Sombras e preconceito.

...Léo...

Contar para meu pai sobre o acordo seria a coisa mais difícil da minha vida, e certamente não fiz isso naquele mesmo dia. Acabei adiando, esperando para ver se Otávio daria sossego — e, de fato, não demorou muito. Na quarta-feira à noite, meu pai chegou em casa com um brilho de satisfação nos olhos, o rosto cansado, mas orgulhoso, como se tivesse alcançado uma grande vitória.

— Leo, você não vai acreditar! — falou, com uma empolgação rara. — O Albuquerque deu um respiro para a gente. O banco, além de renegociar os prazos, falou que renovaria meu empréstimo, me dando uma quantia alta de dinheiro. Acho que ele percebeu que era loucura. Só falei a verdade para o companheiro dele e para a mãe também, aquela escória... Aquele "frutinha".

Meus dedos estavam parados sobre a tela do celular; minha mente vagava em outro lugar até então. Aquelas palavras cruéis me trouxeram de volta à realidade como um soco no estômago. A sala de casa parecia ter ficado menor e sufocante. Meus dedos se apertaram em volta do telefone, e o ar parecia doer para entrar em meus pulmões. Meus dentes rangeram levemente... o barulho do velho relógio na parede parecia mais alto  que o normal.

Como uma semana tinha o poder de transformar a vida de alguém? Era apenas setembro, como qualquer outro mês, e ainda assim, minha vida agora estava em frangalhos.

Levantei os olhos em sua direção , tentando esconder a amargura que crescia dentro de mim e pela primeira vez respondi.

— Lógico que parou, pai. Fiz um acordo com Otávio, ou você acha que foi de graça?

A expressão de alívio e orgulho no rosto dele se desfez num instante. Sua voz saiu vacilante, quase relutante, enquanto me encarava com incredulidade.

—  Quando? E que tipo de acordo, Leo? Você está me assustando... O que aquele homem te pediu?

— Na segunda-feira. Falei com ele e fizemos um acordo, pai — afirmei , dando ênfase à palavra "pai" com uma amargura que não poderia ser  ignorada.— Ele me pediu... na verdade, foi mais uma exigência, que eu estudasse na faculdade que  administra, a Rainbow.

A reação dele foi instantânea. Seus olhos se alargaram, como se uma chama tivesse sido acesa.

—  Não acredito! — sua voz tremeu levemente. — Aquele filho da puta te jogou no covil de viadinhos. Isso é inaceitável! Meu filho, convivendo com abominações? Você não pode ir, Leo! Isso é um ultraje!

—  A questão aqui, pai, não é se eu posso ou não. É que você não segura suas palavras cruéis e seu preconceito aberto só por causa de... sei lá o quê. E agora vou ter que ir — respondi, deixando escapar um suspiro antes de me levantar e me afastar, sentindo o peso de sua reprovação como uma sombra densa.

Ouvi sua voz atrás de mim, o tom carregado de uma frustração quase desesperada.

—  Leo, espera, filho. Não posso acreditar que você aceitou isso tão facilmente. Não posso acreditar! Meu filho, se envolvendo com seres tão repugnantes, que nem deveriam existir!

No topo da escada, me virei em sua direção , sentindo o calor das lágrimas ameaçarem, mas recusei deixá-las cair.

— Aceitei, sim, pai. Quase tive uma síncope. Esse deveria ser meu ano: minha formatura, procurar um trabalho de meio período nas férias, começar a olhar para faculdades, ou até estudar na mesma que o Ruan, já que ele é meu amigo. Mas o que você fez? Abriu essa boca cheia de ódio, justo para ofender o namorado do homem mais influente do mundo.

Por um momento, o rosto dele pareceu desmoronar. Ele sussurrou meu nome, quase como se quisesse dizer mais alguma coisa, mas eu sabia que não havia arrependimento genuíno ali, apenas a vergonha de ter que aceitar que seu único filho agora estava indo para um ambiente que tanto desprezava.

Após aquela conversa, os meses passaram como um borrão. O calendário virou num piscar de olhos. Os documentos da faculdade estavam prontos, como se todas as etapas tivessem concluídas , e a formatura se aproximava . Mas em vez de sentir alegria, eu estava simplesmente... ali. O som da caneta rabiscando o papel era o único barulho que me ancorava no momento.

O ambiente da sala de aula estava saturado de sons: o murmúrio abafado dos outros alunos, o bater das mãos sobre as carteiras, o farfalhar das folhas e o arrastar do giz no quadro negro. O calor se misturava à sensação de cansaço, e o ventilador, fraco e sem força, tentava em vão aliviar o calor no ar. Todos estavam imersos em seus próprios mundos, mas para mim, tudo parecia distante, vazio.

A voz de Ruan cortou o som abafado da sala, como um estalo de dedos no meio do vazio.

—  Leo, acorda, cara! Já é hora do intervalo.

Olhei para ele. Ruan, meu amigo de 18 anos, tinha uma presença que chamava atenção sem esforço. O cabelo bagunçado caía sobre a testa de forma quase proposital, enquanto os olhos escuros carregavam uma expressão entre curiosidade e desafio. Sua postura relaxada, com os ombros levemente caídos e as mãos no bolso, dava a impressão de que nada o abalava. Mesmo sem estudar na minha sala, ele sempre aparecia , como se aquele fosse seu lugar natural.

— Vamos — respondi, guardando o celular no bolso e seguindo-o. Pelo menos poderia comer algo, mesmo que a comida, ultimamente, tivesse sem graça.

Saímos da sala e nossos passos ecoaram pelo corredor, abafado pelo burburinhos das vozes dos outros alunos. O som das portas se fechando atrás de nós, algumas com mais força, outras com suavidade, misturava-se  ao ruído das mochilas batendo contra os corpos apressados.

Chegamos à cantina e o cheiro de comida quente e frituras invadiu minhas narinas. O tilintar das bandejas se chocando contra os balcões se misturava ao som das risadas e das vozes dos alunos fazendo seus pedidos ao atendente, um senhor de meia-idade . O barulho das máquinas de refrigerante, o som de algo caindo no chão formavam uma música caótica.

Olhei para trás, querendo perguntar o que Ruan queria, mas ele estava flertando com Amanda, uma jovem  ruiva da minha turma. Ela era  charmosa, mas o que mais me irritava era o jeito descomplicado com que ele fazia isso, sem nem perceber o desconforto que me causava. Bufei e, quase sem pensar, o puxei pelo braço levemente.

—  Nem vem! Você me chamou pra comer, eu tô com fome. Não vou ficar sozinho só porque você quer dar uma de pegador agora —  falei, já escolhendo meu lanche: um sanduíche natural e um suco de maracujá.

Ruan soltou um suspiro, mas concordou em me acompanhar. Ele gostava de Amanda, mas estava claro que ela não estava muito interessada em suas investidas . Ele pegou seu lanche também - um hambúrguer e uma lata de refrigerante, sempre mantendo o estilo "prático e  rápido". Pagamos no caixa, o som das moedas tilintando enquanto entregávamos o dinheiro, e logo seguimos para as mesas.

Assim que nos sentamos, Amanda, que estava por perto, fez questão de provocar ainda mais. Com um sorriso leve,se aproximou de mim e, em vez de dar atenção a Ruan,me estendeu um sanduíche envolto em papel alumínio.

— Quer, Leo? Eu mesma que fiz —

disse, com um sorriso natural, enquanto me oferecia o sanduíche caseiro de peito de peru, que parecia bem mais apetitoso do que o lanche comprado na cantina.

— Valeu, Amanda, mas já comprei o meu.

Ela deu de ombros sorrindo novamente, voltando para o grupo de amigos. Ruan resmungou, visivelmente incomodado, enquanto eu tentava esconder uma risada.

Comecei a comer meu sanduíche, o som suave do papel se desfazendo enquanto o desembrulhava. Ao meu lado, Ruan mordia seu hambúrguer com mais raiva do que fome, ainda meio irritado pela cena com Amanda.

Ele suspirou, olhando para mim como se estivesse tentando decifrar um mistério.

—  Poxa, cara, como você consegue toda essa atenção? E não é só das garotas.

—  Não sei do que você tá falando. O que quer dizer com isso, Ruan? —  perguntei, mordendo meu lanche e tentando parecer despreocupado.

Ruan deu uma grande mordida no hambúrguer, mastigando devagar antes de responder:

—  É inacreditável como todo mundo te adora. Se você tá por perto, já era minhas chances com as garotas.

Sabia que as pessoas se sentiam atraídas pela minha aparência, e que isso chamava a atenção tanto das meninas quanto, para o meu total desconforto,dos meninos também. Não era uma novidade, mas ouvir Ruan falar sobre isso me deixava ainda mais apreensivo, considerando que em breve estaria em um ambiente onde isso só seria mais intenso, por causa do meu "acordo" infeliz com Otávio.

Enquanto tentava voltar a focar no meu lanche, Ruan continuou, aparentemente decidido a mexer em todas as minhas inseguranças. Ele deu uma risada leve antes de dizer:

— Cara, lembra do André?

Quase engasguei na hora, tossindo sem parar. Ruan sabia exatamente o que estava fazendo ao mencionar esse nome. André era um dos meninos do time de futebol do outro colégio com quem tínhamos jogado no ano passado . Ruan e eu jogávamos no mesmo time, mas geralmente ficava no banco. Não que eu jogasse mal, mas não era exatamente o melhor em campo. Parecia que o treinador, senhor Soares , me mantinha ali mais pela aparência do que pelo desempenho, para atrair torcida.

Naquele dia específico de que ele  falava, nosso colega Valter tinha torcido o pé, e eu fui chamado para substituir  . O jogo estava tenso, e eu estava focado, mas notei que, de vez em quando, André, com aqueles olhos cor de avelã , me olhava de um jeito que me deixava desconfortável. Achei que era só coisa da minha cabeça e continuei o jogo. Porém, ao final, para minha completa surpresa, ele se aproximou de mim. Estava com o uniforme do time, a braçadeira de capitão no braço direito e a bola na mão. Com todo o time ao redor e os olhares curiosos em nossa direção, simplesmente declarou:

—  Eu te amo.

A lembrança ainda me fazia sentir aquele misto de constrangimento e perplexidade. Que situação maluca! Eu nem o conhecia direito, e além disso, não sentia atração por homens. Mesmo assim, o comentário de André ficou gravado na minha memória como uma situação bizarra, da qual preferia não recodar .

Desviei o olhar, tentando disfarçar a vergonha, e voltei a mastigar meu lanche em silêncio, enquanto Ruan continuava a rir da minha reação.

— O que tem ele, Ruan?— perguntei, finalmente.

—  Que tem ele? Até hoje não acredito que ele ficou cativado por você do nada, mesmo sendo hétero e você também. Sua aparência é letal, é só o que quero dizer.

A ideia de ser visto como"irresistível" até para homens  era, no mínimo, desconcertante. Cresci ouvindo meu pai, com toda sua convicção, condenar qualquer comportamento que ele considerasse "fora do padrão". Sempre fui cercado por aquela visão , uma crença rígida de que o mundo era dividido em preto e branco, certo e errado, sem espaço para meio-termos.

Por mais que não compartilhasse das suas ideias  - inclusive discordasse e tivesse dito para Ruan e outros amigos que não via nada de errado com ninguém ser quem realmente é - era como se uma parte de mim, impregnada pelo pensamento do meu pai, ainda não conseguisse relaxar completamente. Havia algo dentro da minha mente que hesitava, algo que ficava sempre ali, sussurrando ao meu ouvido: "Isso não é pra você."

Talvez fosse essa voz, um eco dos valores rígidos que ele plantou, que me fazia evitar pensar em relacionamentos ou atração por outros caras, mesmo que minha mente racional dissesse que era bobagem. Meu pai sempre deixava claro que ou você era de um jeito ou de outro, sem misturas, sem exceções. Então, me convenci: eu era hétero, e ponto.

— Será que podemos falar de outro assunto? Não sou muito fã desse tema aí. Vamos comer antes que o intervalo acabe? —  falei, me mexendo desconfortável na cadeira.

Ruan deu de ombros e voltou a comer seu lanche, sem tocar mais na questão . Que para mim, era delicado como cristal. Já não sentia gosto dos alimentos por causa do problema com Otávio, e aí vem meu amigo desenterrar um assunto antigo. Logo esse, sobre um homem sarado, que disse estar apaixonado à primeira vista. Não acredito em amor à primeira vista. Acho que você vai gostando da pessoa com o tempo, talvez sinta atração, mas amor? Para mim, isso não existe. Além do mais, não quero namorar um homem .

Terminamos o lanche em um silêncio desconfortável.Quem precisa de inimigos quando se tem o Ruan como amigo? Já na porta da minha sala, antes do sinal bater para continuar com as torturas das aulas de fim de ano, ele diz:

—  Até a lésbica do segundo ano, a Lara, quis te namorar. Isso é prova mais que suficiente de quanto você é mortal e lindo.

Olhei para ele, indignado.

—  Você está insuportável hoje, sabia?

— Ah, só estava  lembrando quanto meu amigo é avassalador. A propósito, você não me respondeu: para qual faculdade vai quando o ano acabar?

Ele entra na minha sala e se senta na cadeira à frente, na expectativa de esperar o professor chegar pra tirar ele da sala. Novamente, Ruan me leva ao lugar escuro e sombrio do meu acordo com Otávio. Devo estar suando frio, mas nem em um milhão de anos falaria sobre isso. Já é humilhante o suficiente que, no próximo ano, tenha que fingir ser gay para estudar em um lugar onde ser hétero é motivo de xingamento.

Respondi, fingindo não estar morto de medo de ser descoberto :

—  Ah, ainda não sei. Tô meio indeciso, mas tem tempo ainda, né?

Ele me encara com seus grandes olhos onix , fixos em mim, como se tentasse ler meus pensamentos.

— Que diabos, Leonardo, é seu futuro, cara! Não dá pra enrolar assim. Você sabe ou vai deixar seu pai decidir por você?

Balanço a cabeça, e a verdade é que, de certa forma, meu pai decidiu. E Otávio Alburquerque deu a martelada final na minha cabeça, minha sentença de morte.

Mas antes de formular qualquer mentira deslavada, o sinal toca, e o professor entra na sala, fazendo Ruan sair. Nunca me senti tão feliz por ter aula quanto naquele momento. Além de não querer contar sobre a faculdade Rainbow não podia. Fazia parte do acordo entre mim e Otávio Alburquerque: mentir para todos os meus amigos. Essa era a minha vida agora, e seria assim por longos anos .

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.🌱Pomhy.☕

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Minha fuga favorita.

2025-02-06

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