesma serenidade do início, como um lago tranquilo que escondia perigosas profundezas.

Fui rápido em pegar meu pai pelo braço e guiá-lo até o carro. Mas antes que pudéssemos sair completamente, a voz de Otávio ecoou atrás de nós, implacável:

— Isso ainda não acabou.

Troca perigosa.

...Léo....

Acordei com o som insistente do telefone ecoando pelo quarto. A luz do sol, filtrada pelas cortinas, iluminava o espaço de forma quase irritante. O toque parecia amplificado, como se o silêncio da casa o tornasse mais agudo.

Levantei, jogando as cobertas para o lado, e desci as escadas, que rangiam suavemente. A casa, imponente e luxuosa, estava banhada pela luz dourada do sol, mas o ambiente parecia frio. Ao chegar ao pé da escada, ouvi meu pai falando ao telefone com a voz tensa.

— Três dias... é só isso? — retrucou, antes de desligar bruscamente.

Me aproximei, o peito apertado. Meu olhar fixou-se em seu rosto.

— O que foi, pai? Você está com uma cara péssima. O que é isso de "três dias"?

Ele respirou fundo, mas cada linha de seu rosto entregava o turbilhão de emoções contido. As mãos apertaram a borda da camisa.

— Acho... que o Albuquerque já deu o ultimato. O banco está pedindo o pagamento total da dívida que fiz para a empresa. Temos três dias ou vão tomar a nossa casa.

Um frio pesado espalhou-se pelo meu estômago. Mesmo esperando por isso, as palavras ainda tinham um peso forte.

— Porra... — murmurei, tentando absorver o que aquilo significava.

— Não começa, Leo — respondeu, evitando meu olhar e virando as costas.

Nos dois dias seguintes, ele envolveu-se em uma correria incessante, entrando e saindo de casa. A cada vez que cruzava a porta, era como se a esperança se rompessem mais. O olhar em seus olhos dizia tudo: as respostas continuavam as mesmas, e ninguém na cidade ousava interferir.

Na manhã de segunda-feira, vesti o meu uniforme em silêncio e caminhei até a cozinha. Parei na porta, observando-o mexer distraidamente na xícara de café quase intocada. As marcas de exaustão no rosto pareciam tê-lo envelhecido anos em poucos dias.

Fiquei ali, sem ousar falar, apenas observando. Ele nem me viu, perdido em seus pensamentos. Peguei minha mochila e saí, preferindo pegar o metrô até o colégio.

No colégio, as aulas passaram como um borrão. As palavras dos professores flutuavam ao meu redor, sem se fixarem. Nada do que diziam parecia importar. Na minha cabeça, só um pensamento persistia: o prazo do banco estava terminando.

Estava tão absorto que só percebi o empurrão de Ruan no meu ombro quando a aula acabou.

— O que foi, cara? Qual o seu problema?

Suspirei, tentando organizar os pensamentos.

— Estou preocupado, Ruan. O prazo do banco acaba amanhã.

— Poxa, cara, que tenso... Como está seu pai?

Olhei para o chão, chutando uma pedrinha enquanto andávamos.

— Está tenso. E, olha, ele merece... Mas, ao mesmo tempo, é meu pai. E nessa idade? Fora que, se ele acabar na rua, eu também vou. E com o Otávio Albuquerque envolvido, qualquer chance de trabalho vai pro ralo.

Enquanto caminhávamos pela rua, algo no estacionamento próximo me chamou a atenção. Era uma figura familiar, e a visão fez meu coração disparar.

Ele estava parado ao lado de um Porsche Panamera preto, impecável, suas linhas aerodinâmicas e imponentes. Sem pensar duas vezes, saí correndo em direção ao carro, ignorando o chamado de Ruan.

— Espera! — gritei, a voz embargada.

Ele parou, virando-se lentamente para me encarar. Estava com uma expressão de curiosidade cautelosa, a mão ainda na maçaneta do carro. Ele usava um moletom cinza claro que, apesar de casual, gritava luxo. O tecido parecia macio, de alguma marca exclusiva, e os tênis brancos nos pés eram de um design tão minimalista quanto caro.

O contraste entre nós dois era evidente. Eu, com a camisa do uniforme amassada e os tênis já desgastados - meu favorito, apesar do tempo de uso - correndo desesperado, e ele, parado ali, imponente, com o ar de quem sabia exatamente o peso que carregava. Tanto pelo carro luxuoso, quanto o do sobrenome que carregava como uma coroa.

Quando me aproximei, ofegante, as pernas queimando e o peito apertado, ele apenas ergueu uma sobrancelha, me estudando de cima a baixo. Seu olhar parecia medir cada parte minha, como se tentasse entender o que alguém como eu estava fazendo ali, se atrevendo a se aproximar.

— Talvez você não se lembre de mim — falei , tentando recuperar o fôlego da corrida.— Mas sou filho do homem que ofendeu você e sua mãe. Por favor, estou implorando. Pare de atormentar meu pai.

— Pelo que me lembro, seu pai já foi perdoado. Não estou fazendo nada contra ele.

Aquela resposta me pegou de surpresa, mas ao olhar para sua expressão, parecia que realmente não sabia da pressão que Otávio estava exercendo sobre nossa família. Falei rapidamente sobre a cobrança, como o prazo que antes era algo distante, agora estava se resumindo a apenas dias, e como até a nossa casa estava em jogo.

Ele suspirou, passando a mão pelo rosto.

— Eu deveria saber... típico do Otávio fazer essas coisas. Vem, vamos falar com ele.

A maneira como se virou para abrir a porta do carro fez meu estômago revirar. Quase não consegui processar que, finalmente, havia uma chance real.

— Qual o seu nome, garoto?

— Leonardo Montenegro, mas ...mas me chamam de Leo. E o seu?

— Matheus Cavalcante. Otávio está no Hotel Mayson Royal.

— Esse hotel é um dos milhares que ele tem aqui em Vale Azul, né? Fora os outros pelo país todo.

— Você é bem informado, Leo. É um dos menores, para falar a verdade. Ele gosta da cobertura porque é mais discreto.

A resposta de Matheus veio tranquila, como se estivesse apenas falando sobre um hotel qualquer. Mas, para mim, cada palavra estava carregada de um peso que mal conseguia compreender. Disfarçando o tremor nas mãos, olhei pela janela enquanto o carro dobrava uma esquina luxuosa.

Quando vi o hotel, meu queixo quase caiu. Erguia-se como uma torre de vidro e concreto, refletindo o céu azul e as nuvens em sua fachada brilhante.

Matheus estacionou em frente à entrada e saiu rapidamente do carro, indo direto para o elevador. Tive que acelerar o ritmo para acompanhá-lo.

— Foi mal. O Otávio não quer que ninguém saiba que ele está aqui — explicou, apertando o botão do último andar para a cobertura.

— Entendo. Não vou falar para ninguém .

O elevador era revestido por um aço polido que refletia cada movimento nosso. Me vi no reflexo, com as expressões tensas e a preocupação estampada no rosto. Cada detalhe parecia amplificado: o desgaste nos meus tênis, os meus olhos azuis com olheiras profundas eram um retrato fiel do estresse das últimas semanas, e o meu cabelo loiro estava bagunçado de tanto passar a mão, como se tentasse aliviar a pressão mental que não parecia se dissipar. O cheiro suave de perfume floral preenchia o ar, talvez lavanda ou jasmim, algo leve, mas que, invés de me acalmar, só intensificava a sensação de claustrofobia.

Matheus percebeu minha expressão rígida e, com um gesto simples, colocou a mão no meu ombro.

— Não fica tão nervoso. Vou fazer o Otávio te ouvir.

"Fácil pra você, Matheus. Não é o seu que está na reta," pensei, forçando minha respiração a se estabilizar.

Depois de minutos que pareceram séculos, o elevador finalmente se abriu. Saí para um andar silencioso, onde uma única e enorme suíte me aguardava no fim do corredor.

Matheus abriu uma porta de madeira marrom e entrou sem hesitar. Segui-o para dentro da suíte, onde o luxo parecia ir além.

— Otávio! — Matheus gritou, sua voz ecoando pela sala.

Olhei ao redor, impressionado com a imponência do ambiente. Sofás brancos, quase cegantes, ocupavam boa parte do espaço, com almofadas que pareciam mais decorativas do que funcionais. O tapete de veludo cinza se estendia pelo piso, tão macio que parecia ser feito de nuvens. A luz suave que vinha das lâmpadas de cristal penduradas no teto refletia na mobília polida e nas obras de arte caras que decoravam as paredes, mas nada parecia tão impactante quanto a cena à minha frente.

Otávio apareceu, esfregando os olhos como se estivesse tentando despertar, descalço e de pijamas. Ele bocejou, ainda sem me notar, sua postura relaxada completamente. Não havia pressa, nem preocupação em seus movimentos,como se o tempo estivesse ao seu favor e tivesse o poder de decidir quando as coisas aconteceriam e de certa forma com toda fortuna que possui era de fato verdade.

— Amor, por que você está gritando? O que houve?— A voz de Otávio veio baixa e sonolenta.

— Temos visita — Matheus comentou , apontando para mim de forma casual, como se a situação fosse trivial.

— Leonardo Montenegro. A que devo a honra da visita?

Otávio não precisou revirar os olhos para deixar claro o quanto minha presença o irritava. Seu lábio se repuxou em um esboço de desdém, enquanto cruzava os braços, como se erguesse uma barreira.

Era óbvio que ele sabia quem eu era. Não havia como não saber. Afinal, tinha feito da vida do meu pai um verdadeiro inferno, deixando claro que estava disposto a destruir tudo o que ele tinha construído.

Matheus cruzou os braços, encarando Otávio com uma expressão séria.

— Mesmo sabendo a resposta, quero entender. Você está causando problemas para os negócios do pai dele? E até ameaçou tomar a casa deles? Poxa, amor...

— Sim, Matheus. Estou fazendo isso.

Fiquei em silêncio por um momento, tentando processar aquela resposta, mesmo já sabendo que tinha sido ele. Estava sem acreditar no que ouvia. Mas então, cansado de ser espectador da cena, e munido de uma coragem que nunca tinha tido, decidi tomar a palavra.

— Por favor, senhor Albuquerque, perdoe meu pai. Não aguento mais vê-lo definhar na minha frente.

Otávio me olhou com aquele sorriso sádico, algo que parecia ter saído de um filme de terror.

— Muito bem, garoto, está perdoado.

Aquelas palavras me surpreenderam. Meu corpo relaxou, uma onda de alívio me invadiu.

— Obrigado... muito obrigado, senhor!

Mas antes que pudesse me deixar levar pela leveza do momento, Otávio levantou a mão, interrompendo minha pequena felicidade.

— Ainda não terminei. Acho que há algo que você poderia fazer em troca.

O alívio evaporou instantaneamente, e meu estômago se revirou e sensação de pavor tornou conta. Aquele sorriso em seu rosto nunca foi bom. Era sempre uma promessa de algo mais sombrio.

— Qualquer coisa .

— É verdade que você vai se formar no fim deste ano?

Engoli seco, meu corpo todo se tencionando ainda mas com a pergunta.

— Sim, estarei me formando no ensino médio no fim do ano.

Otávio sorriu de forma satisfeita, como se tivesse alcançado exatamente o que queria.

— Ótimo. Então quero que você se matricule na Faculdade Rainbow por no mínimo dois anos.

Essas palavras caíram como pedra no meu estômago. A Faculdade Rainbow... O que ele queria com isso?

— Como você pode me pedir uma coisa dessas? — falei mais para mim mesmo, com a voz trêmula.

O olhar de Otávio parecia implacável. Matheus, até então quieto, parecia desconfortável, mas não fez nada para intervir - talvez nem conseguisse. O namorado dele parecia determinado.

Respirei fundo, tentando organizar meus pensamentos, mas tudo o que conseguia enxergar era um futuro incerto, apertado, dentro de uma vida que nunca escolhi. E a pergunta que persistia: o que Otávio realmente queria? Ele estava tentando me humilhar? Ou havia algo mais por trás de tudo isso?

— Tá... mas você vai parar de perseguir meu pai agora?

Otávio pra mim olhou com aquele sorriso vitorioso, como se tivesse acabado de lançar uma isca e tivesse mordido.

— Perfeito. Vou providenciar sua carta de admissão. E você cuide da papelada. Lembre-se: não seja descoberto.

Sai do apartamento sem dizer uma palavra. Minha cabeça estava a mil. Estava ciente de que meu pai nunca entenderia o que acabara de acontecer, mesmo que tudo fosse culpa daquele maldito dia. A única coisa que eu tinha certeza era que faria tudo que fosse possível para resolver nossa situação. E, de alguma forma, isso me fez sentir ainda mais preso nesse ciclo insano que Otávio havia criado. Meu pai, com sua visão distorcida, parecia ser uma parte fundamental do que estava me prendendo.

A carta de admissão para a faculdade Rainbow... aquilo era vingança final de Otávio. Uma forma de manter o controle, de me fazer entrar em um mundo que, com certeza, seria ainda mais difícil de encarar. E o pior: se eu não seguisse as regras, o que aconteceria com meu pai?

A gravidade da situação parecia infiltrar-se em meus ossos. Relutava em fazer aquilo, mas não enxergava outra saída.

O peso da responsabilidade me esmagava, e, no fundo, entendia que estava prestes a tomar um caminho que me afastaria ainda mais do que eu imaginava ser possível. A culpa de tudo isso era do meu próprio sangue de estar indo para faculdade LGVTQIA+.

O que seria de mim, da minha vida, dos meus sonhos, se realmente tivesse que seguir as regras de Otávio? O que aconteceria quando o meu pai soubesse da carta, quando soubesse que estava me aproximando de tudo o que ele odiava? Não sabia se tinha coragem de enfrentar essas respostas, mas uma coisa era certa: o meu destino estava sendo moldado e eu não tinha nenhum controle sobre ele.

...Nota da autora:...

Queridos leitores,

Gostaria de compartilhar o significado de dois elementos importantes que aparecem neste capítulo:

LGBTQIA+: Essa sigla representa diferentes orientações sexuais e identidades de gênero:

L: Lésbicas

G: Gays

B: Bissexuais

T: Transgêneros

Q: Queer ou Questionando

I: Intersexuais

A + abrange outras identidades e orientações, como pansexuais e assexuais, promovendo inclusão e diversidade.

Rainbow (Arco-Íris): Um símbolo universal da diversidade, esperança e inclusão. Ele representa a pluralidade de identidades e a beleza de viver em um mundo cheio de cores e diferenças.

Espero que esses significados tornem a leitura ainda mais especial e inspiradora!

Com carinho,Deinha.

Sombras e preconceito.

...Léo...

Contar para meu pai sobre o acordo seria a coisa mais difícil da minha vida, e certamente não fiz isso naquele mesmo dia. Acabei adiando, esperando para ver se Otávio daria sossego — e, de fato, não demorou muito. Na quarta-feira à noite, meu pai chegou em casa com um brilho de satisfação nos olhos, o rosto cansado, mas orgulhoso, como se tivesse alcançado uma grande vitória.

— Leo, você não vai acreditar! — falou, com uma empolgação rara. — O Albuquerque deu um respiro para a gente. O banco, além de renegociar os prazos, falou que renovaria meu empréstimo, me dando uma quantia alta de dinheiro. Acho que ele percebeu que era loucura. Só falei a verdade para o companheiro dele e para a mãe também, aquela escória... Aquele "frutinha".

Meus dedos estavam parados sobre a tela do celular; minha mente vagava em outro lugar até então. Aquelas palavras cruéis me trouxeram de volta à realidade como um soco no estômago. A sala de casa parecia ter ficado menor e sufocante. Meus dedos se apertaram em volta do telefone, e o ar parecia doer para entrar em meus pulmões. Meus dentes rangeram levemente... o barulho do velho relógio na parede parecia mais alto  que o normal.

Como uma semana tinha o poder de transformar a vida de alguém? Era apenas setembro, como qualquer outro mês, e ainda assim, minha vida agora estava em frangalhos.

Levantei os olhos em sua direção , tentando esconder a amargura que crescia dentro de mim e pela primeira vez respondi.

— Lógico que parou, pai. Fiz um acordo com Otávio, ou você acha que foi de graça?

A expressão de alívio e orgulho no rosto dele se desfez num instante. Sua voz saiu vacilante, quase relutante, enquanto me encarava com incredulidade.

—  Quando? E que tipo de acordo, Leo? Você está me assustando... O que aquele homem te pediu?

— Na segunda-feira. Falei com ele e fizemos um acordo, pai — afirmei , dando ênfase à palavra "pai" com uma amargura que não poderia ser  ignorada.— Ele me pediu... na verdade, foi mais uma exigência, que eu estudasse na faculdade que  administra, a Rainbow.

A reação dele foi instantânea. Seus olhos se alargaram, como se uma chama tivesse sido acesa.

—  Não acredito! — sua voz tremeu levemente. — Aquele filho da puta te jogou no covil de viadinhos. Isso é inaceitável! Meu filho, convivendo com abominações? Você não pode ir, Leo! Isso é um ultraje!

—  A questão aqui, pai, não é se eu posso ou não. É que você não segura suas palavras cruéis e seu preconceito aberto só por causa de... sei lá o quê. E agora vou ter que ir — respondi, deixando escapar um suspiro antes de me levantar e me afastar, sentindo o peso de sua reprovação como uma sombra densa.

Ouvi sua voz atrás de mim, o tom carregado de uma frustração quase desesperada.

—  Leo, espera, filho. Não posso acreditar que você aceitou isso tão facilmente. Não posso acreditar! Meu filho, se envolvendo com seres tão repugnantes, que nem deveriam existir!

No topo da escada, me virei em sua direção , sentindo o calor das lágrimas ameaçarem, mas recusei deixá-las cair.

— Aceitei, sim, pai. Quase tive uma síncope. Esse deveria ser meu ano: minha formatura, procurar um trabalho de meio período nas férias, começar a olhar para faculdades, ou até estudar na mesma que o Ruan, já que ele é meu amigo. Mas o que você fez? Abriu essa boca cheia de ódio, justo para ofender o namorado do homem mais influente do mundo.

Por um momento, o rosto dele pareceu desmoronar. Ele sussurrou meu nome, quase como se quisesse dizer mais alguma coisa, mas eu sabia que não havia arrependimento genuíno ali, apenas a vergonha de ter que aceitar que seu único filho agora estava indo para um ambiente que tanto desprezava.

Após aquela conversa, os meses passaram como um borrão. O calendário virou num piscar de olhos. Os documentos da faculdade estavam prontos, como se todas as etapas tivessem concluídas , e a formatura se aproximava . Mas em vez de sentir alegria, eu estava simplesmente... ali. O som da caneta rabiscando o papel era o único barulho que me ancorava no momento.

O ambiente da sala de aula estava saturado de sons: o murmúrio abafado dos outros alunos, o bater das mãos sobre as carteiras, o farfalhar das folhas e o arrastar do giz no quadro negro. O calor se misturava à sensação de cansaço, e o ventilador, fraco e sem força, tentava em vão aliviar o calor no ar. Todos estavam imersos em seus próprios mundos, mas para mim, tudo parecia distante, vazio.

A voz de Ruan cortou o som abafado da sala, como um estalo de dedos no meio do vazio.

—  Leo, acorda, cara! Já é hora do intervalo.

Olhei para ele. Ruan, meu amigo de 18 anos, tinha uma presença que chamava atenção sem esforço. O cabelo bagunçado caía sobre a testa de forma quase proposital, enquanto os olhos escuros carregavam uma expressão entre curiosidade e desafio. Sua postura relaxada, com os ombros levemente caídos e as mãos no bolso, dava a impressão de que nada o abalava. Mesmo sem estudar na minha sala, ele sempre aparecia , como se aquele fosse seu lugar natural.

— Vamos — respondi, guardando o celular no bolso e seguindo-o. Pelo menos poderia comer algo, mesmo que a comida, ultimamente, tivesse sem graça.

Saímos da sala e nossos passos ecoaram pelo corredor, abafado pelo burburinhos das vozes dos outros alunos. O som das portas se fechando atrás de nós, algumas com mais força, outras com suavidade, misturava-se  ao ruído das mochilas batendo contra os corpos apressados.

Chegamos à cantina e o cheiro de comida quente e frituras invadiu minhas narinas. O tilintar das bandejas se chocando contra os balcões se misturava ao som das risadas e das vozes dos alunos fazendo seus pedidos ao atendente, um senhor de meia-idade . O barulho das máquinas de refrigerante, o som de algo caindo no chão formavam uma música caótica.

Olhei para trás, querendo perguntar o que Ruan queria, mas ele estava flertando com Amanda, uma jovem  ruiva da minha turma. Ela era  charmosa, mas o que mais me irritava era o jeito descomplicado com que ele fazia isso, sem nem perceber o desconforto que me causava. Bufei e, quase sem pensar, o puxei pelo braço levemente.

—  Nem vem! Você me chamou pra comer, eu tô com fome. Não vou ficar sozinho só porque você quer dar uma de pegador agora —  falei, já escolhendo meu lanche: um sanduíche natural e um suco de maracujá.

Ruan soltou um suspiro, mas concordou em me acompanhar. Ele gostava de Amanda, mas estava claro que ela não estava muito interessada em suas investidas . Ele pegou seu lanche também - um hambúrguer e uma lata de refrigerante, sempre mantendo o estilo "prático e  rápido". Pagamos no caixa, o som das moedas tilintando enquanto entregávamos o dinheiro, e logo seguimos para as mesas.

Assim que nos sentamos, Amanda, que estava por perto, fez questão de provocar ainda mais. Com um sorriso leve,se aproximou de mim e, em vez de dar atenção a Ruan,me estendeu um sanduíche envolto em papel alumínio.

— Quer, Leo? Eu mesma que fiz —

disse, com um sorriso natural, enquanto me oferecia o sanduíche caseiro de peito de peru, que parecia bem mais apetitoso do que o lanche comprado na cantina.

— Valeu, Amanda, mas já comprei o meu.

Ela deu de ombros sorrindo novamente, voltando para o grupo de amigos. Ruan resmungou, visivelmente incomodado, enquanto eu tentava esconder uma risada.

Comecei a comer meu sanduíche, o som suave do papel se desfazendo enquanto o desembrulhava. Ao meu lado, Ruan mordia seu hambúrguer com mais raiva do que fome, ainda meio irritado pela cena com Amanda.

Ele suspirou, olhando para mim como se estivesse tentando decifrar um mistério.

—  Poxa, cara, como você consegue toda essa atenção? E não é só das garotas.

—  Não sei do que você tá falando. O que quer dizer com isso, Ruan? —  perguntei, mordendo meu lanche e tentando parecer despreocupado.

Ruan deu uma grande mordida no hambúrguer, mastigando devagar antes de responder:

—  É inacreditável como todo mundo te adora. Se você tá por perto, já era minhas chances com as garotas.

Sabia que as pessoas se sentiam atraídas pela minha aparência, e que isso chamava a atenção tanto das meninas quanto, para o meu total desconforto,dos meninos também. Não era uma novidade, mas ouvir Ruan falar sobre isso me deixava ainda mais apreensivo, considerando que em breve estaria em um ambiente onde isso só seria mais intenso, por causa do meu "acordo" infeliz com Otávio.

Enquanto tentava voltar a focar no meu lanche, Ruan continuou, aparentemente decidido a mexer em todas as minhas inseguranças. Ele deu uma risada leve antes de dizer:

— Cara, lembra do André?

Quase engasguei na hora, tossindo sem parar. Ruan sabia exatamente o que estava fazendo ao mencionar esse nome. André era um dos meninos do time de futebol do outro colégio com quem tínhamos jogado no ano passado . Ruan e eu jogávamos no mesmo time, mas geralmente ficava no banco. Não que eu jogasse mal, mas não era exatamente o melhor em campo. Parecia que o treinador, senhor Soares , me mantinha ali mais pela aparência do que pelo desempenho, para atrair torcida.

Naquele dia específico de que ele  falava, nosso colega Valter tinha torcido o pé, e eu fui chamado para substituir  . O jogo estava tenso, e eu estava focado, mas notei que, de vez em quando, André, com aqueles olhos cor de avelã , me olhava de um jeito que me deixava desconfortável. Achei que era só coisa da minha cabeça e continuei o jogo. Porém, ao final, para minha completa surpresa, ele se aproximou de mim. Estava com o uniforme do time, a braçadeira de capitão no braço direito e a bola na mão. Com todo o time ao redor e os olhares curiosos em nossa direção, simplesmente declarou:

—  Eu te amo.

A lembrança ainda me fazia sentir aquele misto de constrangimento e perplexidade. Que situação maluca! Eu nem o conhecia direito, e além disso, não sentia atração por homens. Mesmo assim, o comentário de André ficou gravado na minha memória como uma situação bizarra, da qual preferia não recodar .

Desviei o olhar, tentando disfarçar a vergonha, e voltei a mastigar meu lanche em silêncio, enquanto Ruan continuava a rir da minha reação.

— O que tem ele, Ruan?— perguntei, finalmente.

—  Que tem ele? Até hoje não acredito que ele ficou cativado por você do nada, mesmo sendo hétero e você também. Sua aparência é letal, é só o que quero dizer.

A ideia de ser visto como"irresistível" até para homens  era, no mínimo, desconcertante. Cresci ouvindo meu pai, com toda sua convicção, condenar qualquer comportamento que ele considerasse "fora do padrão". Sempre fui cercado por aquela visão , uma crença rígida de que o mundo era dividido em preto e branco, certo e errado, sem espaço para meio-termos.

Por mais que não compartilhasse das suas ideias  - inclusive discordasse e tivesse dito para Ruan e outros amigos que não via nada de errado com ninguém ser quem realmente é - era como se uma parte de mim, impregnada pelo pensamento do meu pai, ainda não conseguisse relaxar completamente. Havia algo dentro da minha mente que hesitava, algo que ficava sempre ali, sussurrando ao meu ouvido: "Isso não é pra você."

Talvez fosse essa voz, um eco dos valores rígidos que ele plantou, que me fazia evitar pensar em relacionamentos ou atração por outros caras, mesmo que minha mente racional dissesse que era bobagem. Meu pai sempre deixava claro que ou você era de um jeito ou de outro, sem misturas, sem exceções. Então, me convenci: eu era hétero, e ponto.

— Será que podemos falar de outro assunto? Não sou muito fã desse tema aí. Vamos comer antes que o intervalo acabe? —  falei, me mexendo desconfortável na cadeira.

Ruan deu de ombros e voltou a comer seu lanche, sem tocar mais na questão . Que para mim, era delicado como cristal. Já não sentia gosto dos alimentos por causa do problema com Otávio, e aí vem meu amigo desenterrar um assunto antigo. Logo esse, sobre um homem sarado, que disse estar apaixonado à primeira vista. Não acredito em amor à primeira vista. Acho que você vai gostando da pessoa com o tempo, talvez sinta atração, mas amor? Para mim, isso não existe. Além do mais, não quero namorar um homem .

Terminamos o lanche em um silêncio desconfortável.Quem precisa de inimigos quando se tem o Ruan como amigo? Já na porta da minha sala, antes do sinal bater para continuar com as torturas das aulas de fim de ano, ele diz:

—  Até a lésbica do segundo ano, a Lara, quis te namorar. Isso é prova mais que suficiente de quanto você é mortal e lindo.

Olhei para ele, indignado.

—  Você está insuportável hoje, sabia?

— Ah, só estava  lembrando quanto meu amigo é avassalador. A propósito, você não me respondeu: para qual faculdade vai quando o ano acabar?

Ele entra na minha sala e se senta na cadeira à frente, na expectativa de esperar o professor chegar pra tirar ele da sala. Novamente, Ruan me leva ao lugar escuro e sombrio do meu acordo com Otávio. Devo estar suando frio, mas nem em um milhão de anos falaria sobre isso. Já é humilhante o suficiente que, no próximo ano, tenha que fingir ser gay para estudar em um lugar onde ser hétero é motivo de xingamento.

Respondi, fingindo não estar morto de medo de ser descoberto :

—  Ah, ainda não sei. Tô meio indeciso, mas tem tempo ainda, né?

Ele me encara com seus grandes olhos onix , fixos em mim, como se tentasse ler meus pensamentos.

— Que diabos, Leonardo, é seu futuro, cara! Não dá pra enrolar assim. Você sabe ou vai deixar seu pai decidir por você?

Balanço a cabeça, e a verdade é que, de certa forma, meu pai decidiu. E Otávio Alburquerque deu a martelada final na minha cabeça, minha sentença de morte.

Mas antes de formular qualquer mentira deslavada, o sinal toca, e o professor entra na sala, fazendo Ruan sair. Nunca me senti tão feliz por ter aula quanto naquele momento. Além de não querer contar sobre a faculdade Rainbow não podia. Fazia parte do acordo entre mim e Otávio Alburquerque: mentir para todos os meus amigos. Essa era a minha vida agora, e seria assim por longos anos .

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