Sombras Profundas

A televisão ainda piscava em frente a mim, com a imagem de Suraya Lemos Monteiro sendo repetida a cada instante. Os repórteres se deliciavam em pintar minha irmã como uma vilã. “Envenenou o marido”, diziam. A Suraya de quem falavam não parecia a mesma que eu conhecia, ou, pelo menos, a que eu me lembrava. Minha irmã, forçada a casar com aquele homem muito mais velho, sacrificada para salvar a fazenda. A última vez que a vi foi naquele dia, quando ela partiu sem olhar para trás, levada como uma prisioneira para um futuro do qual ela não podia escapar.

“Suraya... minha irmã...” sussurrei, sentindo meu corpo enfraquecer diante da magnitude daquelas palavras.

Eu queria gritar, quebrar a televisão e arrancar aquela realidade cruel das minhas costas, mas tudo o que consegui foi chorar. Meus ombros tremiam silenciosamente, e as lágrimas que eu vinha tentando segurar desabaram. Foi então que ouvi a porta do quarto se abrir.

Era Marinho. Ele não percebia o que se passava. Tinha o sorriso de sempre, aquele que alivia qualquer tensão, mas que agora parecia deslocado diante do caos que se instalava dentro de mim.

— Hey! Tá na hora — disse ele, sem perceber a tormenta no meu olhar.

Peguei minha mochila, limpando rapidamente o rosto, e o segui. Ao chegar no elevador, encontramos Pedro. Ele também notou que algo estava errado, mas não perguntou de imediato. O silêncio se estendeu entre nós. Marinho, inquieto como sempre, tentava trazer leveza à situação.

— Anaya, por que você não parece feliz? As vendas foram boas hoje. Fizemos um acordo! Isso é incrível! — disse ele, sem conseguir esconder a empolgação.

Eu não conseguia responder. Era como se um nó estivesse preso na minha garganta, e tudo o que eu quisesse dizer ficasse engasgado.

— A vida não me permite festejar, Marinho... — respondi baixinho, lutando contra as lágrimas que queriam voltar.

Pedro me olhou com atenção, percebendo que havia algo muito mais profundo acontecendo.

— O que aconteceu, Anaya? — ele perguntou, a preocupação evidente na sua voz.

Os dois amigos, agora cientes de que algo estava muito errado, me cercaram com olhares ansiosos.

— Hey, me fala o que houve. Aqueles homens fizeram alguma coisa com você? — perguntou Marinho, alarmado, sem entender o que poderia ter acontecido.

Eu balancei a cabeça, tentando afastar os pensamentos de suspeita. Não era isso.

— Diz logo, Anaya — Pedro insistiu.

Senti o peso das palavras que estava prestes a soltar. Respirei fundo, tentando encontrar forças.

— Suraya... — comecei, hesitante, antes de completar. — Ela está presa.

O choque foi imediato. Pedro soltou um longo suspiro, enquanto Marinho arregalou os olhos.

— Puta merda! — exclamou Pedro. — Mas o que foi que ela fez?

— Eu não sei. Faz tanto tempo... — confessei, sentindo a dor transbordar. — A última vez que a vi, ela estava sendo levada contra a sua vontade para aquele casamento. Ela tinha só 17 anos. Agora, anos depois, dizem que ela envenenou o marido... E eu... eu não sei o que aconteceu com ela. Como vou contar isso para Ayana? Como vou explicar para nossa irmã caçula que a vida de Suraya virou um pesadelo?

O carro seguiu em silêncio na estrada de volta para Belo Monte. O mundo fora da janela passava em flashes, mas dentro de mim o tempo parecia congelado. "Como a vida pode ser tão cruel? Qual foi o meu pecado? Será que ter nascido Lemos Monteiro é minha verdadeira maldição?", pensei enquanto tentava controlar a onda de desespero que se formava em meu peito.

Quando finalmente chegamos à fazenda, mal percebi que o carro havia parado. Saí correndo até meu quarto, sem sequer olhar para trás. Precisava estar sozinha, precisava de um momento para processar tudo.

Entrei no quarto e fechei a porta, me jogando na cama, enterrando o rosto no travesseiro. Queria que aquela dor simplesmente desaparecesse. Minhas lágrimas caíram sem controle, e eu soluçava como uma criança.

Foi quando ouvi a porta do quarto se abrir suavemente.

— Anaya? — a voz doce de Ayana preencheu o silêncio. — Você voltou... Eu estava tão preocupada... — ela sorriu, mas ao ver meu estado, sua expressão mudou imediatamente. — O que aconteceu? Por que você está chorando? Houve um problema com as vendas?

Eu não conseguia responder. Apenas me levantei da cama e a abracei com força. O abraço de Ayana era a única coisa que parecia me manter de pé naquele momento. Ela me abraçou de volta, sem entender completamente, mas oferecendo todo o carinho que podia.

— Eu já sei... — ela sussurrou. — Não faz mal, Anaya. Eu te entendo. Não haverá festa de Natal, né? Você não conseguiu vender os produtos...

Sua voz carregava a inocência de quem ainda acreditava que o pior problema do mundo era não ter uma festa de Natal. E, naquele momento, eu queria desesperadamente viver na mesma simplicidade dela. Não queria carregar os fardos que o destino colocou sobre os meus ombros.

— Não se preocupe, Anaya. — Ayana continuou, tentando me consolar. — Na próxima vez, você vai conseguir vender tudo, e aí você vai poder comprar o meu presente.

Ela era tão doce, sempre pensando nos outros. Era impossível não sentir o coração se apertar ainda mais. Me recompus, limpando as lágrimas e tentando não deixar que o peso da notícia sobre Suraya a afetasse.

— Não, maninha... não tem nada a ver com isso. — respondi, finalmente conseguindo falar. — Eu comprei seu presente sim, e quanto à festa de Natal... você terá a sua festa, prometo.

Os olhos de Ayana se encheram de brilho, e ela pulou de alegria.

— Então as vendas foram um sucesso? — ela perguntou, entusiasmada.

Eu apenas assenti, e abri minha mochila para mostrar o dinheiro que tínhamos conseguido. Ayana olhou para o monte de notas com olhos arregalados e sorriu como se o mundo tivesse se tornado um lugar perfeito de novo.

— Uau! — ela gritou, radiante. — Como eu posso estragar esse momento agora?

Eu pensava, enquanto a observava. Como poderia dar a ela a notícia sobre Suraya, sabendo que destruiria esse pequeno instante de felicidade?

Ayana, ansiosa, pegou seu presente e o abriu. Seus olhos brilharam ainda mais quando viu o celular.

— Uau! Não acredito! — exclamou, segurando o aparelho com reverência. — Até que enfim, um celular! Agora posso falar com a Suraya. Vou descobrir como falar com ela! — disse, com uma felicidade que me cortava por dentro.

Ela se virou para mim, ainda empolgada.

— Cadê o seu, Anaya? Mostra o seu! Aposta que o seu é melhor que o meu!

Tentei sorrir, mas era um sorriso forçado, incapaz de esconder o que eu realmente sentia.

— Eu não comprei um celular para mim, Ayana. Não dava para gastar tanto, mesmo com as vendas indo bem. — respondi com honestidade, tentando parecer tranquila.

Ela parou por um momento, a felicidade sendo substituída por uma sombra de tristeza.

— É sempre assim, Anaya. — disse ela, sua voz cheia de mágoa. — Até quando você vai se deixar para trás? Olha só para você, mana. Deixa de pensar só em mim... Você também merece se cuidar.

Eu senti meu coração apertar mais uma vez. Ayana, apesar de jovem, já carregava uma sabedoria silenciosa, fruto de uma vida dura. Ela sabia das minhas privações, do sacrifício que eu fazia por ela e pela nossa família, mas não entendia completamente a profundidade daquilo.

— Não se preocupe, Ayana. Eu comprei algo para mim também. — tentei tranquilizá-la.

Passamos algum tempo juntas, conversando. Ela me contou como tinha sido sua rotina nesses três dias que estive fora. Como cuidara do papai com a ajuda de Inês e Rosa. Ela me disse, com um certo orgulho, que papai estava melhor, que nesses dias ele não tinha bebido e até fazia sua higiene por conta própria. Ele estava tomando os remédios e comendo melhor.

Enquanto ela falava, eu tentava imaginar um futuro diferente para nós. Tentei sorrir enquanto descrevia para ela as belezas de Vale Verde, o sucesso das vendas e as possibilidades que se abriam para nossa fazenda. Mas, no fundo, eu sabia que, junto com essa luz que surgia no horizonte, uma nuvem negra estava se aproximando.

A sombra de Suraya pairava sobre mim, e em breve, sobre todas nós.

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Comments

Irá

Irá

Ei autor porq será que estou com um palpite que essa turma do café ☕️ foi jogada pra prender Anaya e forçar ela casar com um desse magnatas ?

2025-01-09

1

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