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Superando Barreiras

A cova das Palavras.

...Leo....

O BMW preto estacionava sempre no mesmo lugar, exatamente três metros após o portão enferrujado do colégio. Eu contava os passos até ele sete desde a saída, sete respirações para engolir minha liberdade antes de entrar naquela jaula de couro e aço.

Dessa vez, porém, parei no quinto. Meu pai não olhava para mim. Seu perfil cortava o espaço como uma faca cravada no banco do motorista, os ombros tão rígidos que pareciam lascar. Até a veia temporal pulsava, marcando o ritmo do ódio que eu conhecia tão bem. Segui seu olhar até o portão, e então vi.

Stevam e Lucas, saindo de mãos dadas, despreocupados como só os verdadeiramente livres podem ser.

No último ano do colegial, meu pai ainda habitava meu corpo como um parasita, sugando meu ar, meu espaço, meu direito de ser. Enquanto caminhava em direção ao carro, o mundo insitia em sua rotina quase criminosa: um grupo de meninas ria de algum meme, dois garotos dividiam um salgadinho, a vida seguia como se a minha não estivesse sendo compacta a cada passo.

Na quarta série, aprendi o que acontecia com as “coisas diferentes”, como ele costumava chamar.

— O professor de artes é um viado no armário — ele cuspiu uma noite, esmagando o cigarro no pires como se extinguisse o próprio homem.

Eu chorei até vomitar não pelo professor, mas pelo algoz que nego até a morte ter reconhecido no espelho do banheiro na manhã seguinte.

Agora, quando sua voz cortou ar.

— Por que sua escola aceita essas criaturas?— senti o gosto de bile subindo novamente. Seu ódio era uma animal domésticado: sabia exatamente onde morder.

Por que ele é assim? A pergunta girava minha cabeça. Já conhecia sua resposta de cor:

— Eles não são normais.

Como se "normal" fosse sinônimo de humano e o resto descartável. Como se meus amigos o Stevam e o Lucas que colecionavam gibis e tinham medo da prova de matemática fossem criaturas de outro mundo só por serem um casal. Queria esmurrar aquela certeza podre até sobrar apenas carne crua e vergonha.

Mas eu? Era apenas um rato coverde que engolia o próprio chão quando ele pisava mais forte.

Assim que entrei no carro, ele ganhou vida com um rosnado do motor, meu pai sequer dignando-me um olhar. O couro do assento rangeu sob meu peso, enquanto atirava a mochila ao lado, como quem descarta um lastro inútil.

— Para onde estamos indo, pai? — minha voz soou mais áspera.

Os dedos dele se apertaram no volante, as unhas deixando marcas quase imperceptíveis no couro.

— Vamos nos encontrar com o Otávio Albuquerque.

Por um instante, o ar faltou. O nome ecoou no pequeno espaço como uma profanação.

— O bilionário? Aquele da revista..

— Da Riviera — ele cortou, como se eu tivesse cometido uma insolência por comentar o óbvio.

Arqueei as sobrancelhas. A Montenegro & Filhos mal chegava aos trinta funcionários; era uma gota no oceano para um homem como Albuquerque.

— Uau, você conseguiu uma reunião com ele?

Ele fez aquele movimento de cabeça que eu conhecia bem meio balanço, meio tremor como se estivesse sacudindo um inseto invisível da nuca.

— Ele não sabe que vamos aparecer — disse, enquanto o carro engolia a avenida. — Um contato que tenho no banco vazou esse almoço.

Era insanidade. A pura e crua espécie de loucura que só o desespero consegue vestir como lógica. Invadir o horário de almoço de Otávio Albuquerque como se fôssemos convidados? Ele era um homem que movimentava economias com um aceno de mão e achar que receberia dois desconhecidos vindos do nada merecia, com folga, o prêmio de pior decisão possível.

O sol bateu em seu rosto através do para-brisa, revelando o suor que escorria pela têmpora como uma confissão involuntária. Aquele brilho úmido dizia tudo o que suas palavras jamais admitiriam: não havia escolha.

Estávamos prestes a invadir o território de um predador sem armas, sem estratégias, apenas com um punhado de desespero e as mãos vazias. As minhas, tremendo. As dele, cravadas como garras no volante. A empresa afundava, a dívida crescia, e, pela primeira vez na vida, ele não tinha inimigos para culpar só o próprio reflexo no retrovisor.

"Isso era insanidade", pensei, virando o rosto para a janela. Serra Azul desfilava em silêncio através dela: casinhas baixas, praça vazia, o mesmo poste quebrado desde minha infância. Mantive a boca fechada por três razões:

Ele nunca me ouviria.

O empresário aqui era ele.

Talvez... só talvez...

As revistas diziam que Otávio Albuquerque investia em negócios afundados em dívidas, mas com “alma de sobrevivente”. Nos tempos do meu avô, homens como ele davam chances. Já nos tempos atuais, só davam golpes.

O carro acelerou numa curva. Fechei os olhos, imaginando o bilionário vendo o que meu pai não conseguia: que aquela empresa moribunda ainda tinha os mesmos ossos bons que a sustentaram por três gerações.

Chegamos ao Metrô Palace. Ele se erguia como uma miragem no asfalto colunas de mármore sugavam a luz do meio-dia, jardins geometricamente podados, carros que valiam mais que nossa casa.

Nosso BMW de 2012 estacionou entre duas Aston Martin, como um lobo velho em meio a panteras.

Mal descemos do carro, o segurança surgiu como se tivesse se materializado do ar. Seus dois metros de altura me forçaram a arquear o pescoço, revelando um nó de gravata tão perfeito que doía os olhos. Seu perfume madeira nobre cheirava a contas bancárias suíças.

— O evento é privado, senhores.

Meu pai cerrou os punhos até os nós dos dedos empalidecerem. Veias saltavam em seu pescoço como cordas de um violino sob tensão extrema.

— Escuta bem... preciso ver o Albuquerque. Se eu perder essa oportunidade... — Ele fez uma pausa teatral que chamava de "efeito psicológico". — Você se arrependerá amargamente deste erro.

O homem sequer pestanejou. Inclinou a cabeça num movimento calculado, quase elegante, e sua voz deslizou como uma lâmina entre as costelas.

— Senhor, meu único arrependimento seria permitir sua entrada.

Com um gesto mínimo de dois dedos erguidos, como quem acena para um criado as portas de vidro fosco se abriram em câmera lenta, como cortinas de teatro, para a entrada dos autores principais.

Primeiro, a deusa trans entrou. Uma visão em vermelho-vampiro que teria feito Drácula tropeçar na própria capa. O vestido mais segunda pele do que tecido escorria por suas curvas como sangue fresco escorrendo no vidro. Seus saltos agulha cravavam o mármore com precisão. A barba, aparada com a exatidão de um ourives, emoldurava lábios pintados de um escarlate tão vivo que parecia zombar abertamente de qualquer conceito binário.

Seu acompanhante era um estudo em contradições. Camisa branca imaculada, jeans que custavam mais que nosso carro, e uma postura que transformava informalidade em declaração para os oligarcas que usavam ternos brancos em ilhas privadas.

Meu reflexo no vidro fosco me encarou: um fantasma pálido de boca entreaberta. Eu, que antes mesmo de aprender amarrar os sapatos aprendi abaixava os olhos, agora os mantinha fixos como um menino diante de sua primeira maravilha.

Foi um segundo de pura admiração. Um instante de traição involuntária. Uma náusea subiu pela minha garganta, pois meu pai já tinha capturado minha expressão.

— Pai! — o sussurro saiu mais como um apelo agonizante do que advertência. Estávamos ali para mendigar, e escândalos não constavam no menu de homens como Otávio Albuquerque. — Vamos embora! Não compensa.

— Você não vê, Leonardo? — Sua voz cortou o ar como arame farpado, crescendo em volume calculado. — Ele deixa essas aberrações desfilarem como reis, enquanto homens de bem são barrados na porta.

O silêncio caiu em ondas concêntricas. Conversas morreram no meio das frases. Garçons congelaram com as bandejas suspensas. Até os pássaros pareceram interromper seu canto. Senti a vergonha me consumir num incêndio lento, das clavículas até as têmporas cada centímetro de pele queimando sob os olhares curiosos.

O homem de roupa casual virou-se com a elegância de um tigre entediado.

— Repita — duas sílabas que pesavam mais do que todo o discurso do meu pai.

— Senhor, me desculpe, meu pai não quis... — minhas mãos se fecharam sobre o braço paterno num gesto inútil.

Ele sacudiu meu toque como quem espanta mosca da fritura.

— Eu quis dizer cada palavra. Merecem todos a fogueira! — cuspiu as palavras, cada sílaba afiada com um ódio temperado por anos.

O soco chegou como vírgula final num argumento falho. Vi meu pai aquele colosso doméstico dobrar-se como um boneco de ventríloquo abandonado. Seu corpo atingiu a lataria do BMW com um baque metálico, o lábio inferior explodindo em vermelho vivo, que ironicamente combinava com o vestido da divindade que ele insultara.

Ao ajudá-lo a levantar, minhas mãos tremiam. Não de medo mas de uma revelação íntima. Naquele asfalto impiedoso, eu finalmente via ele não como o pai da minha infância, mas como um cachorro velho, espumando, mordendo as rodas do mundo que insistia em girar sem seu consentimento.

— Você cavou a própria cova. — sussurrei ao vento, minhas mãos trêmulas sustentando seu corpo cambaleante.

O homem de roupa casual nos observava com a frieza de um cirurgião avaliando um tumor. Seu braço protegia a deusa trans como se aquela fosse a única posição possível no mundo.

— Ofenda-me à vontade. Mas ofender minha mãe... — seus dedos se fecharam levemente no ombro dela — isso é inaceitável.

Meu pai ergueu o queixo, o orgulho mantendo-o em pé melhor que qualquer equilíbrio.

— Já chega, pai! — gritei, sabendo que minhas palavras eram tão inúteis quanto um guarda-chuva de papel.

— Quem diabos você pensa que é... para me bater? — meu pai cuspiu sangue e arrogância no asfalto. — Você por acaso sabe quem eu sou?

— Não me importo com seu nome ou sua pretensão — o homem ajustou o punho da camisa com uma calma letal — mas, se voltar a insultá-la, transformarei essa sua cara num borrão.

O sorriso do meu pai escancarou-se, mostrando dentes manchados de sangue.

— Tô morrendo de medo, garotinho... Tá se achando tanto... Quando Otávio Albuquerque aparecer, vamos ver se mantém essa banca.

O nome ecoou. Vi o corpo do homem reagir antes mesmo do rosto: uma leve tensão nos ombros, o pescoço esticando meio centímetro. Não era medo era reconhecimento íntimo.

Foi então que uma voz grave cortou o silêncio.

— Estou aqui. E vi tudo.

Me virei.

Otávio Albuquerque emergia das sombras do restaurante como um fantasma convocado por uma dívida antiga. Meu Deus... ele estava ali o tempo todo?

As revistas que eu colecionava não mentiram, mas falharam em capturar o magnetismo daquele homem.

Seus olhos âmbar-escuros escaneavam a cena. O lábio sangrando do meu pai. Minhas mãos trêmulas em seu ombro. Os dois personagens destratados, imóveis como estátuas de museu.

A polo branca caía sobre seu corpo com a perfeição arquitetônica de um edifício de I. M. Pei. Cada dobra estava no lugar exato. Os jeans cáqui, levemente amarrotados nos joelhos, eram sua única concessão à casualidade.

Mas o que me fez engolir em seco foram os tênis. Simples, brancos, silenciosos... E custavam mais do que seis meses da faculdade que eu ainda nem tinha começado.

Meu pai endireitou a postura com esforço visível.

— Excelente timing, senhor Albuquerque. Sou Alan Montenegro. Talvez possa me explicar por que seus convidados acham que podem agredir homens de bem?

Engoli seco. Mesmo derrotado, ele insistia em cavar mais fundo. Minhas palavras saíram num sussurro ácido:

— Baita exemplo que você tá dando, pai...

Ele girou na minha direção, os olhos injetados de um ódio que agora se dividia entre quem o ofendera... e eu.

— Leonardo...

Meu nome saiu como ameaça embrulhada em ácido. Conhecia aquele tom há anos era o pré-requisito para todas as surras que levei depois dos doze. Mas desta vez, algo no meu olhar deve ter traído a revolta silenciosa. Porque ele hesitou.

Por uma fração de segundo, vi a dúvida cruzar seu rosto como uma sombra. Foi o suficiente. Seu braço se ergueu num gesto brusco. Virei o rosto de lado, já esperando o pior. Vi de relance o homem de roupa casual se tensionar parecendo pronto para intervir. Mas o que veio foi apenas:

— Depois conversamos.

A frase caiu como um tijolo. Era a primeira vez em anos que meu pai não terminava uma sentença com "cala a boca". E aquele pequeno silêncio, diante da presença do milionário, gritava: ele precisava fingir ser civilizado e estava falhando.

Otávio permaneceu imóvel por um longo tempo, o rosto um enigma sob a luz do sol.

Quando finalmente se moveu, foi com a precisão de um predador. Cada passo em direção ao homem de roupa casual carregava a força de uma revolução.

Agarrei o braço do meu pai com força suficiente pra deixar marcas.

— Vamos embora. Agora.

Seus músculos enrijeceram sob meu toque, pulsando com a velha teimosia, mesmo ferido.

— Você não tá vendo, Leonardo? — seu sussurro era um misto de desespero e repulsa — Essa é a minha única chance de...

Mas o resto morreu nos lábios.

Num movimento fluido, que parecia desafiar as leis da física, Otávio envolveu a cintura do homem de roupa casual e o puxou para si.

O beijo que se seguiu não foi performático. Foi uma declaração de guerra em linguagem corporal. Os lábios se encontraram com intimidade crua e a cada segundo, demoliam séculos de preconceito.

Meu pai ficou em choque. Seu pomo de Adão subia e descia em espasmos. As mãos se contraíram nas costuras da calça.

O mundo parecia em câmera lenta.

O beijo ainda ardia no ar. A humilhação escorria dos poros dele. Tudo girava na minha mente.

Então, a voz de Otávio cortou o silêncio, doce como mel envenenado:

— Desculpa o atraso, amor. — Seus dedos acariciaram o rosto do homem de roupa casual. — A reunião acabou se estendendo.

O ar ficou eletrizado. Meu pai, finalmente percebendo a armadilha em que caíra, virou-se com a lentidão de um condenado. O silêncio que se seguiu foi absoluto. Eu sabia estávamos na boca da serpente.

— Vamos embora, Leo.

Mas Otávio já estava em movimento.

Seus olhos aqueles que as revistas chamavam de “poços de petróleo” agora brilhavam com algo mais sorrateiro que raiva.

— Ah, mas tão cedo? — o sorriso dele era cínico e cortante — Há minutos você implorava por minha atenção.

Meu pai, desconfortável, tentou dar um passo para trás.

— Esqueça isso, Otávio — sua voz carregava uma inquietação incomum.

Num estalo de dedos. Das sombras do Metrô Palace, cinco figuras emergiram como lobos bem vestidos.Não correram. Não precisavam.

Cercaram-nos com a precisão de quem faz isso há anos.

"Merda, aqui vem o tsunami."

Claro que ele tinha um exército particular. Minhas unhas cravaram na palma da mão. O BMW parecia estar anos-luz de distância.

— Senhor Albuquerque... — minha voz soou mais firme do que esperava, mesmo com a imagem do meu pai em uma UTI e, se piorasse, em um caixão. — Peço desculpas pelo ocorrido. Meu pai...

— Não precisa falar por mim. — rosnou, teimoso.

Mas os seguranças já apertavam o cerco. Vi o exato momento em que ele percebeu que estava encurralado como um rato de laboratório.

— Desculpe... pelas minhas palavras, senhor Albuquerque.

Otávio cruzou os braços, o relógio de pulso brilhando sob a luz.

— Eu não fui o único insultado.

O silêncio pesou toneladas. Meu pai engoliu seco. As veias do pescoço saltavam. Quando finalmente falou, as palavras saíram como um cuspe:

— Peço... desculpas. Aos dois.

A mulher de vermelho nos estudou com os olhos de quem já vira essa cena centenas de vezes.

Então, com uma voz delicada e elegante, disse:

— Tudo bem. Aceito suas desculpas.

Mas o perdão não era para meu pai. Ela olhava direto para mim. Foi aí que reparei nos seus olhos belos, quase dourados. No mesmo instante, os seguranças abriram caminho.Estávamos livres. Mas quando demos as costas, a voz de Otávio nos alcançou. Um arrepio subiu pela minha nuca.

— Alan Montenegro, certo? — uma pausa, calculada como quem resolve um problema de matemática — Vou lembrar desse nome. E desse dia. Cada mísero segundo.

Fudeu.

Meu pai endureceu o corpo na hora.

Eu o guiei até o carro, notando como seu cotovelo tremia sob minha mão. Ele tinha encontrado um oponente de verdade.

— Filho da pu... — ele começou, mas a frase morreu quando sua mão tocou o volante.

E como um eco fantasmagórico, Otávio ainda imóvel sussurrou a ameaça final:

— Isso ainda não terminou.

O ultimato.

...Léo....

Acordei com o toque insistente do telefone cortando o silêncio do quarto. A luz matinal escorria pelas frestas das cortinas, pintando o ambiente de um dourado quase cruel.

Arranquei-me da cama, jogando as cobertas de lado. Desci as escadas cada degrau rangia sob meus pés descalços, o mesmo som que, na infância, me alertava quando meu velho chegava bêbado em casa.

Ironia do destino: agora era eu quem descia para encarar o monstro de frente. Eu sabia. Algo estava errado.Telefonemas de manhã nunca trazem boas notícias.

E na casa dos Montenegro, não haveria exceção. Esse tipo de coisa só dava certo nos filmes que meu pai adorava.

A mansão grande, imponente, perfeita respirava luxo por todos os poros. Paredes brancas, mármore, cristais... a porra toda que qualquer garoto acharia o máximo. Mas não valia nada. Naquela manhã, o frio do desespero espreitava os corredores, banhados por um sol mentiroso.

Assim como eu. Tornei-me um mestre na arte de fingir.Tanto que até a música irritante de Frozen virou meu mantra.

"Esconder, não mostrar." Bom menino. Sempre. Um passo em falso, e todos saberiam."

Meu pensamento foi interrompido por uma sentença:

- Três dias... é só isso?

A voz do meu pai rachou no meio, e eu soube. Era som se um império demorando. Seu rosto estava pálido, as mãos trêmulas segurando o telefone como uma tábua de salvação. Parte de mim queria abraca-lo. Só que a outra a mais obscura, a que eu trancara no porão da minha mente e nem sabia onde estava a chave. Queria gritar.

- Viu só no que deu sua arrogância?

Em vez disso, fiquei parado por um momento.

- O que aconteceu, pai? - Minha voz saiu mais aguda- Você tá com cara de quem viu o diabo.Que história é essa de "três dias"?

Ele respirou fundo, aquela tomada de ar que faz o peito queimar. Observei no seu rosto medo puro e cru, junto com a vergonha. As mãos se contorciam na barra da camisa, como se quisesse estrangular alguém.

- O Albuquerque... já começou agir.

- A voz saiu quebrada - O banco quer o pagamento total da dívida. Temos três dias. Senão, tomam até a casa.

Um gelo desceu minha espinha e se alojou no estômago. Meu coração fez os cálculos antes do cérebro:setenta e duas horas. Era o mesmo tempo que um condenado no corredor da morte tinha para esgotar seus recursos. Eu sabia que aquela promessa viria .Mas ouvir as palavras em voz alta foi como levar chute nas bolas.

- Puta que pariu! Mas que porra...

O palavriado explodiu da minha boca antes que eu pudesse parar. Como se salva um império que levou anos para ser conhecido em míseros três dias? Qual era formula secreta para provar que ainda éramos alguém nesta cidade?

— Não começa, Leo — Ele virou de costas, mas eu já tinha visto no seus olhos. O fracasso... Nas mãos trémulas, que finalmente entedeu o preso da arrogância.

Nos dois dias que se seguiram, meu pai virou um morto-vivo. Entrando e saía de casa como um zumbi. A cada retorno, parecia se decompor um pouco mais. Seus olhos, antes inflados de arrogância, agora só refletiam portas batidas e telefonemas ignorados. Ninguém em Vale Azul mexeria um dedo para ajudar um Montenegro. Afinal, quem seria o louco de se arriscar contra Otávio Albuquerque?

Na manhã de segunda-feira, me arrastei até a cozinha. Ele estava lá, quase espectral, mexendo uma xícara de café frio como se a solução dos problemas estivesse afundada no fundo da xícara. O rosto, marcado por noites sem dormir, parecia ter envelhecido uma década em quarenta e oito horas.

Meu pai sempre foi maior que a vida ou, pelo menos, achava que era. Agora, encolhido naquela cadeira, era só um velho derrotado. E eu? Um covarde parado na porta, engolindo palavras que não serviam pra porra nenhuma.

"Vamos resolver isso juntos" que merda de frase vazia.

Ele nem notou minha presença.

Peguei minha mochila e vazei.O metrô, como sempre, estava lotado. Mas eu não via ninguém. No colégio, as vozes dos professores viraram ruído branco. Matemática, literatura, geografia... toda aquela merda parecia ainda mais inútil diante do relógio que batia dentro do meu crânio:

O banco. O prazo. A casa. O fim.

Enquanto o professor de História discursava sobre revoluções do passado, tudo que eu pensava era:em menos de vinte e quatro horas, ou a gente dava um jeito... ou estávamos fodidos.

Só voltei à realidade quando levei um tranco no ombro do Ruan .O jeito desengonçado dele de dizer "Ei, você tá mofando no mundo da lua?"

— E aí, monstro? Tá parecendo zumbi pós-apocalipse. Que que tá pegando?

Respirei fundo, tentando colar os cacos da minha sanidade.

— O banco... — a palavra grudou na garganta como pigarro de ressaca. — O prazo termina amanhã.

Ruan assobiou baixo.O rosto fechou naquele misto de pena e alarme que eu conhecia bem.

— Poxa, cara, que tenso... É o seu velho?

Chutei uma pedra na calçada com força o suficiente pra doer no pé.Ele merecia?Merecia pra caralho. Mas...

— É meu pai, porra. — A voz saiu esganiçada. — Ele tá péssimo. Mas se a casa for pro caralho, eu vou junto... E com o Albuquerque por trás, nem vaga de gari consigo.

Ruan ficou quieto por um instante.

Até ele, que nunca levava nada a sério, entendeu o tamanho da merda. Otávio não era só um inimigo era um decreto de exílio assinado em notas promissórias de ódio.

— Tem um cara no centro... — ele começou, cauteloso. — Sabe, faz uns trabalhos... não oficiais. Talvez...

— Não. — Cortei seco. A última coisa que precisava era mais dívidas ou virar traficante juvenil. Olhei pra ele, exausto. — Você sabe que nenhum trampo pagaria trezentos mil em vinte e quatro horas, né, Ruan?

— É, cara... você tem razão. — Ele mordeu os lábios, os dedos tamborilando na mochila.

Saco. Era isso. A única pessoa que me tratava como gente agora me olhava como se eu fosse um coitado. Até amizade tinha virado caridade.

Andamos meio quarteirão em um silêncio mortal, até que algo ou melhor, alguém fisgou meu olhar.

No estacionamento, encostado num Porsche Panamera preto aquele monstro de aço polido que valia mais do que três casas. Meu coração deu um salto contra as costelas antes mesmo do meu cérebro processar: era ele.

Nem pensei. Saí correndo como um maluco, ouvindo o Ruan gritar atrás de mim:

— Leo, que caralho você tá fazendo!?

O mundo entrou em câmera lenta. Meus tênis surrados batiam no asfalto, a mochila pesada balançando nas costas. O gosto metálico na boca denunciava que eu tinha mordido a bochecha sem nem perceber.

— ESPERA...!

Ele se virou lentamente. A mão na maçaneta do Porsche, com a calma de quem nunca precisou se apressar para nada. Até a droga do moletom cinza-claro dele parecia um insulto: era claramente de boutique cara, fino até no corte. Meus olhos queimaram quando vi seus tênis brancos imaculados. Meus All Stars rachados na lateral pareciam gritar:

“Olha a diferença, seu trouxa.”

— Talvez você não se lembre de mim — engoli o ar em pedaços, a voz saindo em farrapos — mas meu pai foi o idiota que insultou sua mãe. Pelo amor de Deus, nos deixa em paz.

Ele ergueu as sobrancelhas com uma calma que irritava. Me olhava como quem observa um pedinte no drive-thru de um restaurante fino.

— Que me lembro, seu pai já foi perdoado — a voz dele era lisa, sem culpa, sem pressa. — Não tô metido no que quer que esteja acontecendo.

Aquilo me pegou de surpresa. Mas ao olhar para sua expressã, percebi: ele realmente parecia não saber da pressão que Otávio tava jogando nas nossas costas. Expliquei, entre frases entrecortadas, sobre o banco, o prazo, a casa. Vi o momento exato em que ele entendeu. Os olhos estreitaram. A mão pousou no queixo.

E quando soltou aquele suspiro... eu soube. Otávio tinha transformado nossas vidas num jogo.E esse cara aqui? Era a peça-chave.

— É... bem o estilo dele — o sorriso que ele soltou foi quase de pena. — Bora. Você precisa falar com Otávio pessoalmente.

A maneira como se virou para abrir a porta do carro fez meu estômago embrulhar. Era surreal. Eu estava prestes a entrar num veículo que valia milhões... só pra implorar por misericórdia a um homem que já tinha decidido a nossa ruína.

— E aí, como você se chama, garoto? — perguntou como se eu fosse um cachorro de rua que ele tivesse resolvido adotar por pena.

Engoli meu orgulho junto com a saliva ácida que se acumulava na boca.

— Leonardo Montenegro. Mas... pode me chamar de Leo. E você? — Porque, claro, o príncipe herdeiro não se apresenta sozinho, né?

— Matheus Cavalcante. — O nome saiu como se fosse óbvio que eu deveria reconhecê-lo. — Otávio tá no Hotel Mayson Royal...

— Aquele antro de ostentação que ele chama de "hotelzinho"? — soltei antes de conseguir filtrar a ironia. — Um dos trinta que ele tem pelo país, né?

Matheus deu um meio-sorriso, enquanto ajustava o volante.

— Você sabe demais pra um garoto do ensino médio. — E o tom deixava claro: perigoso. — Mas sim, é o menor deles. Otávio gosta da cobertura. Discreta.

"Discreta como um tiro na nuca," pensei.

Virei o rosto pra janela, fingindo interesse nos prédios que passavam, enquanto minhas mãos suadas entregavam o pânico. Cada curva do carro era um passo rumo ao abismo. E eu? Eu me jogava. Voluntário. De olhos abertos.

Quando finalmente avistei o hotel, percebi: não era um prédio. Era um monumento ao poder. Vidros fumê refletindo um céu que não pertencia a pessoas como eu, concreto armado disfarçado de fortaleza.

Meu queixo quase doeu de tanto cair não de admiração, mas de puro choque. Era como descobrir que certos lugares realmente existiam fora da novela das nove.

Matheus estacionou o Porsche como se o carro fosse uma extensão do próprio corpo. Nem precisou olhar. Já estava no elevador quando eu mal tinha fechado a porta. Corri atrás dele como um cachorrinho atrás do dono, sentindo o suor escorrer entre as omoplatas.

— Desculpa aí. O Otávio prefere discrição. Então, nada de sair espalhando esse encontro — disse enquanto digitava um código no painel. O tom era um aviso. Não um pedido.

— Guardo segredos melhor que sua secretária — retruquei, a língua solta tentando esconder o medo.

O elevador era uma caixa de aço polido que refletia cada falha minha em ultra-HD. Meus tênis, já surrados, pareciam implorar por aposentadoria contra o brilho absurdo do piso. Meus olhos aqueles mesmos que minha mãe, quando viva, dizia serem “bonitos” agora eram dois poços fundos de olheiras roxas. Até meu cabelo loiro, minha única vaidade, estava espetado, parecendo que levei um choque. E talvez tivesse levado.

E o perfume. A droga do perfume no ar. Floral, caro, desses que deveriam acalmar. Mas só piorava a náusea.

"Lavanda de burguês", pensei.

Quando as portas se fecharam, o ar pareceu sumir. Não era claustrofobia. Era o peso de entrar, de livre e espontânea vontade, na jaula do leão.

A mão de Matheus pousou no meu ombro.

— Relaxa. Vou fazer o Otávio te ouvir.

"Claro, moleza pra você, Matheus," pensei, engolindo o ácido que subia pela garganta. "Teu nome não tá na lista de inadimplentes do Banco Central."

O elevador pingou os andares como um contador regressivo 8... 9... 10... Cada número um passo a menos até o inevitável.

Quando as portas se abriram, foi como entrar na barriga do monstro. Silêncio de hotel cinco estrelas. Aquele tipo de silêncio que custa caro e pesa. O corredor parecia mais longo do que deveria, e a porta no fim era uma muralha de madeira nobre, esculpida com detalhes que sussurravam: até o batente vale mais que sua vida.

Matheus entrou sem hesitar. Eu segui, com a dignidade de um mendigo na sarjeta.

— Otávio! — a voz dele cortou o ar, ecoando nas paredes como se anunciasse um rei.

A suíte foi um soco no estômago.

Sofás brancos que pareciam nunca ter sentido um corpo humano. Tapete tão fofo que engoliu meus tênis como areia movediça. O ar cheirava a notas novas. Tinha um quadro na parede... Fiz o cálculo rápido: aquilo ali valia mais que meu fígado no mercado negro. E talvez meu rim de brinde.

E então ele apareceu. Otávio. Descalço. De pijama de seda, a peça caía sobre o corpo como uma bandeira de vitória. Ele esfregava os olhos com uma lentidão quase ofensiva. Como se o simples ato de acordar já fosse um sacrifício digno de aplausos.

— Amor, que gritaria é essa?

Matheus apontou pra mim como quem exibe um cachorro abandonado:

— Olha quem veio te visitar.

Otávio piscou devagar. Os lábios se curvaram num quase-sorriso que não alcançou os olhos.

— Leonardo Montenegro. — Meu nome saiu da boca dele como uma acusação — Que honra... inesperada.

Ele sabia. Claro que sabia. Cada centímetro daquele rosto perfeito gritava:

“Eu destruí seu pai. E você veio pedir bis?”

Matheus cruzou os braços, o olhar pesado como um juiz que já condenou o réu antes do julgamento.

— Vamos fingir que não sei a resposta. Você tá mesmo acabando com os Montenegros? Tomando até a casa deles? Poxa vida, amor...

— Sim, Matheus.

A palavra soou simples. Mas cortou o ar como faca. Meu pulso começou a doer. Só então percebi que estava cravando as unhas na própria pele.

— Senhor Albuquerque — minha voz saiu mais firme do que eu sentia — meu pai já pagou pelo que fez. Por favor... ele tá... ele tá se matando.

Otávio me olhou com aquele sorriso. Não um sorriso gentil. Um sorriso sádico. De vilão. De filme de terror.

— Claro, garoto, está perdoado.

O alívio foi um banho quente nas minhas costas. Eu ia agradecer, mas então ele ergueu um dedo.

— Mas tem um detalhe. Acho que você pode me ajudar com algo... em troca.

O estômago deu um nó. O sorriso dele nunca significava coisa boa.

— Qualquer coisa — menti. A boca tava tão seca que parecia engolir areia.

Otávio deu dois passos calculados, ficando a um palmo de mim. O cheiro amadeirado dele me atingiu como uma droga. Enjoativa. Viciante. Perigosa.

— Você se forma este ano, né?

Engoli seco.

— Sim.

— Perfeito. — Os olhos brilharam. Não de alegria, mas de expectativa. Como um gato olhando um rato aleijado. — Então você vai passar dois anos na Faculdade Rainbow.

Meu mundo desabou. A visão escureceu. Rainbow. A universidade que meu pai chama de “antro de viadagem” entre risos escarnecedores no jantar.

— O quê?

Matheus fez um movimento quase imperceptível, como se quisesse interferir. Mas Otávio nem olhou.

— É simples, Montenegro. Dois anos lá, e seu velho fica livre. — Pausa. — Ou se recusa... e vejo vocês na rua amanhã antes do almoço.

Meu corpo todo tremia. Isso significava humilhação. Desespero. Talvez até sangue o meu escorrendo de um nariz quebrado por mãos que tinham motivo de sobra para me odiar.

— Tá... — A palavra saiu como um cuspe.

— Mas você vai parar de perseguir meu pai agora?

Otávio riu. O som ecoou pela sala como o badalar de um sino.

— Ótimo! Vou preparar seus documentos. Ah, e Leo... — ele se inclinou, o hálito quente no meu ouvido — é melhor ficar nas sombras.

Matheus desviou o olhar. Sai do apartamento assim assinei o contrato sem dizer nada. Minhas pernas me levaram sozinhas. Como se já soubessem o caminho da derrota.

Parei atrás de uma árvore, um pouco distante do hotel, e vomitei. Minha mente era um turbilhão de números. Dois anos. Vinte e quatro meses. Setecentos e trinta dias naquele inferno rosa.

E meu pai? Nunca entenderia. Nem eu, se tentasse explicar com todas as letras que a culpa era dele. Daquela tarde estúpida em que resolveu desafiar Otávio Albuquerque num restaurante.

Limpei a boca com a manga da camisa. O contrato que assinei em meio segundo pesava no meu bolso como um tijolo. Faculdade Rainbow.

Onde garotos como eu com histórico de piadas homofóbicas no colégio, e com um pai que soltava um "viadagem" no café da manhã só por ver alguém segurar uma xícara com o dedo esticado iam direto pra lista de caça.

Otávio não queria só a minha humilhação. Queria me jogar no fogo e assistir meu pai me odiar por sobreviver.

E, pela primeira vez, eu entendi o que significa ser um peão: Você só descobre que tá no jogo quando não tem mais como sair.

Queridos leitores,

Gostaria de compartilhar o significado de dois elementos importantes que aparecem neste capítulo:

LGBTQIA+: Essa sigla representa diferentes orientações sexuais e identidades de gênero:

L: Lésbicas

G: Gays

B: Bissexuais

T: Transgêneros

Q: Queer ou Questionando

I: Intersexuais

A + abrange outras identidades e orientações, como pansexuais e assexuais, promovendo inclusão e diversidade.

Rainbow (Arco-Íris): Um símbolo universal da diversidade, esperança e inclusão. Ele representa a pluralidade de identidades e a beleza de viver em um mundo cheio de cores e diferenças.

Espero que esses significados tornem a leitura ainda mais especial e inspiradora!

Com carinho,Deinha.

O preço do orgulho.

...Léo ...

Contar para meu pai sobre o acordo seria como enfiar a mão no fogo e torcer para sair sem cicatrizes. Adiei o máximo que consegui rezando para que Otávio cumprisse sua parte antes que eu tivesse que me explicar.

Na quarta-feira à noite, meu pai chegou em casa com um brilho de satisfação nos olhos, aquele de quando achava que tinha vencido.

— Leo, você não vai acreditar! — o canto da boca formando quase um sorriso. — Otávio recuou! O banco não só renovou o empréstimo como também injetou mais capital. Deve ter finalmente entendido que estava indo longe demais. Só precisei colocar aquela escória no seu lugar.

Meus dedos afundaram no celular, as pontas ficando brancas de pressão. A tela escureceu, mas eu nem piscava.

O ar dos meus pulmões sumiu como se alguém tivesse dado um soco no meu peito. O relógio da parede martelava nos meus ouvidos tique-taque, tique-taque, contando os segundos da minha ruína.

Como sete dias tinham o poder de transformar minha vida de cabeça pra baixo?

— Claro que ele parou, pai.— Minha voz saiu áspera. — Fiz um acordo com Otávio. Ou você achou mesmo que foi por bondade? Que ele ia esquecer só porque você pediu bonitinho?

Vi o sorriso dele morrer em câmera lenta. Os músculos do rosto travando um a um, como se alguém tivesse puxado o plugue.

— O quê? — Se arrepiou todo no sofá, as mãos se agarrando nos braços do móvel como se estivesse prestes a cair. — Quando foi isso? Que merda de acordo você fez, Leo? Fala logo que diabos Otávio te pediu!

— Segunda-feira. Falei com Otávio.

Ele pediu... na verdade, fez uma exigência, que eu estudasse na Rainbow.

O rosto do meu pai passou de choque para nojo em meio segundo.

— O QUÊ? — Ele cuspiu o nome da faculdade como se fosse um palavrão. — Meu filho, no meio daqueles viados? Não, isso não vai acontecer!

— Já aconteceu. — Me levantei, sentindo o peso daquela casa, daquela vida, esmagando meus ombros. — Você acha que eu quero ir? Foi isso ou rua. Parabéns, pai. Sua boca grande me colocou numa jaula.

Ele tentou falar, mas eu já estava subindo as escadas. Seu silêncio era pior que qualquer grito.

Pela primeira vez, eu entendi o que ele sempre me ensinou sem palavras:

Orgulho custa caro. Mas a conta sempre vem para quem não pode pagar.

...Meses Depois....

O tempo escorreu entre meus dedos como areia fina o calendário aquele traidor de papel virou num piscar de olhos. Os documentos da faculdade agora repousavam na minha mesa,

carimbados e assinados. A formatura se próximava, trazendo o cheiro enjoativo de flores murchas e discursos vazios.

Me via reduzido a um espectro entre meus colegas. Enquanto eles riam e planejavam festas, eu só conseguia ouvir o som áspero da caneta arranhando o papel cada risco, cada letra torta era um pequeno grito abafado.

Na sala os sons chegavam amortecidos como se estivesse submerso: os murmúrios dos colegas transformados em zumbidos de abelhas, o impacto das palmas nas carteiras ecoando como disparos abafados, o farfalhar dos cadernos lembravam asas de morcego. É o pior? O chiado do giz no quadro negro arranhado meus nervos como unhas na lousa.

O calor era um animal sufocante,

que se enrolava em torno do meu pescoço. O ventilador agonizante no canto da sala girava suas pás sem entusiasmo seu sopro morno, inútil contra o abafamento.

Foi então que a voz do Ruan cortou o

nevoeiro, como um estalo de dedos no meio do vazio.

— Leo, acorda! Já é hora do intervalo.

Olhei para ele, meu amigo de infância. Sempre tão à vontade no seu próprio corpo. Cabelo despenteados, olhos escuros cheios de desafio.

— Vamos — Levantei-me, o seguindo com as mãos enfiadas no bolso.

O corredor do colégio era sempre um caos, portas batendo, mochilas colidindo contra os corpos apressados e risadas ecoando altas.

Na cantina, o cheiro de óleo queimado e frituras invadiu minhas narinas

o perfume clássico do desespero estudantil. Enquanto encarava as opções no balcão, Ruan já estava em modo caça, jogando seus olhares mais "interessantes" para Amanda, a ruiva da minha sala. Charmosa? Até era. O problema era ele fazer aquilo sabendo que estava ali, sozinho como um trouxa.

— Ah, não! — Agarrei seu braço com força suficiente pra deixar marca. — Você me arrastou para cá agora estou morrendo de fome. Segura a onda e come comigo antes que eu te enterre nessa geladeira de salgados.

Ele resmungou algo sobre "exageros", mas me seguiu. Pegou seu hambúrguer borrachudo e refrigerante gelado - o combo clássico do "não tenho paciência pra escolher". Quando as moedas caíram no caixa, o tilintar soou como um eco irônico: "Parabéns, Leo. Mais uma refeição sem graça na sua vida patética."

Mal nos sentamos e lá vinha ela. Amanda deslizou até nossa mesa com aquele sorriso de "acabei de assar pão de mel", empurrando um sanduíche embrulhado em papel alumínio na minha frente.

— Experimenta, Leo. Fiz especialmente.— O olhar dela passou por cima de Ruan como se ele fosse invisível.

Meu sanduíche da cantina de repente parecia ainda mais triste. Mas engoli o orgulho junto com a saliva.

— Valeu, mas tô de dieta. — Empurrei o pacote de volta, ignorando o cheiro delicioso que ameaçava minha resistência. — De repente o Ruan quer. Ele adora... peru.

Ruan quase cuspiu o refrigerante. Amanda franziu o nariz, mas recuperou rápido:

— Tudo bem. — O sorriso dela escorregou pra um tom mais afiado. — Mas se mudar de ideia, é só chamar. Só você.

E deixou o sanduíche na mesa antes de ir embora. Ruan olhou pra mim como se eu tivesse cuspido na Mona Lisa.

— Cara, você é um lixo humano.

— Eu? — Apontei pro sanduíche abandonado. — Pelo menos agora você tem chance. Vai lá, Romeo. Mostra que sabe agradecer.

Ele olhou pro sanduíche, depois pra Amanda se afastando, e finalmente pra mim. Com um suspiro que veio dos pés, pegou o troféu rejeitado e deu uma mordida teatral.

— Tá feliz? — Ele mastigou com raiva. — Agora eu sou o plano B do lanche dela.

— Melhor que ser o plano Z, né? — Dei de ombros, mordendo meu pão seco.

Ruan triturou o sanduíche como se estivesse mastigando meus ossos. Seus olhos escuros perfuravam minha alma enquanto engolia com dificuldade.

— Me explica uma coisa — cuspiu migalhas na mesa. — Como caralhos você consegue essa porra toda? Não é só as minas, não. Até os caras...

Meus dedos contraíram, esmagando o pão.

— Que porra você tá insinuando? — minha voz saiu dois tons mais aguda.

Ele soltou aquele sorriso de cachorro sabendo onde enterrou o osso.

— André. — O nome ecoou como um tiro. — O cara te viu UMA vez em campo e declarou amor eterno. Isso não é normal, Leo.

O suco de maracujá virou ácido no meu estômago. A memória invadiu meus sentidos como um flashback maldito: o cheiro de grama, o sol queimando minha nuca, e André - aquele tanque humano com olhos de filhote caindo de joelhos como um cavaleiro medieval diante de mim.

— EU TE AMO!

A voz dele ainda ecoava nos meus pesadelos.

— Foi uma piada de mau gosto — menti, esfregando a palma suada na calça.

Ruan soltou um riso seco.

— Piada? O maluco te mandou flores depois, Leo. FLORES. Com cartão e tudo.

Meu corpo inteiro queimou. As flores. Aquela merda rosa choque que meu pai jogou no lixo com um "que nojo" que doía até hoje.

— Ele... se confundiu.

Ruan inclinou-se pra frente, os cotovelos na mesa.

— Confundiu o quê, exatamente? — o sussurro dele era pior que um grito. — Que você é um baita de um gostoso? Porque isso aí até cego vê.

Meu pulso começou a doer. Só então percebi que estava segurando o garfo com força.

— Não sou — gritei baixo. — Não sou isso que tá na tua cabeça.

Mas a imagem não saía: eu na Rainbow, cercado por dezenas de Andrés, todos vendo através da farsa. Todos sabendo o que eu negava até para mim mesmo.

Ruan estudou meu rosto como um detetive vendo pista de um crime.

— Tá. — Ele ergueu as mãos em rendição falsa. — Só tava dizendo que, se um dia você quiser experimentar... — um sorriso malicioso — sei uns caras que fariam fila.

Joguei meu lanche na bandeja com um baque.

— Acabou o intervalo. — Levantei tão rápido que a cadeira caiu pra trás.

Mas a voz do meu pai ecoou mais alto que o barulho do metal no chão: "Homem de verdade não dá mole para essas coisas, Leonardo."

Era mais fácil acreditar nisso. Mais seguro. Porque se encarasse a verdade que talvez, só talvez, parte de mim tinha gostado da atenção teria que encarar também que meu pai estava errado. E isso... isso doía mais que qualquer insulto.

Claro que o infeliz veio atrás. Às vezes me pergunto se o Ruan nasceu apenas para ser o anjo da guarda e o demônio do meu ombro ao mesmo tempo. Ele me alcançou na porta da sala, justo quando o sinal estava prestes a tocar, com aquele sorriso de quem sabe que está cavando minha cova.

— Até a Lara, aquela lésbica radical do segundo ano, já se declarou pra você — ele sussurrou, como se estivesse contando um segredo suculento. — Isso deveria estar no Guinness, Leo. Você quebra todas as barreiras sexuais sem nem tentar.

Meu rosto queimou como se tivesse levado um tapa.

— Porra, Ruan! — gritei baixo, os dentes cerrados. — Você tá com algum tipo de missão para me humilhar hoje?

Ele apenas encolheu os ombros, aquele sorriso ainda estampado no rosto.

— Só tô dizendo que você é tipo um ímã humano. Atrai todo mundo, independente de gênero. — Seus olhos escuros brilharam maliciosamente. — A propósito, ainda não me disse: qual faculdade vai encantar com sua presença no próximo ano?

Meu estômago deu um salto mortal. A palavra Rainbow queimava minha língua como veneno. Eu podia quase sentir o cheiro daquela porra de campus rosa, ouvir os cochichos que me seguiriam assim que descobrissem que eu era um impostor.

— Ah, ainda tô avaliando as opções — menti, limpando as mãos suadas nas calças. — Tem tempo ainda.

Ruan não comprou. Ele se inclinou pra frente, seus olhos negros perfurando minha máscara como raios-X.

— Leonardo Montenegro — ele disse, sério pela primeira vez no dia. — Isso é seu futuro. Você vai realmente deixar seu pai escolher por você?

A garganta fechou. A ironia era tão amarga que quase ri. Meu pai já tinha escolhido, sim quando decidiu mexer com Otávio Albuquerque. E agora eu pagava o preço, vestindo uma identidade falsa como um traje de pele que nunca me encaixaria direito.

Antes que pudesse formular outra mentira patética, o sinal salvador tocou. O professor entrou, e Ruan foi obrigado a voltar pra sua sala. Nunca na vida tinha ficado tão feliz em ter aula de matemática.

Enquanto me sentava, minhas mãos tremiam sob a mesa. Dois anos. Vinte e quatro meses fingindo ser quem não era. Dois invernos evitando banheiros coletivos, dois verões de mentiras cuidadosamente construídas.

E o pior? Saber que, no final, quando tudo acabasse, talvez nem soubesse mais quem era o verdadeiro Leonardo Montenegro.

Lógico que infeliz me seguiu.Quem precisa de inimigos quando se tem o Ruan como amigo? Já na porta da minha sala, antes do sinal bater para continuar com as torturas das aulas de fim de ano, ele diz:

— Até a lésbica do segundo ano, a Lara, quis te namorar. Isso é prova mais que suficiente de quanto você é mortal e lindo.

Olhei para ele, indignado.

— Você tá insuportável hoje, sabia?

— Ah, só estava lembrando quanto meu amigo é incrível. A propósito, você não me respondeu: para qual faculdade vai quando o ano acabar?

Ele entra na minha sala e se senta na cadeira à frente. Novamente, Ruan me leva ao lugar escuro e sombrio do meu acordo com Otávio. Devo estar suando frio, mas nem em um milhão de anos falaria. Já é humilhante o suficiente que, no próximo ano, tenha que fingir ser gay para estudar em um lugar onde ser hétero é motivo de xingamento.

Respondi, fingindo não estar morto de medo de ser descoberto:

— Ah, ainda tô pensando. Não estou muito certo ainda, mas acho que ainda tenho um tempinho, né?

Ele me encara com seus grandes olhos ônix, como se tentasse ler meus pensamentos.

— Que diabos, Leonardo, isso e sobre seu futuro, cara!Não dá pra ficar enrolado assim. Ou vai deixar seu pai decidir por você?

Balanço a cabeça, e a verdade é que, de certa forma, meu pai decidiu. E Otávio deu a martelada final na minha cabeça, minha sentença de morte.

Mas antes de formular qualquer mentira deslavada, o sinal toca, e o professor entra, fazendo Ruan sair. Nunca me senti tão feliz por ter aula quanto naquele momento. Além de não querer contar sobre a faculdade Rainbow, não podia. Fazia parte do acordo mentir para todos os meus amigos. Essa era a minha vida agora, e seria assim por longos anos.

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