O preço do orgulho.

...Léo ...

Contar para meu pai sobre o acordo seria como enfiar a mão no fogo e torcer para sair sem cicatrizes. Adiei o máximo que consegui rezando para que Otávio cumprisse sua parte antes que eu tivesse que me explicar.

Na quarta-feira à noite, meu pai chegou em casa com um brilho de satisfação nos olhos, aquele de quando achava que tinha vencido.

— Leo, você não vai acreditar! — o canto da boca formando quase um sorriso. — Otávio recuou! O banco não só renovou o empréstimo como também injetou mais capital. Deve ter finalmente entendido que estava indo longe demais. Só precisei colocar aquela escória no seu lugar.

Meus dedos afundaram no celular, as pontas ficando brancas de pressão. A tela escureceu, mas eu nem piscava.

O ar dos meus pulmões sumiu como se alguém tivesse dado um soco no meu peito. O relógio da parede martelava nos meus ouvidos tique-taque, tique-taque, contando os segundos da minha ruína.

Como sete dias tinham o poder de transformar minha vida de cabeça pra baixo?

— Claro que ele parou, pai.— Minha voz saiu áspera. — Fiz um acordo com Otávio. Ou você achou mesmo que foi por bondade? Que ele ia esquecer só porque você pediu bonitinho?

Vi o sorriso dele morrer em câmera lenta. Os músculos do rosto travando um a um, como se alguém tivesse puxado o plugue.

— O quê? — Se arrepiou todo no sofá, as mãos se agarrando nos braços do móvel como se estivesse prestes a cair. — Quando foi isso? Que merda de acordo você fez, Leo? Fala logo que diabos Otávio te pediu!

— Segunda-feira. Falei com Otávio.

Ele pediu... na verdade, fez uma exigência, que eu estudasse na Rainbow.

O rosto do meu pai passou de choque para nojo em meio segundo.

— O QUÊ? — Ele cuspiu o nome da faculdade como se fosse um palavrão. — Meu filho, no meio daqueles viados? Não, isso não vai acontecer!

— Já aconteceu. — Me levantei, sentindo o peso daquela casa, daquela vida, esmagando meus ombros. — Você acha que eu quero ir? Foi isso ou rua. Parabéns, pai. Sua boca grande me colocou numa jaula.

Ele tentou falar, mas eu já estava subindo as escadas. Seu silêncio era pior que qualquer grito.

Pela primeira vez, eu entendi o que ele sempre me ensinou sem palavras:

Orgulho custa caro. Mas a conta sempre vem para quem não pode pagar.

...Meses Depois....

O tempo escorreu entre meus dedos como areia fina o calendário aquele traidor de papel virou num piscar de olhos. Os documentos da faculdade agora repousavam na minha mesa,

carimbados e assinados. A formatura se próximava, trazendo o cheiro enjoativo de flores murchas e discursos vazios.

Me via reduzido a um espectro entre meus colegas. Enquanto eles riam e planejavam festas, eu só conseguia ouvir o som áspero da caneta arranhando o papel cada risco, cada letra torta era um pequeno grito abafado.

Na sala os sons chegavam amortecidos como se estivesse submerso: os murmúrios dos colegas transformados em zumbidos de abelhas, o impacto das palmas nas carteiras ecoando como disparos abafados, o farfalhar dos cadernos lembravam asas de morcego. É o pior? O chiado do giz no quadro negro arranhado meus nervos como unhas na lousa.

O calor era um animal sufocante,

que se enrolava em torno do meu pescoço. O ventilador agonizante no canto da sala girava suas pás sem entusiasmo seu sopro morno, inútil contra o abafamento.

Foi então que a voz do Ruan cortou o

nevoeiro, como um estalo de dedos no meio do vazio.

— Leo, acorda! Já é hora do intervalo.

Olhei para ele, meu amigo de infância. Sempre tão à vontade no seu próprio corpo. Cabelo despenteados, olhos escuros cheios de desafio.

— Vamos — Levantei-me, o seguindo com as mãos enfiadas no bolso.

O corredor do colégio era sempre um caos, portas batendo, mochilas colidindo contra os corpos apressados e risadas ecoando altas.

Na cantina, o cheiro de óleo queimado e frituras invadiu minhas narinas

o perfume clássico do desespero estudantil. Enquanto encarava as opções no balcão, Ruan já estava em modo caça, jogando seus olhares mais "interessantes" para Amanda, a ruiva da minha sala. Charmosa? Até era. O problema era ele fazer aquilo sabendo que estava ali, sozinho como um trouxa.

— Ah, não! — Agarrei seu braço com força suficiente pra deixar marca. — Você me arrastou para cá agora estou morrendo de fome. Segura a onda e come comigo antes que eu te enterre nessa geladeira de salgados.

Ele resmungou algo sobre "exageros", mas me seguiu. Pegou seu hambúrguer borrachudo e refrigerante gelado - o combo clássico do "não tenho paciência pra escolher". Quando as moedas caíram no caixa, o tilintar soou como um eco irônico: "Parabéns, Leo. Mais uma refeição sem graça na sua vida patética."

Mal nos sentamos e lá vinha ela. Amanda deslizou até nossa mesa com aquele sorriso de "acabei de assar pão de mel", empurrando um sanduíche embrulhado em papel alumínio na minha frente.

— Experimenta, Leo. Fiz especialmente.— O olhar dela passou por cima de Ruan como se ele fosse invisível.

Meu sanduíche da cantina de repente parecia ainda mais triste. Mas engoli o orgulho junto com a saliva.

— Valeu, mas tô de dieta. — Empurrei o pacote de volta, ignorando o cheiro delicioso que ameaçava minha resistência. — De repente o Ruan quer. Ele adora... peru.

Ruan quase cuspiu o refrigerante. Amanda franziu o nariz, mas recuperou rápido:

— Tudo bem. — O sorriso dela escorregou pra um tom mais afiado. — Mas se mudar de ideia, é só chamar. Só você.

E deixou o sanduíche na mesa antes de ir embora. Ruan olhou pra mim como se eu tivesse cuspido na Mona Lisa.

— Cara, você é um lixo humano.

— Eu? — Apontei pro sanduíche abandonado. — Pelo menos agora você tem chance. Vai lá, Romeo. Mostra que sabe agradecer.

Ele olhou pro sanduíche, depois pra Amanda se afastando, e finalmente pra mim. Com um suspiro que veio dos pés, pegou o troféu rejeitado e deu uma mordida teatral.

— Tá feliz? — Ele mastigou com raiva. — Agora eu sou o plano B do lanche dela.

— Melhor que ser o plano Z, né? — Dei de ombros, mordendo meu pão seco.

Ruan triturou o sanduíche como se estivesse mastigando meus ossos. Seus olhos escuros perfuravam minha alma enquanto engolia com dificuldade.

— Me explica uma coisa — cuspiu migalhas na mesa. — Como caralhos você consegue essa porra toda? Não é só as minas, não. Até os caras...

Meus dedos contraíram, esmagando o pão.

— Que porra você tá insinuando? — minha voz saiu dois tons mais aguda.

Ele soltou aquele sorriso de cachorro sabendo onde enterrou o osso.

— André. — O nome ecoou como um tiro. — O cara te viu UMA vez em campo e declarou amor eterno. Isso não é normal, Leo.

O suco de maracujá virou ácido no meu estômago. A memória invadiu meus sentidos como um flashback maldito: o cheiro de grama, o sol queimando minha nuca, e André - aquele tanque humano com olhos de filhote caindo de joelhos como um cavaleiro medieval diante de mim.

— EU TE AMO!

A voz dele ainda ecoava nos meus pesadelos.

— Foi uma piada de mau gosto — menti, esfregando a palma suada na calça.

Ruan soltou um riso seco.

— Piada? O maluco te mandou flores depois, Leo. FLORES. Com cartão e tudo.

Meu corpo inteiro queimou. As flores. Aquela merda rosa choque que meu pai jogou no lixo com um "que nojo" que doía até hoje.

— Ele... se confundiu.

Ruan inclinou-se pra frente, os cotovelos na mesa.

— Confundiu o quê, exatamente? — o sussurro dele era pior que um grito. — Que você é um baita de um gostoso? Porque isso aí até cego vê.

Meu pulso começou a doer. Só então percebi que estava segurando o garfo com força.

— Não sou — gritei baixo. — Não sou isso que tá na tua cabeça.

Mas a imagem não saía: eu na Rainbow, cercado por dezenas de Andrés, todos vendo através da farsa. Todos sabendo o que eu negava até para mim mesmo.

Ruan estudou meu rosto como um detetive vendo pista de um crime.

— Tá. — Ele ergueu as mãos em rendição falsa. — Só tava dizendo que, se um dia você quiser experimentar... — um sorriso malicioso — sei uns caras que fariam fila.

Joguei meu lanche na bandeja com um baque.

— Acabou o intervalo. — Levantei tão rápido que a cadeira caiu pra trás.

Mas a voz do meu pai ecoou mais alto que o barulho do metal no chão: "Homem de verdade não dá mole para essas coisas, Leonardo."

Era mais fácil acreditar nisso. Mais seguro. Porque se encarasse a verdade que talvez, só talvez, parte de mim tinha gostado da atenção teria que encarar também que meu pai estava errado. E isso... isso doía mais que qualquer insulto.

Claro que o infeliz veio atrás. Às vezes me pergunto se o Ruan nasceu apenas para ser o anjo da guarda e o demônio do meu ombro ao mesmo tempo. Ele me alcançou na porta da sala, justo quando o sinal estava prestes a tocar, com aquele sorriso de quem sabe que está cavando minha cova.

— Até a Lara, aquela lésbica radical do segundo ano, já se declarou pra você — ele sussurrou, como se estivesse contando um segredo suculento. — Isso deveria estar no Guinness, Leo. Você quebra todas as barreiras sexuais sem nem tentar.

Meu rosto queimou como se tivesse levado um tapa.

— Porra, Ruan! — gritei baixo, os dentes cerrados. — Você tá com algum tipo de missão para me humilhar hoje?

Ele apenas encolheu os ombros, aquele sorriso ainda estampado no rosto.

— Só tô dizendo que você é tipo um ímã humano. Atrai todo mundo, independente de gênero. — Seus olhos escuros brilharam maliciosamente. — A propósito, ainda não me disse: qual faculdade vai encantar com sua presença no próximo ano?

Meu estômago deu um salto mortal. A palavra Rainbow queimava minha língua como veneno. Eu podia quase sentir o cheiro daquela porra de campus rosa, ouvir os cochichos que me seguiriam assim que descobrissem que eu era um impostor.

— Ah, ainda tô avaliando as opções — menti, limpando as mãos suadas nas calças. — Tem tempo ainda.

Ruan não comprou. Ele se inclinou pra frente, seus olhos negros perfurando minha máscara como raios-X.

— Leonardo Montenegro — ele disse, sério pela primeira vez no dia. — Isso é seu futuro. Você vai realmente deixar seu pai escolher por você?

A garganta fechou. A ironia era tão amarga que quase ri. Meu pai já tinha escolhido, sim quando decidiu mexer com Otávio Albuquerque. E agora eu pagava o preço, vestindo uma identidade falsa como um traje de pele que nunca me encaixaria direito.

Antes que pudesse formular outra mentira patética, o sinal salvador tocou. O professor entrou, e Ruan foi obrigado a voltar pra sua sala. Nunca na vida tinha ficado tão feliz em ter aula de matemática.

Enquanto me sentava, minhas mãos tremiam sob a mesa. Dois anos. Vinte e quatro meses fingindo ser quem não era. Dois invernos evitando banheiros coletivos, dois verões de mentiras cuidadosamente construídas.

E o pior? Saber que, no final, quando tudo acabasse, talvez nem soubesse mais quem era o verdadeiro Leonardo Montenegro.

Lógico que infeliz me seguiu.Quem precisa de inimigos quando se tem o Ruan como amigo? Já na porta da minha sala, antes do sinal bater para continuar com as torturas das aulas de fim de ano, ele diz:

— Até a lésbica do segundo ano, a Lara, quis te namorar. Isso é prova mais que suficiente de quanto você é mortal e lindo.

Olhei para ele, indignado.

— Você tá insuportável hoje, sabia?

— Ah, só estava lembrando quanto meu amigo é incrível. A propósito, você não me respondeu: para qual faculdade vai quando o ano acabar?

Ele entra na minha sala e se senta na cadeira à frente. Novamente, Ruan me leva ao lugar escuro e sombrio do meu acordo com Otávio. Devo estar suando frio, mas nem em um milhão de anos falaria. Já é humilhante o suficiente que, no próximo ano, tenha que fingir ser gay para estudar em um lugar onde ser hétero é motivo de xingamento.

Respondi, fingindo não estar morto de medo de ser descoberto:

— Ah, ainda tô pensando. Não estou muito certo ainda, mas acho que ainda tenho um tempinho, né?

Ele me encara com seus grandes olhos ônix, como se tentasse ler meus pensamentos.

— Que diabos, Leonardo, isso e sobre seu futuro, cara!Não dá pra ficar enrolado assim. Ou vai deixar seu pai decidir por você?

Balanço a cabeça, e a verdade é que, de certa forma, meu pai decidiu. E Otávio deu a martelada final na minha cabeça, minha sentença de morte.

Mas antes de formular qualquer mentira deslavada, o sinal toca, e o professor entra, fazendo Ruan sair. Nunca me senti tão feliz por ter aula quanto naquele momento. Além de não querer contar sobre a faculdade Rainbow, não podia. Fazia parte do acordo mentir para todos os meus amigos. Essa era a minha vida agora, e seria assim por longos anos.

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Comments

Ana Lúcia

Ana Lúcia

aí Leo você se sacrifica por esse idiota e ele continua o mesmo babaca preconceituoso

2025-03-30

0

Ana Lúcia

Ana Lúcia

kkkkkkkkk tadinho

2025-03-30

0

.🌱Pomhy.☕

.🌱Pomhy.☕

Minha fuga favorita.

2025-02-06

1

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