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Superando Barreiras

A cova das Palavras.

...Leo....

O BMW preto estacionava sempre no mesmo lugar, exatamente três metros após o portão azul-enferrujado do colégio. Eu contava os passos até ele — sete desde a saída, sete respirações para engolir minha liberdade antes de entrar naquela jaula de couro e aço.

Dessa vez, porém, parei no quinto. Meu pai não olhava para mim. Seu perfil cortava o espaço como uma faca cravada no banco do motorista, os ombros tão rígidos que pareciam  lascar. Até a veia temporal pulsava, marcando o ritmo do ódio que eu conhecia tão bem. Segui seu olhar até o portão, e então vi.

Stevam e Lucas, saindo de mãos dadas, despreocupados como só os verdadeiramente livres podem ser.

No último ano do colegial, meu pai ainda habitava meu corpo como um parasita, sugando meu ar, meu espaço, meu direito de ser. Enquanto caminhava em direção ao carro, o mundo insitia em sua rotina quase criminosa: um grupo de meninas ria de algum meme, dois garotos dividiam um salgadinho, a vida seguia como se a minha não estivesse sendo compacta a cada passo.

Na quarta série, aprendi o que acontecia com as “coisas diferentes”, como ele costumava chamar.

— O professor de artes é um viado no armário — ele cuspiu uma noite, esmagando o cigarro no pires como se extinguisse o próprio homem.

Eu chorava até vomitar — não pelo professor, mas pelo algoz que nego até a morte ter reconhecido no espelho do banheiro na manhã seguinte.

Agora, quando sua voz cortou ar.

— Por que sua escola aceita essas criaturas?— senti o gosto de bile subindo novamente. Seu ódio era uma animal domésticado: sabia exatamente onde morder.

Por que ele é assim? A pergunta girava minha cabeça feito bala perdida. Já conhecera suas respostas  de cor:

— Eles não são normais.

Como se "normal" fosse sinônimo de humano e o resto descartável. Como se meus amigos o Stevam e o Lucas que colecionavam gibis e tinham medo da prova de matemática fossem criaturas de outro mundo só por serem um casal. Queria esmurrar aquela certeza podre até sobrar apenas carne crua e vergonha.

Mas eu? Era apenas um rato coverde que engolia o próprio chão quando ele pisava mais forte.

Assim que entrei no carro, ele ganhou vida com um rosnado do motor, meu pai sequer dignando-me um olhar. O couro do assento rangeu sob meu peso, enquanto atirava a mochila ao lado, como quem descarta um lastro inútil.

— Para onde estamos indo, pai? — minha voz soou mais áspera do que eu pretendia.

Os dedos dele se apertaram no volante, as unhas deixando marcas quase imperceptíveis no couro.

— Vamos nos encontrar com o Otávio Albuquerque.

Por um instante, o ar faltou. O nome ecoou no pequeno espaço como uma profanação.

— O bilionário? Aquele da revista..

— Da Riviera — ele cortou, como se eu tivesse cometido uma insolência por comentar o óbvio.

Arqueei as sobrancelhas. A Montenegro & Filhos mal chegava aos trinta funcionários; era uma gota no oceano para um homem como Albuquerque.

— Uau, você conseguiu uma reunião com ele?

Ele fez aquele movimento de cabeça que eu conhecia bem — meio balanço, meio tremor — como se estivesse sacudindo um inseto invisível da nuca.

— Ele não sabe que vamos aparecer — disse, enquanto o carro engolia a avenida. — Um contato que tenho no banco vazou esse almoço.

Era insanidade. A pura e crua espécie de loucura que só o desespero consegue vestir como lógica. Invadir o horário de almoço de Otávio Albuquerque como se fôssemos convidados? Ele era um homem que movimentava economias com um aceno de mão — e achar que receberia dois desconhecidos vindos do nada merecia, com folga, o prêmio de pior decisão possível.

O sol bateu em seu rosto através do para-brisa, revelando o suor que escorria pela têmpora como uma confissão involuntária. Aquele brilho úmido dizia tudo o que suas palavras jamais admitiriam: não havia escolha.

Estávamos prestes a invadir o território de um predador — sem armas, sem estratégias, apenas com um punhado de desespero e as mãos vazias. As minhas, tremendo. As dele, cravadas como garras no volante. A empresa afundava, a dívida crescia, e, pela primeira vez na vida, ele não tinha inimigos para culpar — só o próprio reflexo no retrovisor.

"Isso era insanidade", pensei, virando o rosto para a janela. Serra Azul desfilava em silêncio através dela: casinhas baixas, praça vazia, o mesmo poste quebrado desde minha infância. Mantive a boca fechada por três razões:

Ele nunca me ouviria.

O empresário aqui era ele.

Talvez... só talvez...

As revistas diziam que Otávio Albuquerque investia em negócios afundados em dívidas, mas com “alma de sobrevivente”. Nos tempos do meu avô, homens como ele davam chances. Já nos tempos atuais, só davam golpes.

O carro acelerou numa curva. Fechei os olhos, imaginando o bilionário vendo o que meu pai não conseguia: que aquela empresa moribunda ainda tinha os mesmos ossos bons que a sustentaram por três gerações.

Chegamos ao Metrô Palace. Ele se erguia como uma miragem no asfalto — colunas de mármore sugavam a luz do meio-dia, jardins geometricamente podados, carros que valiam mais que nossa casa.

Nosso BMW de 2012 estacionou entre duas Aston Martin, como um lobo velho em meio a panteras.

Mal descemos do carro, o segurança surgiu como se tivesse se materializado do ar. Seus dois metros de altura me forçaram a arquear o pescoço, revelando um nó de gravata tão perfeito que doía os olhos. Seu perfume — madeira nobre — cheirava a contas bancárias suíças.

— O evento é privado, senhores. — Sua voz tinha o som de um cofre sendo aberto.

Meu pai cerrou os punhos até os nós dos dedos empalidecerem. Veias saltavam em seu pescoço como cordas de um violino sob tensão extrema.

— Escuta bem... preciso ver o Albuquerque. Se eu perder essa oportunidade... — Ele fez uma pausa teatral que chamava de "efeito psicológico", como um juiz prestes a soltar uma sentença. — Você se arrependerá amargamente deste erro.

O homem sequer pestanejou. Inclinou a cabeça num movimento calculado, quase elegante, e sua voz deslizou como uma lâmina entre as costelas.

— Senhor, meu único arrependimento seria permitir sua entrada.

Com um gesto mínimo de dois dedos erguidos, como quem acena para um criado as portas de vidro fosco se abriram em câmera lenta, como cortinas de teatro, para a entrada dos autores principais.

Primeiro, a deusa trans entrou. Uma visão em vermelho-vampiro que teria feito Drácula tropeçar na própria capa. O vestido mais segunda pele do que tecido escorria por suas curvas como sangue fresco escorrendo no vidro. Seus saltos agulha cravavam o mármore com precisão cirúrgica. A barba, aparada com a exatidão de um ourives, emoldurava lábios pintados de um escarlate tão vivo que parecia zombar abertamente de qualquer conceito binário.

Seu acompanhante era um estudo em contradições. Camisa branca imaculada, jeans que custavam mais que nosso carro, e uma postura que transformava informalidade em declaração para os oligarcas que usavam ternos brancos em ilhas privadas.

Meu reflexo no vidro fosco me encarou: um fantasma pálido de boca entreaberta. Eu, que antes mesmo de aprender amarrar os sapatos aprendi abaixava os olhos, agora os mantinha fixos como um menino diante de sua primeira maravilha.

Foi um segundo de pura admiração. Um instante de traição involuntária. Uma náusea subiu pela minha garganta, pois meu pai já tinha capturado minha expressão.

— Pai! — o sussurro saiu mais como um apelo agonizante do que advertência. Estávamos ali para mendigar, e escândalos não constavam no menu de homens como Otávio Albuquerque. — Vamos embora! Não compensa.

— Você não vê, Leonardo? — Sua voz cortou o ar como arame farpado, crescendo em volume calculado. — Ele deixa essas aberrações desfilarem como reis, enquanto homens de bem são barrados na porta.

O silêncio caiu em ondas concêntricas. Conversas morreram no meio das frases. Garçons congelaram com as bandejas suspensas. Até os pássaros pareceram interromper seu canto. Senti a vergonha me consumir num incêndio lento, das clavículas até as têmporas — cada centímetro de pele queimando sob os olhares curiosos.

O homem de roupa casual virou-se com a elegância de um tigre entediado.

— Repita — duas sílabas que pesavam mais do que todo o discurso do meu pai.

— Senhor, me desculpe, meu pai não quis... — minhas mãos se fecharam sobre o braço paterno num gesto inútil.

Ele sacudiu meu toque como quem espanta mosca da fritura.

— Eu quis dizer cada palavra. Merecem todos a fogueira! — cuspiu as palavras, cada sílaba afiada com um ódio temperado por anos.

O soco chegou como vírgula final num argumento falho. Vi meu pai aquele colosso doméstico dobrar-se como um boneco de ventríloquo abandonado. Seu corpo atingiu a lataria do BMW com um baque metálico, o lábio inferior explodindo em vermelho vivo, que ironicamente combinava com o vestido da divindade que ele insultara.

Ao ajudá-lo a levantar, minhas mãos tremiam. Não de medo mas de uma revelação íntima. Naquele asfalto impiedoso, eu finalmente via ele não como o pai da minha infância, mas como um cachorro velho, espumando, mordendo as rodas do mundo que insistia em girar sem seu consentimento.

— Você cavou a própria cova. — sussurrei ao vento, minhas mãos trêmulas sustentando seu corpo cambaleante.

O homem de roupa casual nos observava com a frieza de um cirurgião avaliando um tumor. Seu braço protegia a deusa trans como se aquela fosse a única posição possível no mundo.

— Ofenda-me à vontade. Mas ofender minha mãe... — seus dedos se fecharam levemente no ombro dela — isso é inaceitável.

Meu pai ergueu o queixo, o orgulho mantendo-o em pé melhor que qualquer equilíbrio.

— Já chega, pai! — gritei, sabendo que minhas palavras eram tão inúteis quanto um guarda-chuva de papel.

— Quem diabos você pensa que é... pra me bater? — meu pai cuspiu sangue e arrogância no asfalto. — Você por acaso sabe quem eu sou?

— Não me importo com seu nome ou sua pretensão — o homem ajustou o punho da camisa com uma calma letal — mas, se voltar a insultá-la, transformarei essa sua cara num borrão.

O sorriso do meu pai escancarou-se, mostrando dentes manchados de sangue.

— Tô morrendo de medo, garotinho... Tá se achando tanto... Quando Otávio Albuquerque aparecer, vamos ver se mantém essa banca.

O nome ecoou. Vi o corpo do homem reagir antes mesmo do rosto: uma leve tensão nos ombros, o pescoço esticando meio centímetro. Não era medo — era reconhecimento íntimo.

Foi então que uma voz grave cortou o silêncio.

— Estou aqui. E vi tudo.

Me virei.

Otávio Albuquerque emergia das sombras do restaurante como um fantasma convocado por uma dívida antiga. Meu Deus... ele estava ali o tempo todo?

As revistas que eu colecionava não mentiram, mas falharam em capturar o magnetismo daquele homem.

Seus olhos âmbar-escuros escaneavam a cena com precisão cirúrgica. O lábio sangrando do meu pai. Minhas mãos trêmulas em seu ombro. Os dois personagens destratados, imóveis como estátuas de museu.

A polo branca caía sobre seu corpo com a perfeição arquitetônica de um edifício de I. M. Pei. Cada dobra estava no lugar exato. Os jeans cáqui, levemente amarrotados nos joelhos, eram sua única concessão à casualidade.

Mas o que me fez engolir em seco foram os tênis. Simples, brancos, silenciosos... E custavam mais do que seis meses da faculdade que eu ainda nem tinha começado.

Meu pai endireitou a postura com esforço visível.

— Excelente timing, senhor Albuquerque. Sou Alan Montenegro. Talvez o senhor possa explicar por que seus convidados acham que podem agredir homens de bem?

Engoli seco. Mesmo derrotado, ele insistia em cavar mais fundo. Minhas palavras saíram num sussurro ácido:

— Baita exemplo que você tá dando, pai...

Ele girou na minha direção, os olhos injetados de um ódio que agora se dividia entre quem o ofendera... e eu.

— Leonardo...

Meu nome saiu como ameaça embrulhada em ácido. Conhecia aquele tom há anos era o pré-requisito para todas as surras que levei depois dos doze. Mas desta vez, algo no meu olhar deve ter traído a revolta silenciosa. Porque ele hesitou.

Por uma fração de segundo, vi a dúvida cruzar seu rosto como uma sombra. Foi o suficiente. Seu braço se ergueu num gesto brusco. Virei o rosto de lado, já esperando o pior. Vi de relance o homem de roupa casual se tensionar parecendo pronto para intervir. Mas o que veio foi apenas:

— Depois conversamos.

A frase caiu como um tijolo. Era a primeira vez em dez anos que meu pai não terminava uma sentença com "cala a boca". E aquele pequeno silêncio, diante da presença do milionário, gritava: ele precisava fingir ser civilizado e estava falhando miseravelmente.

Otávio permaneceu imóvel por um longo tempo, o rosto um enigma sob a luz do sol.

Quando finalmente se moveu, foi com a precisão de um predador.

Cada passo em direção ao homem de roupa casual carregava a força de uma revolução.

Agarrei o braço do meu pai com força suficiente pra deixar marcas.

— Vamos embora. Agora.

Seus músculos enrijeceram sob meu toque, pulsando com a velha teimosia, mesmo ferido.

— Você não tá vendo, Leonardo? — seu sussurro era um misto de desespero e repulsa — Essa é a minha única chance de...

Mas o resto morreu nos lábios.

Num movimento fluido, que parecia desafiar as leis da física, Otávio envolveu a cintura do homem de roupa casual e o puxou para si.

O beijo que se seguiu não foi performático. Foi uma declaração de guerra em linguagem corporal. Os lábios se encontraram com intimidade crua — e a cada segundo, demoliam séculos de preconceito.

Meu pai ficou em choque. Seu pomo de Adão subia e descia em espasmos. As mãos se contraíram nas costuras da calça.

O mundo parecia em câmera lenta.

O beijo ainda ardia no ar.

A humilhação escorria dos poros dele.

Tudo girava na minha mente.

Então, a voz de Otávio cortou o silêncio, doce como mel envenenado:

— Desculpa o atraso, amor. — Seus dedos acariciaram o rosto do homem de roupa casual. — A reunião acabou se estendendo.

O ar ficou eletrizado. Meu pai, finalmente percebendo a armadilha em que caíra, virou-se com a lentidão de um condenado. O silêncio que se seguiu foi absoluto. Eu sabia — estávamos na boca da serpente.

— Vamos embora, Leo.

Mas Otávio já estava em movimento.

Seus olhos aqueles que as revistas chamavam de “poços de petróleo” agora brilhavam com algo mais sorrateiro que raiva.

— Ah, mas tão cedo? — o sorriso dele era cínico e cortante — Há minutos você implorava por minha atenção.

Meu pai, desconfortável, tentou dar um passo para trás.

— Esqueça isso, Otávio — sua voz carregava uma inquietação incomum.

Num estalo de dedos. Das sombras do Metrô Palace, cinco figuras emergiram como lobos bem vestidos.

Não correram. Não precisavam.

Cercaram-nos com a precisão de quem faz isso há anos.

"Merda, aqui vem o tsunami."

Claro que ele tinha um exército particular. Minhas unhas cravaram na palma da mão. O BMW parecia estar anos-luz de distância.

— Senhor Albuquerque... — minha voz soou mais firme do que esperava, mesmo com a imagem do meu pai em uma UTI e, se piorasse, em um caixão. — Peço desculpas pelo ocorrido. Meu pai...

— Não precisa falar por mim. — rosnou, teimoso.

Mas os seguranças já apertavam o cerco. Vi o exato momento em que ele percebeu que estava encurralado como um rato de laboratório.

— Desculpe... pelas minhas palavras, senhor Albuquerque.

Otávio cruzou os braços, o relógio de pulso brilhando sob a luz.

— Eu não fui o único insultado.

O silêncio pesou toneladas.

Meu pai engoliu seco. As veias do pescoço saltavam. Quando finalmente falou, as palavras saíram como um cuspe:

— Peço... desculpas. Aos dois.

A mulher de vermelho nos estudou com os olhos de quem já vira essa cena centenas de vezes.

Então, com uma voz delicada e elegante, disse:

— Tudo bem. Aceito suas desculpas.

Mas o perdão não era para meu pai. Ela olhava direto para mim. Foi aí que reparei nos olhos dela belos, quase dourados. No mesmo instante, os seguranças abriram caminho.

Estávamos livres. Mas quando demos as costas, a voz de Otávio nos alcançou. Um arrepio subiu pela minha nuca.

— Alan Montenegro, certo? — uma pausa, calculada como quem resolve um problema de matemática — Vou lembrar desse nome. E desse dia. Cada mísero segundo.

Fudeu.

Meu pai endureceu o corpo na hora.

Eu o guiei até o carro, notando como seu cotovelo tremia sob minha mão.

Ele tinha encontrado um oponente de verdade.

— Filho da pu... — ele começou, mas a frase morreu quando sua mão tocou o volante.

E como um eco fantasmagórico, Otávio ainda imóvel sussurrou a ameaça final:

— Isso ainda não terminou.

O ultimato.

...Léo....

Acordei com o toque insistente do telefone cortando o silêncio do quarto. A luz matinal escorria pelas frestas das cortinas, pintando o ambiente de um dourado quase cruel.

Cada vibração do aparelho soava como uma lâmina afiada no vácuo.

Arranquei-me da cama, jogando as cobertas de lado como se estivesse despindo um cadáver. Desci as escadas - cada degrau rangia sob meus pés descalços, o mesmo som que, na infância, me alertava quando meu velho chegava bêbado em casa.

Ironia do destino: agora era eu quem descia para encarar o monstro de frente. Eu sabia. Algo estava errado.

Telefonemas de manhã nunca trazem boas notícias.

E na casa dos Montenegro, não haveria exceção. Esse tipo de coisa só dava certo nos filmes que meu pai adorava.

A mansão grande, imponente, perfeita respirava luxo por todos os poros. Paredes brancas, mármore, cristais... a porra toda que qualquer garoto acharia o máximo.

Mas não valia nada. Naquela manhã, o frio do desespero espreitava os corredores, banhados por um sol mentiroso.

Assim como eu. Tornei-me um mestre na arte de fingir.Tanto que até a música irritante de Frozen virou meu mantra:

"Esconder, não mostrar." Bom menino. Sempre. Um passo em falso, e todos saberiam.

Meu pensamento foi interrompido por uma sentença:

- Três dias... é só isso?

A voz do meu pai rachou no meio, e eu soube. Era som se um império demorando. Seu rosto estava pálido,as mãos trêmulas segurando o telefone como uma tábua de salvação. Parte de mim queria abraca-lo. Só que a outra a mais obscura, a que eu trancara no porão da minha mente e nem sabia onde estava a chave. Queria gritar.

- Viu só no que deu sua arrogância?

Em vez disso,fiquei parado por um momento.

- O que aconteceu, pai? - Minha voz saiu mais aguda do que eu queria.

- Você tá com cara de quem viu o diabo.Que história é essa de "três dias"?

Ele respirou fundo, aquela tomada de ar que faz o peito queimar. Observei no seu rosto medo puro e cru, junto com a vergonha. As mãos se contorciam na barra da camisa, como se quisesse estrangular alguém.

- O Albuquerque... já começou agir.

- A voz saiu quebrada - O banco quer o pagamento total da dívida. Temos três dias. Senão, tomam até a casa.

Um gelo desceu minha espinha e se alojou no estômago. Meu coração fez os cálculos antes do cérebro:setenta e duas horas. Era o mesmo tempo que um condenado no corredor da morte tinha para esgotar seus recursos. Eu sabia que aquela promessa viria .Mas ouvir as palavras em voz alta foi como levar chute nas bolas.

- Puta que pariu! Mas que porra...

O palavriado explodiu da minha boca antes que eu pudesse parar. Como se salva um império que levou anos para ser conhecido em míseros três dias? Qual era formula secreta para provar que ainda éramos alguém nesta cidade?

— Não começa, Leo — Ele virou de costas, mas eu já tinha visto no seus olhos. O fracasso... Nas mãos trémulas, que finalmente entedeu o preso da arrogância.

Nos dois dias que se seguiram, meu pai virou um morto-vivo.

Entrava e saía de casa como um zumbi. A cada retorno, parecia se decompor um pouco mais. Seus olhos, antes inflados de arrogância, agora só refletiam portas batidas e telefonemas ignorados.Ninguém em Vale Azul mexeria um dedo para ajudar um Montenegro. Afinal, quem seria o louco de se arriscar contra Otávio Albuquerque?

Na manhã de segunda-feira, me arrastei até a cozinha. Ele estava lá, quase espectral, mexendo uma xícara de café frio como se a solução dos problemas estivesse afundada no fundo da xícara. O rosto, marcado por noites sem dormir, parecia ter envelhecido uma década em quarenta e oito horas.

Meu pai sempre foi maior que a vida ou, pelo menos, achava que era.

Agora, encolhido naquela cadeira, era só um velho derrotado. E eu? Um covarde parado na porta, engolindo palavras que não serviam pra porra nenhuma.

"Vamos resolver isso juntos" que merda de frase vazia.

Ele nem notou minha presença.

Peguei minha mochila e vazei.

O metrô, como sempre, estava lotado.

Mas eu não via ninguém. No colégio, as vozes dos professores viraram ruído branco. Matemática, literatura, geografia... toda aquela merda parecia ainda mais inútil diante do relógio que batia dentro do meu crânio:

O banco. O prazo. A casa. O fim.

Enquanto o professor de História discursava sobre revoluções do passado, tudo que eu pensava era:

em menos de vinte e quatro horas, ou a gente dava um jeito... ou estávamos fodidos.

Só voltei à realidade quando levei um tranco no ombro do Ruan .O jeito desengonçado dele de dizer "Ei, você tá mofando no mundo da lua?"

— E aí, monstro? Tá parecendo zumbi pós-apocalipse. Que que tá pegando?

Respirei fundo, tentando colar os cacos da minha sanidade.

— O banco... — a palavra grudou na garganta como pigarro de ressaca. — O prazo termina amanhã.

Ruan assobiou baixo.O rosto fechou naquele misto de pena e alarme que eu conhecia bem.

— Poxa, cara, que tenso... É o seu velho?

Chutei uma pedra na calçada com força o suficiente pra doer no pé.

Ele merecia?Merecia pra caralho.

Mas eu...

— É meu pai, porra. — A voz saiu mais esganiçada do que eu queria. — Ele tá péssimo. Mas se a casa for pro caralho, eu vou junto... E com o Albuquerque por trás, nem vaga de gari eu consigo.

Ruan ficou quieto por um instante.

Até ele, que nunca levava nada a sério, entendeu o tamanho da merda.

Otávio não era só um inimigo era um decreto de exílio assinado em notas promissórias de ódio.

— Tem um cara no centro... — ele começou, cauteloso. — Sabe, faz uns trabalhos... não oficiais. Talvez...

— Não. — Cortei seco. A última coisa que eu precisava era mais dívidas ou virar traficante juvenil. Olhei pra ele, exausto. — Você sabe que nenhum trampo pagaria trezentos mil em vinte e quatro horas, né, Ruan?

— É, cara... você tem razão. — Ele mordeu os lábios, os dedos tamborilando na mochila.

Saco. Era isso. A única pessoa que me tratava como gente agora me olhava como se eu fosse um coitado. Até amizade tinha virado caridade.

Andamos meio quarteirão em um silêncio mortal, até que algo ou melhor, alguém fisgou meu olhar.

No estacionamento, encostado num Porsche Panamera preto aquele monstro de aço polido que valia mais do que três casas como a que eu ainda morava. Meu coração deu um salto contra as costelas antes mesmo do meu cérebro processar: era ele.

Nem pensei. Saí correndo como um maluco, ouvindo o Ruan gritar atrás de mim:

— Leo, que caralho você tá fazendo!?

O mundo entrou em câmera lenta. Meus tênis surrados batiam no asfalto, a mochila pesada balançando nas costas. O gosto metálico na boca denunciava que eu tinha mordido a bochecha sem nem perceber.

— ESPERA...!

Ele se virou lentamente. A mão na maçaneta do Porsche, com a calma de quem nunca precisou se apressar pra nada. Até a droga do moletom cinza-claro dele parecia um insulto: era claramente de boutique cara, fino até no corte. Meus olhos queimaram quando vi seus tênis brancos imaculados. Meus All Stars rachados na lateral pareciam gritar:

“Olha a diferença, seu trouxa.”

— Talvez você não se lembre de mim — engoli o ar em pedaços, a voz saindo em farrapos — mas meu pai foi o idiota que insultou sua mãe. Pelo amor de Deus, nos deixa em paz.

Ele ergueu as sobrancelhas com uma calma que irritava. Me olhava como quem observa um pedinte no drive-thru de um restaurante fino.

— Que me lembro, seu pai já foi perdoado — a voz dele era lisa, sem culpa, sem pressa. — Não tô metido no que quer que esteja acontecendo.

Aquilo me pegou de surpresa. Mas ao olhar pra expressão dele, percebi: ele realmente parecia não saber da pressão que Otávio tava jogando nas nossas costas. Expliquei, entre frases entrecortadas, sobre o banco, o prazo, a casa. Vi o momento exato em que ele entendeu. Os olhos estreitaram. A mão pousou no queixo.

E quando soltou aquele suspiro... eu soube. Otávio tinha transformado nossas vidas num jogo.E esse cara aqui? Era a peça-chave.

— É... bem o estilo dele — o sorriso que ele soltou foi quase de pena. — Bora. Você precisa falar com o Otávio pessoalmente.

A maneira como ele se virou para abrir a porta do carro fez meu estômago embrulhar. Era surreal. Eu estava prestes a entrar num veículo que valia milhões... só pra implorar por misericórdia a um homem que já tinha decidido a nossa ruína.

— E aí, como você se chama, garoto? — perguntou como se eu fosse um cachorro de rua que ele tivesse resolvido adotar por pena.

Engoli meu orgulho junto com a saliva ácida que se acumulava na boca.

— Leonardo Montenegro. Mas... pode me chamar de Leo. E você? — (Porque, claro, o príncipe herdeiro não se apresenta sozinho, né?)

— Matheus Cavalcante. — O nome saiu como se fosse óbvio que eu deveria reconhecê-lo. — Otávio tá no Hotel Mayson Royal...

— Aquele antro de ostentação que ele chama de "hotelzinho"? — soltei antes de conseguir filtrar a ironia. — Um dos trinta que ele tem pelo país, né?

Matheus deu um meio-sorriso, enquanto ajustava o volante.

— Você sabe demais pra um garoto do ensino médio. — (E o tom deixava claro: perigoso.) — Mas sim, é o menor deles. Otávio gosta da cobertura. Discreta.

"Discreta como um tiro na nuca," pensei.

Virei o rosto pra janela, fingindo interesse nos prédios que passavam, enquanto minhas mãos suadas entregavam o pânico. Cada curva do carro era um passo rumo ao abismo.

E eu? Eu me jogava. Voluntário. De olhos abertos.

Quando finalmente avistei o hotel, percebi: não era um prédio. Era um monumento ao poder. Vidros fumê refletindo um céu que não pertencia a pessoas como eu, concreto armado disfarçado de fortaleza.

Meu queixo quase doeu de tanto cair — não de admiração, mas de puro choque. Era como descobrir que certos lugares realmente existiam fora da novela das nove.

Matheus estacionou o Porsche como se o carro fosse uma extensão do próprio corpo. Nem precisou olhar. Já estava no elevador quando eu mal tinha fechado a porta. Corri atrás dele como um cachorrinho atrás do dono, sentindo o suor escorrer entre as omoplatas.

— Desculpa aí. O Otávio prefere discrição. Então, nada de sair espalhando esse encontro — disse enquanto digitava um código no painel. O tom era um aviso. Não um pedido.

— Guardo segredos melhor que sua secretária — retruquei, a língua solta tentando esconder o medo.

O elevador era uma caixa de aço polido que refletia cada falha minha em ultra-HD. Meus tênis, já surrados, pareciam implorar por aposentadoria contra o brilho absurdo do piso.

Meus olhos aqueles mesmos que minha mãe, quando viva, dizia serem “bonitos” agora eram dois poços fundos de olheiras roxas. Até meu cabelo loiro, minha única vaidade, estava espetado, parecendo que levei um choque. E talvez tivesse levado.

E o perfume. A droga do perfume no ar. Floral, caro, desses que deveriam acalmar. Mas só piorava a náusea.

"Lavanda de burguês", pensei.

Quando as portas se fecharam, o ar pareceu sumir. Não era claustrofobia.

Era o peso. O peso de entrar, de livre e espontânea vontade, na jaula do leão.

A mão de Matheus pousou no meu ombro.

— Relaxa. Vou fazer o Otávio te ouvir.

"Claro, moleza pra você, Matheus," pensei, engolindo o ácido que subia pela garganta. "Teu nome não tá na lista de inadimplentes do Banco Central."

O elevador pingou os andares como um contador regressivo.

8... 9... 10... Cada número um passo a menos até o inevitável.

Quando as portas se abriram, foi como entrar na barriga do monstro.

Silêncio de hotel cinco estrelas. Aquele tipo de silêncio que custa caro e pesa. O corredor parecia mais longo do que deveria, e a porta no fim era uma muralha de madeira nobre, esculpida com detalhes que sussurravam: até o batente vale mais que sua vida.

Matheus entrou sem hesitar. Eu segui, com a dignidade de um mendigo na sarjeta.

— Otávio! — a voz dele cortou o ar, ecoando nas paredes como se anunciasse um rei.

A suíte foi um soco no estômago.

Sofás brancos que pareciam nunca ter sentido um corpo humano. Tapete tão fofo que engoliu meus tênis como areia movediça. O ar cheirava a notas novas. Tinha um quadro na parede... Fiz o cálculo rápido: aquilo ali valia mais que meu fígado no mercado negro. E talvez meu rim de brinde.

E então ele apareceu. Otávio.

Descalço. De pijama de seda, a peça caía sobre o corpo como uma bandeira de vitória. Ele esfregava os olhos com uma lentidão quase ofensiva. Como se o simples ato de acordar já fosse um sacrifício digno de aplausos.

— Amor, que gritaria é essa?

Matheus apontou pra mim como quem exibe um cachorro abandonado:

— Olha quem veio te visitar.

Otávio piscou devagar. Os lábios se curvaram num quase-sorriso que não alcançou os olhos.

— Leonardo Montenegro. — Meu nome saiu da boca dele como uma acusação — Que honra... inesperada.

Ele sabia. Claro que sabia. Cada centímetro daquele rosto perfeito gritava:

“Eu destruí seu pai. E você veio pedir bis?”

Matheus cruzou os braços, o olhar pesado como um juiz que já condenou o réu antes do julgamento.

— Vamos fingir que não sei a resposta. Você tá mesmo acabando com os Montenegros? Tomando até a casa deles? Poxa vida, amor...

— Sim, Matheus.

A palavra soou simples. Mas cortou o ar como faca. Meu pulso começou a doer. Só então percebi que estava cravando as unhas na própria pele.

Fiquei em silêncio por um segundo. Tentando processar o que já sabia, mas doía ouvir em voz alta. Mesmo assim, cansado de ser espectador da própria ruína, respirei fundo e falei com uma coragem que não era minha, mas precisava ser.

— Senhor Albuquerque — minha voz saiu mais firme do que eu sentia — meu pai já pagou pelo que fez. Por favor... ele tá... ele tá se matando.

Otávio me olhou com aquele sorriso. Não um sorriso gentil. Um sorriso sádico. De vilão. De filme de terror.

— Claro, garoto, está perdoado.

O alívio foi um banho quente nas minhas costas. Eu ia agradecer, mas então ele ergueu um dedo.

— Mas tem um detalhe. Acho que você pode me ajudar com algo... em troca.

O estômago deu um nó. O sorriso dele nunca significava coisa boa.

— Qualquer coisa — menti. A boca tava tão seca que engolir parecia engolir areia.

Otávio deu dois passos calculados, ficando a um palmo de mim. O cheiro amadeirado dele me atingiu como uma droga. Enjoativa. Viciante. Perigosa.

— Você se forma este ano, né?

Engoli seco.

— Sim.

— Perfeito. — Os olhos brilharam. Não de alegria, mas de expectativa. Como um gato olhando um rato aleijado. — Então você vai passar dois anos na Faculdade Rainbow.

Meu mundo desabou. A visão escureceu. Rainbow. A universidade que meu pai chama de “antro de viadagem” entre risos escarnecedores no jantar.

— O quê?

Matheus fez um movimento quase imperceptível, como se quisesse interferir. Mas Otávio nem olhou. O sorriso agora era o de um predador que já saboreia a presa antes de morder.

— É simples, Montenegro. Dois anos lá, e seu velho fica livre. — Pausa. — Ou se recusa... e vejo vocês na rua amanhã antes do almoço.

Meu corpo todo tremia. Isso significava humilhação. Desespero.

Talvez até sangue o meu escorrendo de um nariz quebrado por mãos que tinham motivo de sobra pra me odiar.

— Tá... — A palavra saiu como um cuspe.

— Mas você vai parar de perseguir meu pai agora?

Otávio riu. O som ecoou pela sala como o badalar de um sino fúnebre.

— Ótimo! Vou preparar seus documentos. Ah, e Leo... — ele se inclinou, o hálito quente no meu ouvido — é melhor ficar nas sombras.

Matheus desviou o olhar. Sai do apartamento sem dizer nada. Minhas pernas me levaram sozinhas. Como se já soubessem o caminho da derrota.

Parei atrás de uma árvore, um pouco distante do hotel, e vomitei. Minha mente era um turbilhão de números.

Dois anos. Vinte e quatro meses.

Setecentos e trinta dias naquele inferno rosa.

E meu pai? Nunca entenderia.

Nem eu, se tentasse explicar com todas as letras que a culpa era dele.

Daquela tarde estúpida em que resolveu desafiar Otávio Albuquerque num restaurante.

Limpei a boca com a manga da camisa. O contrato que assinei em meio segundo pesava no meu bolso como um tijolo. Faculdade Rainbow.

Onde garotos como eu com histórico de piadas homofóbicas no colégio, e com um pai que soltava um "viadagem" no café da manhã só por ver alguém segurar uma xícara com o dedo esticado iam direto pra lista de caça.

Otávio não queria só a minha humilhação. Queria me jogar no fogo e assistir meu pai me odiar por sobreviver.

E, pela primeira vez, eu entendi o que significa ser um peão: Você só descobre que tá no jogo quando não tem mais como sair.

Queridos leitores,

Gostaria de compartilhar o significado de dois elementos importantes que aparecem neste capítulo:

LGBTQIA+: Essa sigla representa diferentes orientações sexuais e identidades de gênero:

L: Lésbicas

G: Gays

B: Bissexuais

T: Transgêneros

Q: Queer ou Questionando

I: Intersexuais

A + abrange outras identidades e orientações, como pansexuais e assexuais, promovendo inclusão e diversidade.

Rainbow (Arco-Íris): Um símbolo universal da diversidade, esperança e inclusão. Ele representa a pluralidade de identidades e a beleza de viver em um mundo cheio de cores e diferenças.

Espero que esses significados tornem a leitura ainda mais especial e inspiradora!

Com carinho,Deinha.

Sombras e preconceito.

...Léo...

Contar para meu pai sobre o acordo seria a coisa mais difícil da minha vida, e certamente não fiz isso naquele mesmo dia. Acabei adiando, esperando para ver se Otávio daria sossego — e, de fato, não demorou muito. Na quarta-feira à noite, meu pai chegou em casa com um brilho de satisfação nos olhos, o rosto cansado, mas orgulhoso.

— Leo, você não vai acreditar! — falou, todo animado. — Otávio deu um respiro pra gente! O banco, além de mudar os prazos, disse que vai renovar meu empréstimo e ainda liberar uma grana boa. Acredito que ele percebeu que estava complicado. Só falei a verdade pro parceiro dele e também para mãe, aquela escória... Aquele "frutinha".

Meus dedos travaram sobre o celular, as pontas dos dedos brancas de tanto pressionar. A tela escureceu - eco mudo da escuridão que tomava meu peito. As palavras do pai me atingiram como uma facada, roubando o ar dos meus pulmões. A sala se contraía ao meu redor, as paredes se fechando como uma armadilha. O telefone rangia sob minha mão trêmula, enquanto lutava para puxar um fio de ar que não vinha. Meus dentes se encontraram com força suficiente para deixar um gosto metálico na boca. No fundo, o tique-taque do velho relógio martelava meus tímpanos, cada batida um lembrete do tempo que eu não tinha.

Como uma semana tinha o poder de transformar a vida de alguém? Era apenas setembro, como qualquer outro mês, e ainda assim, minha vida agora estava em frangalhos.

Levantei os olhos em sua direção, tentando esconder a amargura e pela primeira vez respondi.

— Lógico que parou, pai. Fiz um acordo com Otávio, ou você acha que foi de graça?

A expressão de alívio e orgulho no rosto dele se desfez num instante. Sua voz saiu vacilante, quase relutante, enquanto me encarava.

— Quando isso aconteceu? E que tipo de acordo é esse, Leo? Você tá me deixando preocupado... O que aquele cara pediu para você?

— Foi na segunda-feira. Conversei com ele e a gente chegou a um acordo, pai — disse, colocando um peso na palavra "pai" que não deu para ignorar. — Ele pediu... na verdade, foi mais uma exigência, que eu fizesse faculdade na Rainbow.

A reação dele foi imediata. Os olhos brilharam, como se uma luz tivesse acendido.

— Não to acreditando nisso! Aquele cara te mandou para um lugar cheio de viadinhos!Isso não pode ser! Meu filho, convivendo com essas coisas?Você não pode ir, Leo! Isso é um absurdo!

— A questão, pai, não é se eu posso ou não. O problema é que você não consegue segura as suas palavras cruéis e o seu preconceito por causa de... sei lá o quê. E agora eu preciso ir — Suspirei antes de levantar-me afastastando, sentindo o peso de sua reprovação.

— Leo, espera aí, filho. Não consigo acreditar que você aceitou isso tão fácil. Sério, não dá para acreditar! Meu filho, se envolvendo com esses seres horríveis, que nem deviam existir!

No topo da escada, me virei em sua direção , sentindo o calor das lágrimas, mas recusei deixá-las cair.

— Aceitei, pai, mas quase desmaiei. Esse deveria ser meu ano: formatura, procurar um trabalho de meio período nas férias, começar a pensar nas faculdades, ou até estudar na mesma que o Ruan, que é meu amigo. Mas o que você fez? Falou um monte de besteira, justo para ofender o namorado do homem mais poderoso do mundo.

Por um momento, o rosto dele pareceu desmoronar. Ele sussurrou o meu nome, quase como se quisesse dizer mais algo, mas eu sabia que não havia arrependimento genuíno, apenas a vergonha de ter que aceitar que o seu único filho agora estava indo para um ambiente que ele tanto odiava.

...Meses Depois....

O calendário virou num piscar de olhos. Os documentos da faculdade estavam prontos,

carimbados e assinados selando meu destino como a frieza de uma sentença judicial. A formatura se aproximava, trazendo

aquele cheiro enjoativo de flores murchas e discursos vazios.

Eu me via reduzido a um espectro na própria vida. Movia-me entre os acontecimentos como um sonâmbulo, enquanto os meus colegas vibravam com a euforia dos últimos dias. A única prova concreta de que ainda existia era o som áspero da caneta arranhando o papel - cada risco, cada letra torta era um pequeno grito de existência. O resto era névoa.

O barulho da ponta metálica raspando contra a superfície tornou-se meu mantra particular. Tinha algo de reconfortante naquela violência controlada, na forma como a tinta azul penetrava as fibras do papel como eu gostaria de penetrar a realidade e encontrar alguma verdade escondida.

A sala de aula em minha volta os sons chegavam amortecidos como se estivesse submerso: os murmúrios dos colegas transformados em um zumbido de abelhas distantes, o impacto das palmas nas carteiras ecoando como disparos abafados,o farfalhar dos cadernos lembravam asas de morcego e o chiado do giz no quadro negro

arranhado meus nervos.

O calor era um animal vivo, pesado, que se enrolava em torno de nossos pescoços. O ventilador agonizante no canto da sala girava

suas pás com um entusiasmo de um condenado seu sopro morno, tentava em vão aliviar o calor. Todos estavam imersos em seus próprios mundos, mas para mim, tudo parecia distante, vazio.

A voz de Ruan interrompeu o nevoeiro cortado o veu como uma lâmina seus

dedos estalando diante do meu rosto funciono como interopitor religando por um momento meus sentidos

— Leo, acorda! Já tá na hora do intervalo.

Olhei para Ruan, meu amigo de 18 anos. Ele sempre tinha um jeito de se destacar, quase sem querer. O cabelo bagunçado caía sobre a testa de um jeito que parecia de propósito, e seus olhos escuros tinham uma mistura de curiosidade e desafio. Ele estava tão à vontade, com os ombros soltos e as mãos nos bolsos, que parecia que nada o incomodava. Mesmo não estudando na minha sala, sempre dava um jeito de aparecer.

— Vamos — respondi, guardando o celular no bolso e seguindo-o. Pelo menos poderia comer algo, mesmo que a comida, ultimamente, tivesse sem graça.

Saímos da sala e nossos passos ecoaram pelo corredor, abafado pelo burburinhos das vozes dos outros alunos. O som das portas se fechando atrás de nós, algumas com mais força, outras com suavidade, misturava-se  ao ruído das mochilas batendo contra os corpos apressados.

Chegamos à cantina e o cheiro de comida quente e frituras invadiu minhas narinas. O tilintar das bandejas se chocando contra os balcões se misturava ao som das risadas e das vozes dos alunos fazendo seus pedidos ao atendente, um senhor de meia-idade . O barulho das máquinas de refrigerante, o som de algo caindo no chão formavam uma música caótica.

Olhei para trás, querendo perguntar o que Ruan queria, mas ele estava flertando com Amanda, uma jovem  ruiva da minha turma. Ela era  charmosa, mas o que mais me irritava era o jeito descomplicado com que ele fazia isso, sem nem perceber o desconforto que me causava. Bufei e, quase sem pensar, o puxei pelo braço levemente.

— Ah! não vem com essa! Você me chamou para comer e eu to morrendo de fome. Não vou ficar sozinho só porque você quer fazer charme agora — falei, já decidindo o que ia pedir: um sanduíche natural e um suco de maracujá.

Ruan soltou um suspiro, mas me acompanhou. Ele gostava de Amanda, mas estava claro que ela não estava muito interessada em suas investidas. Ele pegou seu lanche também - um hambúrguer e uma lata de refrigerante, sempre mantendo o estilo "prático e  rápido". Pagamos no caixa, o som das moedas tilintando enquanto entregávamos o dinheiro, e logo seguimos para as mesas.

Assim que nos sentamos, Amanda, que estava por perto, fez questão de provocar ainda mais. Com um sorriso leve,se aproximou de mim e, em vez de dar atenção a Ruan,me estendeu um sanduíche envolto em papel alumínio.

— Quer, Leo? Fui eu que fiz — ela disse, sorrindo de forma descontraída, enquanto me oferecia um sanduíche caseiro de peito de peru. Ele parecia muito mais gostoso do que os lanches da cantina.

— Obrigado, Amanda, mas já comprei o meu.

Ela deu de ombros sorrindo novamente, voltando para o grupo de amigos. Ruan resmungou, visivelmente incomodado, enquanto eu tentava esconder uma risada.

Comecei a comer meu sanduíche. Ao meu lado, Ruan mordia seu hambúrguer com mais raiva do que fome. Ele suspirou, olhando para mim como se estivesse tentando decifrar um mistério.

— Uau, meu! Como você consegue chamar tanta atenção? E não é só das meninas, né?

—Não tô entendendo o que você quis dizer. O que é isso, Ruan? — perguntei, enquanto mordia meu lanche e tentava não deixar transparecer que estava preocupado.

Ruan deu uma grande mordida no hambúrguer, mastigando devagar antes de responder:

— É impressionante como todo mundo gosta de você. Se você está por perto, já era pra mim com as garotas.

Sabia que as pessoas se sentiam atraídas pela minha aparência, e que chamava a atenção tanto das meninas quanto, para o meu total desconforto, dos meninos também. Não era uma novidade, mas ouvir Ruan falar sobre esse assunto me deixava ainda mais apreensivo, considerando que em breve estaria em um ambiente onde tudo seria mais intenso, por causa do "acordo" infeliz com Otávio.

Enquanto tentava voltar a focar no meu lanche, Ruan continuou, aparentemente decidido a mexer em todas as minhas inseguranças. Ele deu uma risada leve antes de dizer:

— Cara, lembra do André?

Quase engasguei na hora, tossindo sem parar. Ruan sabia exatamente o que estava fazendo ao mencionar esse nome. André era um dos meninos do time de futebol do outro colégio com quem tínhamos jogado no ano passado. Ruan e eu jogávamos no mesmo time, mas geralmente ficava no banco. Não que jogasse mal, mas não era exatamente o melhor em campo. Parecia que o treinador, senhor Soares, me mantinha ali mais pela aparência do que pelo desempenho, para atrair torcida.

Naquele dia específico de que ele falava, nosso colega Valter tinha torcido o pé, e fui chamado para substituir. O jogo estava tenso, mais estava focado, notei que, de vez em quando, André, com aqueles olhos cor de avelã , me olhava de um jeito que me deixava desconfortável. Achei que era só coisa da minha cabeça e continuei o jogo. Porém, ao final, para minha completa surpresa, ele se aproximou de mim. Estava com o uniforme do time, a braçadeira de capitão no braço direito e a bola na mão. Com todo o time ao redor e os olhares curiosos em nossa direção, simplesmente declarou:

—  Eu te amo.

Ainda me lembrava daquela sensação de vergonha e surpresa. Que situação doida! Eu nem o conhecia direito, e além disso, não sentia atração por homens. Mesmo assim, o comentário de André ficou gravado na minha memória como uma situação bizarra, da qual preferia não recordar.

— O que tem ele, Ruan?

— Que tem ele? Até hoje não acredito que ele ficou cativado por você do nada, mesmo sendo hétero e você também. Sua aparência é letal, é só o que quero dizer.

A ideia de ser visto como"irresistível"até para homens era, no mínimo, desconcertante. Cresci ouvindo meu pai, com toda sua convicção, condenar qualquer comportamento que ele considerasse "fora do padrão". Sempre fui cercado por aquela visão, uma crença rígida de que o mundo era dividido em preto e branco, certo e errado, sem espaço para meio—termos.

Apesar de não concordar com as ideias dele —  já até falei para Ruan e outros amigos que não vejo problema nenhum — parece que uma parte de mim, influenciada pelo jeito do meu pai, ainda não consegui se soltar  completamente. Havia algo dentro da minha mente que hesitava, algo que ficava sempre ali, sussurrando ao meu ouvido: "Isso não é pra você."

Talvez fosse essa voz, um eco dos valores rígidos que ele plantou, que me fazia evitar pensar em relacionamentos ou atração por outros caras, mesmo que minha mente racional dissesse que era bobagem. Então, me convenci: eu era hétero, e ponto.

— Será que podemos mudar de assunto? Não sou muito fã desse tema aí. Que tal comer antes que o intervalo termine?

Ruan deu de ombros e voltou a comer, sem tocar mais na questão.Que era delicada como cristal. Já não sentia gosto dos alimentos por causa do problema com Otávio, e aí vem meu amigo desenterrar um assunto antigo. Logo esse, sobre um homem sarado, que disse estar apaixonado à primeira vista. Eu não acredito que o amor pode acontecer assim, de uma hora pra outra. Acho que você vai gostando da pessoa com o tempo, talvez sinta atração, mas amor? Para mim, isso não fazia sentido. Além do mais, não quero namorar um homem.

Terminamos o lanche em um silêncio. Quem precisa de inimigos quando se tem o Ruan como amigo? Já na porta da minha sala, antes do sinal bater para continuar com as torturas das aulas de fim de ano, ele diz:

— Até a lésbica do segundo ano, a Lara, quis te namorar. Isso é prova mais que suficiente de quanto você é mortal e lindo.

Olhei para ele, indignado.

— Você tá insuportável hoje, sabia?

—  Ah! só estava lembrando quanto o meu amigo é incrível. — Ele inclinou-se para frente, os olhos escuros brilhando de curiosidade. — Então você já decidiu para qual faculdade vai?

Ele entra na minha sala e se senta na cadeira à frente. Novamente, Ruan me leva ao lugar escuro e sombrio do meu acordo com Otávio.

Merda. Essa pergunta.

— Ah… ainda tô pensando, —

respondi, desviando o olhar para um desenho rabiscado na mesa. — Tem tempo ainda, né?

Ruan franziu a testa.

— Leonardo Montenegro, enrolador profissional. Ele deu uma risada, mas seus olhos não acompanhavam o sorriso. — Vai deixar seu pai decidir por você? Ou tá escondendo algo.

Meu pulso tremeu.Ele sabe?

— Que isso, cara. Só não decidi mesmo.

— Tá. — Ele cruzou os braços. — Então me diz três opções que você tá considerando.

O coração acelerou. Porra, Ruan. Minha mente girou, procurando nomes de faculdades genéricas que não levantassem suspeitas.

— USP… Unicamp… — Fiz pausa longa demais. — E, uh… a Federal daqui.

Ruan soltou um suspiro exasperado.

— Leo, você nem prestou vestibular pra essas.— Ele inclinou-se ainda mais, a voz baixa e afiada: — O que tá acontecendo?

Mas antes de formular qualquer mentira deslavada, o sinal toca, e o professor entra, fazendo Ruan sair. Nunca me senti tão feliz por ter aula quanto naquele momento. Além de não querer contar sobre a faculdade Rainbow não podia. Fazia parte do acordo mentir para todos os meus amigos. Essa era a minha vida agora, e seria assim por longos anos .

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