Escalas inesperadas.

...Leo ....

Depois da formatura, Otávio me enviou a carta de filiação junto com uma carta pessoal. Segurei ambos os  envelopes pardos em mãos, sentindo o peso simbólico do conteúdo. Ali, parado na porta da sala, rompi o lacre com cuidado. Meu pai, sentado no sofá, não tirava os olhos de mim.

— O que diz aí, Leo?—  perguntou, com a voz baixa, quase hesitante.

Olhei para o papel por alguns segundos antes de responder, tentando digerir as palavras.

—  Diz que, depois das festas, tenho apenas alguns dias para ir cumprir com a minha parte no acordo .— 

Dobrei a carta com cuidado, mantendo o tom o mais neutro possível, antes de acrescentar:— Que sou garoto bom, mas meu pai ... é um caso à parte.

Houve um momento de silêncio enquanto ajeitava os papéis. Olhei para o envelope aberto em minhas mãos e completei, como se explicasse a mim mesmo:

— E, outra forma, é para deixar claro minha... peculiaridade.

—  Filho... — ele mumurou, com os olhos marejados pela primeira vez desde que tudo isso começou. — Você não precisa fazer isso. Que se dane que a empresa vai falir.

Olhei em sua direção , o peso da situação apertando meu peito. Respirei fundo e tentei manter a calma, as palavras saindo mais firmes do que eu realmente sentia.

— Vou ficar bem, pai. Não se preocupe. Não é só sobre a empresa, é sobre o senhor também. Ele não deixaria a gente em paz, e eu... não estou afim de morrer de fome, nem de te ver nas ruas, mesmo achando que sua atitude está errada.

Ele ficou em silêncio por um momento, os lábios comprimidos em um esforço para controlar a emoção. Então, sorriu levemente me puxando  para um abraço apertado .

— Sou sortudo por ter você como filho, sabia? —  disse, sua voz tremendo. —  Lamento as discussões dos últimos dias. Que tal uma trégua? Já que iremos ficar longe, não falamos mais desse assunto, mesmo que me contorça por dentro.

Me afastei do seus braços, ainda sentindo o calor da sua preocupação, e vi a luta interna em seus rosto, mas também um vislumbre de gratidão em seus olhos azuis que a tempos não via.

— Fechado, pai.— afirmei , tentando não deixar transparecer o quanto aquele momento me tocava.

Depois daquele dia, a calma na nossa relação voltou de forma surpreendente. As festas de fim de ano passaram tranquilas. No Natal, passamos com a família do Ruan. Foi uma tortura divertida, porque detesto uva-passas na comida, mas no final consegui ganhei os tênis que queria.

No dia 29, fiz dezoito anos. Não teve festa, apenas um bolo simples, mas ainda assim foi um marco para mim. E logo chegou a virada do ano. Passamos a noite só eu, meu pai em nossa casa, assistindo ao especial de fim de ano na TV e ouvindo o barulho dos fogos . Foi tranquilo e confortável, apesar da pressão interna que sentia.

No dia anterior à viagem, fui a um brechó. Decidi que, a partir daquele momento, não queria ser reconhecido depois que saísse da faculdade. Talvez fosse bobagem, talvez medo. A verdade é que minha mente ainda estava presa ao que pai estalou nela, mesmo tentando seguir em frente.Tinha receio de ficar sozinho com outros gays.

Sei que provavelmente nada vai acontecer, mas no momento , não consigo evitar. Ruan sempre diz que sou "lindo de morrer" só, para mim, a beleza era um problema. Foi por isso que escolhi roupas vellhas e idiotas , óculos que faziam meus olhos parecerem maiores e iria fazer uma maquiagem para esconder meu rosto. Era mimha maneira de buscar um pouco de paz e invisibilidade.

Voltei para casa, terminei de arrumar a mochila. Tinha um nó tão grande na garganta pelo que me esperava que nem consegui jantar. Tomei um banho rápido e fui direto para a cama, mas o sono não veio fácil. Mal consegui dormir naquela noite, e ainda tive pesadelos sem sentido, aqueles que me deixam com a sensação de que estou preso, sem saber para onde ir.

Acordei no outro dia antes mesmo do despertador. Tomei um banho, tentando espantar o cansaço emocional que sentia. Era hoje. Depois de me vestir com roupas cafonas - como se isso pudesse me esconder de algo ou alguém - fui para a cozinha. Meu pai já estava lá, me observando com aquele olhar preocupado, como se pudesse ler meus  pensamentos .

—  Tem certeza de que não quer que eu te leve, Leo? — perguntou em voz baixa, quase hesitante.

— Tenho. Prefiro ir sozinho. Podemos acabar discutindo, eu só quero manter essa paz temporária na minha vida. — afirmei , forçando um sorriso. A verdade era que estava com medo de que ele encontra-se pessoas que odiava, de passar vergonha antes mesmo de chegar à faculdade. Isso me fez querer ir sozinho, sem pressão.

— Tá bom, Leo. Então vai de táxi. Metrô demora muito.—  sugeriu, com um tom de preocupação, tentando fazer o melhor para me ajudar.

—  Pensei nisso mesmo. Só vamos aproveitar o café antes de chamar o táxi.— Falei, espalhando manteiga no pão, tentando fingir que tudo estava normal.

Comemos em silêncio, o único som que preenchia o ambiente era o da nossa respiração, os ruídos dos eletrodomésticos e os passos da empregada no fundo. Não havia mais nada a dizer. Terminei o café e, logo em seguida, pedi o táxi. Meu pai me acompanhou até a porta, me deu um abraço apertado, como se quisesse me guardar em seus braços por mais tempo.

— Se cuida, Leo. E fala comigo por telefone, tá bom?

— Sim, pai. Vou me cuidar e falo com o senhor sempre que der.

Entrei no carro, olhei para ele e para a casa uma última vez, sentindo o peso da despedida apertando no peito. Não sabia o que estava por vir, mas aquele momento ficaria em minha memória.

No caminho para o aeroporto, minha mente não parava. Tudo o que passava pela minha cabeça era se conseguiria sobreviver pelo menos  ao primeiro dia.

Embora tivesse feito planos para o "disfarce" e outros pequenos ajustes, nada me dava certeza. Mas, de alguma forma, acreditava que era melhor ter um péssimo plano do que não ter nenhum.

Segundo as informações da carta, a faculdade ficava em Abradaque, uma cidade ao norte do país, a algumas horas de voo. Não sei por que escolheram esse nome. Ele significava "confusão" ou "bagunça", o que paracia até poético,pois refletia

exatamente como minha vida estava naquele momento: uma verdadeira bagunça.

Abradaque era uma cidade fechada, exclusivas para os membros da comunidade LGBTQIA+. A única forma de acesso era por meio da Carta de Afiliação, como a minha, ou se fosse um dos sócios milionários que financiavam o local. Diziam que era uma medida de proteção, mas, para mim, soava mais como um disfarce para uma prisão.

—  Parece que o senhor está saindo de férias —  comentou o taxista, um homem de meia-idade com cabelos grisalhos.

Pisquei algumas vezes, tentando afastar o turbilhão de pensamentos que rodavam na minha cabeça, e respondi:

— É... mais ou menos isso.

A resposta saiu automática, sem qualquer intenção de compartilhar detalhes com um estranho.

O motorista balançou a cabeça, dando um leve sorriso, e não disse mais nada. Quase soltei um suspiro de alívio por ele não ter feito mais perguntas. Só queria um pouco de silêncio, tempo para organizar meus pensamentos e me preparar mentalmente para o que estava por vir.

O resto do trajeto até o aeroporto foi silencioso, o som apenas dos pneus na estrada e do motor roncando. O silêncio, que antes parecia um alívio, agora me pesava.

—   Pronto, senhor. Quer ajuda com as malas? —  perguntou ele quando chegamos ao areporto.

—  Não precisa, só tenho duas malas e uma mochila — afirmo, entregando o dinheiro e pegando minhas coisas.

Com tudo em mãos, segui até a fila do check-in, que parecia interminável. O ritmo da fila, as pessoas falando baixinho ao meu redor, tornava o ambiente ainda mais caótico. Eu só queria fazer tudo rápido, mas parecia que o tempo estava se arrastando.

Finalmente, quando chegou a minha vez, a atendente, uma moça com o uniforme impecável, sorriu para mim.

— Como posso ajudá-lo, senhor?

— Comprei uma passagem para Abradaque pelo site, para hoje. Só vim confirmar o horário e retirar o bilhete.

Ela digitou algo no computador e, após alguns segundos, olhou para mim novamente.

—  Lamento, senhor, mas hoje não temos voos diretos para Abradaque devido a neblina na região . Será necessário fazer uma escala e passar a noite na cidade vizinha, Sam Vale.

—  Mas eu comprei um voo direto!

—  resmunguei, com uma mistura de indignação e cansaço. Como era possível isso acontecer? Tinha  planejado cada detalhe com tanto cuidado, e agora nada parecia estar saindo como esperado.

— Entendo. Já solicitei o reembolso da diferença para sua conta. Além disso, posso reservar uma estadia em um hotel para esta noite, por conta da companhia aérea.

Balancei a cabeça, resignado. Não tinha outra escolha além aceitar. Pelo menos tinha tempo suficiente, mas esse não era o plano. Peguei a nova passagem e me dirigi à área de embarque. Antes de passar pela catraca, dei uma última olhada para areporto de Vale Azul. Fiquei com a sensação de que algo estava fora do lugar, mas ainda não conseguia identificar o que.

Depois de mais algumas horas de voo, finalmente chegamos a Sam Vale. Antes de desembarcarmos, a aeromoça anunciou:

— Agradecemos por escolher nossa companhia. Desejamos a todos uma ótima estadia.

Peguei minhas malas e desci, sentindo um peso no peito. Atravessando o aeroporto, fui direto para o táxi que me levaria ao hotel reservado, tentando ignorar o cansaço que já tomava conta.

Cheguei ao hotel e fui recebido por um recepcionista que parecia exausto, mas ainda assim manteve a simpatia.

— Boa noite, senhor. Como posso ajudá-lo?

— Tenho uma reserva em nome de Leonardo Montenegro para esta noite. Estou indo para Abradaque amanhã. Sabe se há algum transporte para lá?

— Claro, senhor. Seu quarto é o 303. Sobre o transporte, existe um ônibus da faculdade que sai amanhã cedo da praça central, a duas quadras daqui. Basta apresentar a Carta de Afiliação.

—  Obrigado.— Respondi, tentando soar mais tranquilo do que realmente me sentia.

Peguei a chave e segui para o elevador. O hotel tinha apenas três andares, o que foi um alívio. Não estava com paciência para algo mais luxuoso ou complexo. O simples parecia ideal naquele momento.

Assim que entrei no quarto, larguei as malas no chão e me joguei na cama. Fechei os olhos por um instante, sentindo a suavidade dos lençóis, mas logo me sentei de novo. A mente não me dava descanso.

—  Mais um dia... Será que isso é sorte ou azar? —  murmurei para mim mesmo, encarando a parede branca minha frente.

Embora a situação fosse irritante e cheia de reviravoltas inesperadas, parte de mim estava aliviado por ter mais um dia de folga. Um tempo extra

antes de finalmente chegar ao meu destino, para enfrentar o que fosse necessário.

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