Troca perigosa.

...Léo....

Acordei com o som insistente do telefone ecoando pelo quarto. A luz do sol, filtrada pelas cortinas, iluminava o espaço de forma quase irritante. O toque parecia amplificado, como se o silêncio da casa o tornasse mais agudo.

Levantei, jogando as cobertas para o lado, e desci as escadas, que rangiam suavemente. A casa, imponente e luxuosa, estava banhada pela luz dourada do sol, mas o ambiente parecia frio. Ao chegar ao pé da escada, ouvi meu pai falando ao telefone com a voz tensa.

— Três dias... é só isso? — retrucou, antes de desligar bruscamente.

Me aproximei, o peito apertado. Meu olhar fixou-se em seu rosto.

— O que foi, pai? Você está com uma cara péssima. O que é isso de "três dias"?

Ele respirou fundo, mas cada linha de seu rosto entregava o turbilhão de emoções contido. As mãos apertaram a borda da camisa.

— Acho... que o Albuquerque já deu o ultimato. O banco está pedindo o pagamento total da dívida que fiz para a empresa. Temos três dias ou vão tomar a nossa casa.

Um frio pesado espalhou-se pelo meu estômago. Mesmo esperando por isso, as palavras ainda tinham um peso forte.

— Porra... — murmurei, tentando absorver o que aquilo significava.

— Não começa, Leo — respondeu, evitando meu olhar e virando as costas.

Nos dois dias seguintes, ele envolveu-se em uma correria incessante, entrando e saindo de casa. A cada vez que cruzava a porta, era como se a esperança se rompessem mais. O olhar em seus olhos dizia tudo: as respostas continuavam as mesmas, e ninguém na cidade ousava interferir.

Na manhã de segunda-feira, vesti o meu uniforme em silêncio e caminhei até a cozinha. Parei na porta, observando-o mexer distraidamente na xícara de café quase intocada. As marcas de exaustão no rosto pareciam tê-lo envelhecido anos em poucos dias.

Fiquei ali, sem ousar falar, apenas observando. Ele nem me viu, perdido em seus pensamentos. Peguei minha mochila e saí, preferindo pegar o metrô até o colégio.

No colégio, as aulas passaram como um borrão. As palavras dos professores flutuavam ao meu redor, sem se fixarem. Nada do que diziam parecia importar. Na minha cabeça, só um pensamento persistia: o prazo do banco estava terminando.

Estava tão absorto que só percebi o empurrão de Ruan no meu ombro quando a aula acabou.

— O que foi, cara? Qual o seu problema?

Suspirei, tentando organizar os pensamentos.

— Estou preocupado, Ruan. O prazo do banco acaba amanhã.

— Poxa, cara, que tenso... Como está seu pai?

Olhei para o chão, chutando uma pedrinha enquanto andávamos.

— Está tenso. E, olha, ele merece... Mas, ao mesmo tempo, é meu pai. E nessa idade? Fora que, se ele acabar na rua, eu também vou. E com o Otávio Albuquerque envolvido, qualquer chance de trabalho vai pro ralo.

Enquanto caminhávamos pela rua, algo no estacionamento próximo me chamou a atenção. Era uma figura familiar, e a visão fez meu coração disparar.

Ele estava parado ao lado de um Porsche Panamera preto, impecável, suas linhas aerodinâmicas e imponentes. Sem pensar duas vezes, saí correndo em direção ao carro, ignorando o chamado de Ruan.

— Espera! — gritei, a voz embargada.

Ele parou, virando-se lentamente para me encarar. Estava com uma expressão de curiosidade cautelosa, a mão ainda na maçaneta do carro. Ele usava um moletom cinza claro que, apesar de casual, gritava luxo. O tecido parecia macio, de alguma marca exclusiva, e os tênis brancos nos pés eram de um design tão minimalista quanto caro.

O contraste entre nós dois era evidente. Eu, com a camisa do uniforme amassada e os tênis já desgastados - meu favorito, apesar do tempo de uso - correndo desesperado, e ele, parado ali, imponente, com o ar de quem sabia exatamente o peso que carregava. Tanto pelo carro luxuoso, quanto o do sobrenome que carregava como uma coroa.

Quando me aproximei, ofegante, as pernas queimando e o peito apertado, ele apenas ergueu uma sobrancelha, me estudando de cima a baixo. Seu olhar parecia medir cada parte minha, como se tentasse entender o que alguém como eu estava fazendo ali, se atrevendo a se aproximar.

— Talvez você não se lembre de mim — falei , tentando recuperar o fôlego da corrida.— Mas sou filho do homem que ofendeu você e sua mãe. Por favor, estou implorando. Pare de atormentar meu pai.

— Pelo que me lembro, seu pai já foi perdoado. Não estou fazendo nada contra ele.

Aquela resposta me pegou de surpresa, mas ao olhar para sua expressão, parecia que realmente não sabia da pressão que Otávio estava exercendo sobre nossa família. Falei rapidamente sobre a cobrança, como o prazo que antes era algo distante, agora estava se resumindo a apenas dias, e como até a nossa casa estava em jogo.

Ele suspirou, passando a mão pelo rosto.

— Eu deveria saber... típico do Otávio fazer essas coisas. Vem, vamos falar com ele.

A maneira como se virou para abrir a porta do carro fez meu estômago revirar. Quase não consegui processar que, finalmente, havia uma chance real.

— Qual o seu nome, garoto?

— Leonardo Montenegro, mas ...mas me chamam de Leo. E o seu?

— Matheus Cavalcante. Otávio está no Hotel Mayson Royal.

— Esse hotel é um dos milhares que ele tem aqui em Vale Azul, né? Fora os outros pelo país todo.

— Você é bem informado, Leo. É um dos menores, para falar a verdade. Ele gosta da cobertura porque é mais discreto.

A resposta de Matheus veio tranquila, como se estivesse apenas falando sobre um hotel qualquer. Mas, para mim, cada palavra estava carregada de um peso que mal conseguia compreender. Disfarçando o tremor nas mãos, olhei pela janela enquanto o carro dobrava uma esquina luxuosa.

Quando vi o hotel, meu queixo quase caiu. Erguia-se como uma torre de vidro e concreto, refletindo o céu azul e as nuvens em sua fachada brilhante.

Matheus estacionou em frente à entrada e saiu rapidamente do carro, indo direto para o elevador. Tive que acelerar o ritmo para acompanhá-lo.

— Foi mal. O Otávio não quer que ninguém saiba que ele está aqui — explicou, apertando o botão do último andar para a cobertura.

— Entendo. Não vou falar para ninguém .

O elevador era revestido por um aço polido que refletia cada movimento nosso. Me vi no reflexo, com as expressões tensas e a preocupação estampada no rosto. Cada detalhe parecia amplificado: o desgaste nos meus tênis, os meus olhos azuis com olheiras profundas eram um retrato fiel do estresse das últimas semanas, e o meu cabelo loiro estava bagunçado de tanto passar a mão, como se tentasse aliviar a pressão mental que não parecia se dissipar. O cheiro suave de perfume floral preenchia o ar, talvez lavanda ou jasmim, algo leve, mas que, invés de me acalmar, só intensificava a sensação de claustrofobia.

Matheus percebeu minha expressão rígida e, com um gesto simples, colocou a mão no meu ombro.

— Não fica tão nervoso. Vou fazer o Otávio te ouvir.

"Fácil pra você, Matheus. Não é o seu que está na reta," pensei, forçando minha respiração a se estabilizar.

Depois de minutos que pareceram séculos, o elevador finalmente se abriu. Saí para um andar silencioso, onde uma única e enorme suíte me aguardava no fim do corredor.

Matheus abriu uma porta de madeira marrom e entrou sem hesitar. Segui-o para dentro da suíte, onde o luxo parecia ir além.

— Otávio! — Matheus gritou, sua voz ecoando pela sala.

Olhei ao redor, impressionado com a imponência do ambiente. Sofás brancos, quase cegantes, ocupavam boa parte do espaço, com almofadas que pareciam mais decorativas do que funcionais. O tapete de veludo cinza se estendia pelo piso, tão macio que parecia ser feito de nuvens. A luz suave que vinha das lâmpadas de cristal penduradas no teto refletia na mobília polida e nas obras de arte caras que decoravam as paredes, mas nada parecia tão impactante quanto a cena à minha frente.

Otávio apareceu, esfregando os olhos como se estivesse tentando despertar, descalço e de pijamas. Ele bocejou, ainda sem me notar, sua postura relaxada completamente. Não havia pressa, nem preocupação em seus movimentos,como se o tempo estivesse ao seu favor e tivesse o poder de decidir quando as coisas aconteceriam e de certa forma com toda fortuna que possui era de fato verdade.

— Amor, por que você está gritando? O que houve?— A voz de Otávio veio baixa e sonolenta.

— Temos visita — Matheus comentou , apontando para mim de forma casual, como se a situação fosse trivial.

— Leonardo Montenegro. A que devo a honra da visita?

Otávio não precisou revirar os olhos para deixar claro o quanto minha presença o irritava. Seu lábio se repuxou em um esboço de desdém, enquanto cruzava os braços, como se erguesse uma barreira.

Era óbvio que ele sabia quem eu era. Não havia como não saber. Afinal, tinha feito da vida do meu pai um verdadeiro inferno, deixando claro que estava disposto a destruir tudo o que ele tinha construído.

Matheus cruzou os braços, encarando Otávio com uma expressão séria.

— Mesmo sabendo a resposta, quero entender. Você está causando problemas para os negócios do pai dele? E até ameaçou tomar a casa deles? Poxa, amor...

— Sim, Matheus. Estou fazendo isso.

Fiquei em silêncio por um momento, tentando processar aquela resposta, mesmo já sabendo que tinha sido ele. Estava sem acreditar no que ouvia. Mas então, cansado de ser espectador da cena, e munido de uma coragem que nunca tinha tido, decidi tomar a palavra.

— Por favor, senhor Albuquerque, perdoe meu pai. Não aguento mais vê-lo definhar na minha frente.

Otávio me olhou com aquele sorriso sádico, algo que parecia ter saído de um filme de terror.

— Muito bem, garoto, está perdoado.

Aquelas palavras me surpreenderam. Meu corpo relaxou, uma onda de alívio me invadiu.

— Obrigado... muito obrigado, senhor!

Mas antes que pudesse me deixar levar pela leveza do momento, Otávio levantou a mão, interrompendo minha pequena felicidade.

— Ainda não terminei. Acho que há algo que você poderia fazer em troca.

O alívio evaporou instantaneamente, e meu estômago se revirou e sensação de pavor tornou conta. Aquele sorriso em seu rosto nunca foi bom. Era sempre uma promessa de algo mais sombrio.

— Qualquer coisa .

— É verdade que você vai se formar no fim deste ano?

Engoli seco, meu corpo todo se tencionando ainda mas com a pergunta.

— Sim, estarei me formando no ensino médio no fim do ano.

Otávio sorriu de forma satisfeita, como se tivesse alcançado exatamente o que queria.

— Ótimo. Então quero que você se matricule na Faculdade Rainbow por no mínimo dois anos.

Essas palavras caíram como pedra no meu estômago. A Faculdade Rainbow... O que ele queria com isso?

— Como você pode me pedir uma coisa dessas? — falei mais para mim mesmo, com a voz trêmula.

O olhar de Otávio parecia implacável. Matheus, até então quieto, parecia desconfortável, mas não fez nada para intervir - talvez nem conseguisse. O namorado dele parecia determinado.

Respirei fundo, tentando organizar meus pensamentos, mas tudo o que conseguia enxergar era um futuro incerto, apertado, dentro de uma vida que nunca escolhi. E a pergunta que persistia: o que Otávio realmente queria? Ele estava tentando me humilhar? Ou havia algo mais por trás de tudo isso?

— Tá... mas você vai parar de perseguir meu pai agora?

Otávio pra mim olhou com aquele sorriso vitorioso, como se tivesse acabado de lançar uma isca e tivesse mordido.

— Perfeito. Vou providenciar sua carta de admissão. E você cuide da papelada. Lembre-se: não seja descoberto.

Sai do apartamento sem dizer uma palavra. Minha cabeça estava a mil. Estava ciente de que meu pai nunca entenderia o que acabara de acontecer, mesmo que tudo fosse culpa daquele maldito dia. A única coisa que eu tinha certeza era que faria tudo que fosse possível para resolver nossa situação. E, de alguma forma, isso me fez sentir ainda mais preso nesse ciclo insano que Otávio havia criado. Meu pai, com sua visão distorcida, parecia ser uma parte fundamental do que estava me prendendo.

A carta de admissão para a faculdade Rainbow... aquilo era vingança final de Otávio. Uma forma de manter o controle, de me fazer entrar em um mundo que, com certeza, seria ainda mais difícil de encarar. E o pior: se eu não seguisse as regras, o que aconteceria com meu pai?

A gravidade da situação parecia infiltrar-se em meus ossos. Relutava em fazer aquilo, mas não enxergava outra saída.

O peso da responsabilidade me esmagava, e, no fundo, entendia que estava prestes a tomar um caminho que me afastaria ainda mais do que eu imaginava ser possível. A culpa de tudo isso era do meu próprio sangue de estar indo para faculdade LGVTQIA+.

O que seria de mim, da minha vida, dos meus sonhos, se realmente tivesse que seguir as regras de Otávio? O que aconteceria quando o meu pai soubesse da carta, quando soubesse que estava me aproximando de tudo o que ele odiava? Não sabia se tinha coragem de enfrentar essas respostas, mas uma coisa era certa: o meu destino estava sendo moldado e eu não tinha nenhum controle sobre ele.

...Nota da autora:...

Queridos leitores,

Gostaria de compartilhar o significado de dois elementos importantes que aparecem neste capítulo:

LGBTQIA+: Essa sigla representa diferentes orientações sexuais e identidades de gênero:

L: Lésbicas

G: Gays

B: Bissexuais

T: Transgêneros

Q: Queer ou Questionando

I: Intersexuais

A + abrange outras identidades e orientações, como pansexuais e assexuais, promovendo inclusão e diversidade.

Rainbow (Arco-Íris): Um símbolo universal da diversidade, esperança e inclusão. Ele representa a pluralidade de identidades e a beleza de viver em um mundo cheio de cores e diferenças.

Espero que esses significados tornem a leitura ainda mais especial e inspiradora!

Com carinho,Deinha.

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