O sol mal havia subido, e eu já estava no campo. O ar ainda carregava o cheiro úmido da madrugada, e a névoa começava a se dissipar lentamente, como se o mundo estivesse despertando de um longo e pesado sonho. Olho para a plantação de milho à minha frente e sinto um aperto no peito. Não é uma visão animadora. As folhas secas, quebradiças, quase me fazem querer desistir antes mesmo de começar.
Mas desistir não é uma opção. Nunca foi.
A fazenda Lemos Monteiro, que já foi uma das maiores em Belo Monte, hoje é um reflexo de seu próprio declínio. Onde antes havia campos intermináveis de milho e pastos férteis, agora restam apenas algumas pequenas extensões de terra que lutam para sobreviver. Vendemos pedaços da fazenda ao longo dos anos, na tentativa desesperada de tratar minha mãe. Tudo por nada. A cada pedaço de terra que vendíamos, era como se uma parte de nós também fosse embora, mas quem diria isso para meu pai? Ele acreditava que salvar Bianca salvaria a todos nós.
Mas não salvou. E agora tudo o que restou foi isso.
O milho está longe do que já foi um dia. As espigas são pequenas, fracas, quase como se não tivessem a coragem de crescer totalmente. E a verdade é que eu não as culpo. Nem eu teria coragem, se estivesse no lugar delas.
— Dona Anaya!
A voz de Chico me tira dos meus pensamentos. Chico é um dos poucos trabalhadores que ainda restam na fazenda. Um homem forte, com mãos calejadas e um coração maior do que a própria plantação de milho. Ele me olha com aquele sorriso torto, sempre tentando encontrar algum consolo nas coisas mais banais. Mas hoje, nem ele parece estar conseguindo.
— O que foi, Chico? — pergunto, sabendo que nada de bom virá daquela conversa.
Ele esfrega a nuca, desconfortável.
— A colheita desse ano... tá minguada. Não sei se vai dar pra suprir as encomendas de setembro. O milho tá muito fraco, e a seca do mês passado só piorou tudo.
Eu suspiro, tentando não deixar a frustração transparecer. Mas é impossível. Tudo ao nosso redor parece estar ruindo, e cada dia surge um novo problema.
— Eu sei, Chico. Vamos ter que dar um jeito.
— Talvez, se a gente adubasse mais essas áreas aqui perto do riacho... — ele sugere, sempre tentando encontrar soluções.
Eu olho para o pedaço de terra que ele aponta, perto do riacho que divide nossas terras da fazenda Lá Rosa. A água corre tranquila, indiferente à nossa luta. Sempre tão serena. Eu quase invejo o riacho pela sua imperturbável paciência. Se eu pudesse ser assim, talvez as coisas fossem diferentes.
— Vamos tentar isso, então — respondo, sabendo que é apenas mais uma tentativa desesperada em meio a tantas outras.
Ao longe, vejo os outros trabalhadores da fazenda. Além de Chico, temos o Silvano, um homem quieto que raramente fala, mas trabalha com uma precisão quase mecânica. Ele é o mais antigo entre nós, e se eu não soubesse o quanto a vida foi dura para ele, até acreditaria que ele já desistiu por completo. Do lado oposto, Rosa e Inês trabalham juntas, duas irmãs que não têm medo de colocar as mãos na terra, mas que, nos últimos tempos, também parecem tão desanimadas quanto a plantação que cuidam.
E então, há Marinho e o jovem Pedro. Marinho, com sua voz sempre animada, é o único que ainda tenta alegrar o dia com suas histórias exageradas, e Pedro, com seus olhos sempre curiosos, ainda tem aquela chama de juventude que o tempo ainda não apagou. Mas, ao olhar para eles, tudo o que consigo pensar é em como nossas fileiras estão tão minguadas quanto nossa colheita.
O campo está silencioso, salvo pelos sons esporádicos das enxadas rasgando a terra. O trabalho mecânico, repetitivo, quase me faz esquecer o caos que me espera em casa, até que Chico volta a falar.
— E o senhor Gustavo? Como ele tá?
Eu hesito, porque a verdade é que ele não está. Meu pai está lá, em algum lugar entre a vida e a lembrança. Mas já faz tempo que não o sinto realmente presente. Ele se tornou uma sombra, alguém que não reconheço mais. Eu gostaria de dizer que ele está melhorando, mas não posso mentir.
— Ele... está como sempre — respondo, sem olhar para Chico. — Passa os dias na varanda. Não fala muito. Só... está lá.
Chico assente, um olhar de pena se formando em seus olhos, mas ele não diz nada. Eu prefiro assim. Não tenho mais paciência para os olhares de piedade. Não é de piedade que preciso, é de soluções. Mas essas, assim como as colheitas boas, parecem cada vez mais distantes.
O dia se arrasta, e o calor aumenta conforme o sol finalmente decide aparecer por completo. Eu e os outros fazemos o que podemos, mas, com poucos trabalhadores e poucos recursos, nossas forças parecem insuficientes para lutar contra a terra. A tarde chega como uma benção, trazendo com ela o alívio de que, pelo menos por hoje, conseguimos fazer alguma coisa. Mesmo que seja pouco.
Caminho de volta para casa com o corpo pesado, sentindo cada músculo protestar contra o esforço. Já na varanda, vejo Ayana chegando com a professora Marta ao seu lado. O rosto de Ayana está fechado, e Marta tem aquele olhar de quem vai me trazer problemas. Algo aconteceu.
— Anaya, preciso falar com você — diz Marta, puxando Ayana levemente pelo braço, enquanto minha irmã tenta desviar o olhar.
"Ótimo," penso. Mais um problema para resolver. Porque, aparentemente, os problemas nunca se cansam de aparecer.
— O que houve? — pergunto, tentando manter a calma enquanto olho para Ayana.
Marta solta um suspiro, ajeitando os óculos no rosto.
— Ayana brigou com uma colega na escola hoje. As duas se enfrentaram no pátio, e foi preciso separar as duas à força. Fiquei preocupada com o comportamento dela.
Sinto um peso maior no peito. Era só o que faltava. Ayana brigando na escola.
— Ayana? — pergunto, a voz um pouco mais firme do que eu pretendia. — O que aconteceu?
Ela finalmente levanta o olhar, os olhos furiosos, mas também... machucados.
— Ela disse que a mamãe morreu por nossa culpa. Que a nossa família está acabada. Eu só... eu só perdi a paciência.
É como se uma lâmina invisível me cortasse por dentro. Sinto raiva, tristeza e, ao mesmo tempo, uma profunda impotência. Como posso dizer a ela que aquilo não era verdade, quando, no fundo, eu mesma já me perguntei a mesma coisa?
Respiro fundo, tentando encontrar palavras que façam sentido. Mas tudo o que consigo dizer é:
— Ayana, isso não resolve nada. Não adianta brigar.
Ela abaixa a cabeça, e o silêncio se instala entre nós. Marta nos observa, mas eu estou cansada demais para dar qualquer justificativa.
Depois que Marta vai embora, fico com Ayana na varanda, observando o sol se pondo lentamente, como se o dia estivesse se despedindo de nós.
— Não é fácil, eu sei — digo, finalmente, sem olhar diretamente para ela. — Mas brigar não vai mudar nada. O que aconteceu com a mamãe... com a nossa família... já foi.
Ela não responde, e ficamos assim, lado a lado, imersas no nosso próprio silêncio. O vento sopra suave, e, por um breve momento, penso que talvez, só talvez, amanhã possa ser diferente.
Mas, no fundo, eu sei que será apenas mais um dia igual a este.
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Atualizado até capítulo 22
Comments
Cecilia geralda Geralda ramos
que tristeza de vida pobre meninas .a falta de uma mãe é triste,e o pai já desistiu da vida torna tudo pior.
2025-01-14
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Edilena Almeida
meu Deus que vida sofrida dessa família, tudo isso por causa de um pai viciado, primeiro perdeu a filha mais velha no jogo, depois perdeu a esposa pelo o que ele fez com a filha mais velha e agora está definhando na presença das filhas que ficaram,estão se sacrificando para não perder o quê lhes restam,só sofrimento, quando elas vão ser felizes.
2024-10-14
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