A noite de Natal desceu sobre a fazenda como uma bênção silenciosa, cobrindo tudo com um véu de alegria e uma luz dourada que refletia a esperança de tempos melhores. A decoração estava impecável: guirlandas verdes adornavam cada porta, enquanto luzes pisca-pisca decoravam os galhos das árvores do pátio. A casa, que outrora parecia carregada de sombras e silêncio, agora estava viva com risos e música. O som das vozes misturava-se ao eco das canções natalinas, criando uma atmosfera quase mágica.
No salão principal, uma árvore de Natal enorme brilhava, com bolas vermelhas e douradas penduradas cuidadosamente por Ayana e suas amigas. A mesa central estava abarrotada de comida. Havia pratos de peru assado, frutas frescas, vinhos finos e sobremesas elaboradas, como se todas as dificuldades dos anos anteriores tivessem sido esquecidas por uma noite. E talvez fossem. Para todos, exceto para mim.
Ayana estava deslumbrante, irradiando luz em seu vestido de cetim branco que caía delicadamente até os pés, como se tivesse sido feito sob medida para realçar a pureza de sua alma. Ela dançava, rodopiando entre os amigos, seus cabelos soltos acompanhando os movimentos, o rosto rosado pelo calor da festa e pela felicidade que transbordava. Era um contraste tão intenso em relação aos anos de angústia e trabalho duro que, por um momento, parecia que o passado havia sido apagado.
Eu também estava vestida para a ocasião, algo que há muito tempo não fazia. Um vestido longo de seda vermelha, simples, mas elegante, moldava meu corpo de uma forma que eu não estava acostumada. A sensação do tecido fino contra minha pele era estranha, quase desconfortável, como se estivesse vestindo uma pele que não era minha. O cabelo preso em um coque delicado, com algumas mechas soltas, dava um toque de suavidade ao meu semblante, mas por dentro, eu me sentia distanciada de toda aquela alegria.
Os trabalhadores estavam todos lá, suas famílias reunidas e seus filhos correndo pelo pátio, brincando com presentes que, até poucos dias atrás, pareciam sonhos inalcançáveis. Marinho e Pedro estavam animados, como sempre, mas também havia algo de diferente neles — um brilho nos olhos que falava de um futuro que todos eles agora viam de forma mais clara e promissora.
A festa estava linda. Perfeita. Todos tinham algo a comemorar.
Mas, apesar de toda aquela felicidade que se espalhava pela fazenda, eu não conseguia sentir a mesma coisa. Estava encostada em um canto, observando os outros se divertirem, o coração apertado. Um turbilhão de pensamentos me puxava para longe dali, para a escuridão de lembranças que eu tentava evitar. O som da música parecia distante, abafado pelo peso que carregava no peito.
— Suraya… a que preço? — murmurei para mim mesma, quase sem perceber. O nome da minha irmã parecia sempre estar preso à minha garganta, pronto para escapar a qualquer momento.
A dor de sua ausência era um buraco que nada podia preencher, nem mesmo as vitórias recentes. A nossa fazenda estava renascendo, os trabalhadores estavam felizes, o futuro parecia brilhante, mas Suraya… ela estava perdida, longe, presa, pagando um preço alto demais por algo que nunca deveria ter acontecido. E, no fundo, eu sabia que tudo aquilo tinha um preço.
Na tarde anterior, eu aida me lembro quando reuni com todos os trabalhadores no escritório. Era um momento crucial. Eu havia recebido os 10% do contrato inicial pelo café armazenado, e sabia que aquele dinheiro não era só meu. A fazenda só tinha chegado até ali porque eles trabalharam lado a lado comigo, em cada colheita, em cada dia difícil.
Enquanto eles se reuniam à minha frente, pude ver a expectativa em seus rostos. Novo tempo, novos dias — essas foram as palavras que ecoaram na sala enquanto eu lhes falava. Expliquei como as coisas mudariam, como o dinheiro que havíamos recebido seria dividido.
Coloquei cada envelope em suas mãos, como fazia no final de cada mês, mas dessa vez, o valor era diferente. Muito maior. Quando abriam os envelopes, vi as expressões de surpresa se espalharem entre eles, e senti uma onda de alívio. Eles mereciam aquilo, cada centavo.
— Isso é mais do que podíamos sonhar, — disse Seu Chico, com a voz embargada. — Eu nunca pensei que veríamos dias assim de novo, Srta. Anaya.
— Vocês fizeram isso acontecer, — respondi, sentindo o peso das palavras. Sem vocês, essa fazenda já teria se perdido.
Foi um momento de reconhecimento mútuo, de alívio. Mas, ao mesmo tempo, um eco de incerteza persistia. Eu sabia que o futuro prometia dias melhores, mas também sabia que o passado ainda nos perseguia. O peso do que carregávamos não se dissiparia tão facilmente.
Agora, enquanto observava a festa, o eco daquela reunião ainda ressoava dentro de mim. A casa estava cheia de vida. Sr. Severino e Seu Chico conversavam animadamente perto da lareira, rindo de piadas antigas. As irmãs Inês e Rosa dançavam com seus filhos, enquanto os outros trabalhadores, mesmo os que estavam ali sem família, se divertiam com amigos. Havia vida em cada canto.
Mas a escuridão do meu pai pairava sobre a festa como uma sombra invisível. Eu ainda não conseguia olhá-lo nos olhos. Não conseguia ignorar o que ele havia feito, o que nos havia custado. E, ao lembrar de Suraya, a dor apenas aumentava. Tudo o que estávamos vivendo agora — a casa decorada, os risos, os brindes — era resultado de decisões que ele havia tomado. Decisões que destruíram a nossa família.
Então, mesmo com o som da música ecoando pela casa, algo me puxou de volta à realidade de forma abrupta. Uma voz vinda do corredor.
Era a voz de Ayana.
Meu coração apertou de imediato. Virei-me para procurar minha irmã no meio da multidão. Ela estava ali há um momento, dançando, rindo, mas agora…
— Onde está Ayana? — perguntei em voz alta, a ansiedade crescendo no peito.
Marinho e Pedro notaram minha expressão e correram à minha frente. Fui logo atrás, seguindo-os pelo corredor escuro, até que vi quando entraram no quarto do meu pai. Parei na porta, o coração martelando no peito, e fiquei congelada ao ver a cena.
Ayana estava de joelhos, chorando desesperada ao lado da cama. Meu pai estava caído no chão, seu corpo inerte, comprimidos espalhados ao redor dele.
— Papai… não responde! — Ayana soluçava, tentando sacudi-lo, na esperança de alguma reação. Eu o encontrei assim!
Meu mundo desmoronou naquele instante. O terno azul escuro que Ayana havia escolhido para ele estava impecável, como se ele estivesse se preparando para uma ocasião especial. Mas ele não havia vindo para a festa. Ele fugiu, mais uma vez, como sempre fazia.
Marinho e Pedro tentavam animá-lo, verificando o pulso, mas as expressões deles deixavam claro o que eu já sabia. Não havia mais vida ali.
Seu Chico e Sr. Severino, amigos de longa data de meu pai, aproximaram-se devagar. — Acabou. Não há mais o que fazer. — A voz de Seu Chico estava pesada de tristeza. A espuma saindo da boca de meu pai e seus olhos brancos, fixos, diziam tudo.
E foi ali, na penumbra do quarto, enquanto observava aquele corpo inerte no chão, que me dei conta de algo. Ele sorria. Sim, aquele sorriso cínico estava ali, congelado no rosto dele, como se, no fim, ele tivesse conseguido o que queria. Um alívio egoísta, talvez.
Eu senti o chão desaparecer sob meus pés. Mesmo nos momentos em que pensava que tudo estava indo bem, que finalmente havíamos superado as sombras do passado, havia sempre algo, uma sombra, um preço que precisava ser pago.
— Olha só, papai… — sussurrei, com a voz quebrada. A que preço o seu silêncio te custou?
A noite de Natal, que havia começado tão cheia de vida, terminou mergulhada na escuridão. Mesmo com o renascimento da fazenda, com o futuro promissor à nossa frente, as sombras do passado não podiam ser esquecidas. E eu sabia, naquele momento, que nossa jornada ainda estava longe de terminar.
Os Monteiros, afinal, pareciam destinados a carregar essa maldição.
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Atualizado até capítulo 22
Comments
Lucilene Palheta
coitadas nem um momento feliz podem ter , a velho desgraçado pq não morreu depois kkkk
2024-12-09
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