Depois que nos despedimos de Marinho e Pedro, eu e Ayana entramos em casa sentindo o peso da noite diminuir, como se, por algumas horas, tivéssemos deixado nossos fardos à porta do *Bar do Estrela*. Lá fora, a lua brilhava sobre a fazenda, iluminando o campo silencioso, mas dentro de casa o ar estava quente, quase aconchegante. Subimos as escadas para o quarto, cada uma perdida nos próprios pensamentos, até que Ayana quebrou o silêncio com um sorriso malicioso.
— Vai me contar por que brigou com a Maria Clara? — provocou, enquanto tirava a camisa, preparando-se para dormir. — Não foi você quem sempre diz que bater nas pessoas não resolve nada?
Olhei para ela pelo espelho enquanto desamarrava meu cabelo. Não consegui evitar sorrir também. Ayana era rápida, sempre capturava os momentos em que eu contrariava minhas próprias palavras.
— Sim, foi o que eu disse. Mas, às vezes, só dá pra resolver assim, na prática — brinquei, revirando os olhos.
Ayana riu, sacudindo a cabeça.
— E quem diria que você iria acabar me trazendo mais problemas, hein? Eu que vou ter que lidar com os comentários amanhã. Aposto que a cidade inteira já está falando sobre isso.
Eu me sentei na cama, cruzando as pernas, enquanto ela se jogava na dela, com os cabelos soltos e um sorriso no rosto.
— Bem, você sabe o que dizem... "Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço", certo? — Eu tentei parecer casual, mas sabia que ela estava certa. Não queria mais problemas, mas de alguma forma, eles pareciam sempre me encontrar. Talvez fosse a nossa sina.
— Isso não parece justo. Você me deu um sermão da última vez que eu briguei com aquela garota na escola. Agora eu vou ter que te dar um sermão? — Ela se sentou na cama, os olhos brilhando de diversão. — O que foi que você me disse mesmo? "Bater nas pessoas só vai piorar as coisas, Ayana. Você só está dando a eles o que eles querem". — Ela me imitava com uma voz exageradamente séria, me fazendo rir.
— É, eu sei... Eu sei o que eu disse, mas às vezes... — fiz uma pausa, buscando as palavras certas. — Às vezes, o que eles dizem machuca tanto que não dá pra ignorar.
Ayana olhou para mim, o sorriso diminuindo um pouco, e pude ver a compreensão em seus olhos. Ela sabia exatamente do que eu estava falando. Afinal, ela também carregava o peso dos insultos que lançavam sobre nossa família, especialmente sobre papai.
— Mas e agora? — perguntou ela, com um ar de leve provocação. — O que você vai fazer quando encontrar Maria Clara de novo?
Eu balancei a cabeça, sem saber ao certo.
— Evitar mais brigas, eu acho — respondi, rindo levemente. — Pelo menos, por enquanto.
Ayana gargalhou, jogando a cabeça para trás, e, por um momento, a risada dela foi a única coisa que preencheu o silêncio da casa. Era um som que eu não ouvia com frequência, mas naquela noite, parecia que algo havia se quebrado entre nós, como se as barreiras que mantínhamos firmemente erguidas durante o dia estivessem desmoronando. Rimos juntas, conversamos por horas, uma raridade em nossas vidas tão cheias de responsabilidades e silêncios.
— Ah, Anaya, estou ficando sem roupas — confessou Ayana, depois de um tempo, com um tom casual. — Tudo que eu tenho já está pequeno. E meus sapatos... — ela suspirou, olhando para os pés. — Estão velhos demais. Cansada de usar as mesmas coisas todos os dias e ser motivo de piada.
Ela disse isso com uma tristeza na voz que me cortou por dentro. Eu sabia o quanto ela sofria, o quanto tentava esconder, mas nada passava despercebido entre nós.
— Eu sei, Ayana — murmurei, sentindo o peso da verdade. — Mas as coisas estão difíceis. A colheita de milho desse ano foi um desastre. O pouco que colhemos mal cobre as contas da fazenda.
— E o café? — perguntou ela, como se de repente tivesse encontrado uma solução.
Eu sorri, balançando a cabeça.
— O que mais temos é café, Ayana. Se tem uma coisa que nunca falta por aqui, é café. Mas... — fiz uma pausa, tentando não deixar o tom da conversa se tornar pesado novamente. — Ninguém quer comprar nosso café. Os Monteiros não são exatamente populares em Belo Monte, e isso está nos custando caro.
Ela sorriu, dessa vez com uma certa leveza no olhar.
— Pelo menos a gente consome. É bem gostoso, e eles é que não sabem o que estão perdendo.
O sorriso dela era contagiante, e por um momento, eu me permiti acreditar nisso também. Talvez, de algum jeito, conseguíssemos dar a volta por cima. Mas, antes que eu pudesse responder, um som suave veio da porta, interrompendo nossa conversa.
A porta se abriu lentamente, revelando o rosto abatido de papai. Ele estava pálido, os olhos fundos e a expressão confusa.
— Meninas... — sua voz era trêmula, quase como um sussurro. — Eu... eu não consigo dormir. Estou com medo.
Senti uma pontada de dor no peito ao ouvir isso. Como um homem poderia se reduzir a isso? Ele, que um dia foi nossa força, agora estava preso em sua própria fraqueza.
Ayana se levantou da cama imediatamente, a expressão no rosto dela suavizando. Ela se aproximou de papai, segurando sua mão com delicadeza, como se ele fosse feito de vidro.
— Vem, papai — disse ela, com a mesma ternura que ele costumava nos oferecer. — Vou te ajudar.
Ela o guiou até a cama dela, ajudando-o a se deitar, ajustando o lençol para cobri-lo, como se ele fosse uma criança assustada. Papai fechou os olhos, se encolhendo debaixo das cobertas, e Ayana deitou-se ao lado dele, segurando sua mão.
Eu fiquei sentada, observando aquela cena com uma mistura de tristeza e incredulidade. Como um homem pode se reduzir a zero? Noutra hora, era Ayana ou eu com medo de dormir sozinha, e ele estava lá para nos proteger. Agora, ele era a criança, frágil, vulnerável, e nós, as adultas, tentando cuidar de tudo.
O tempo parecia parar enquanto eu observava os dois. A respiração de papai se acalmava lentamente, e Ayana olhava para mim por cima do ombro, um pequeno sorriso triste no rosto.
— Ele está bem agora — murmurou ela.
Eu assenti, sentindo o peso de tudo o que carregávamos. Me levantei e, silenciosamente, caminhei até a cama. Sem pensar muito, me deitei ao lado de Ayana, o colchão rangendo sob o peso de nós três. Era apertado, desconfortável, mas de algum modo, também era reconfortante. Naquela pequena cama, os três juntos, como antes.
A noite avançava silenciosa, e o sono começou a me vencer. O calor do corpo de Ayana ao meu lado, o som suave da respiração de papai, e o som distante do vento do lado de fora nos embalaram como uma canção de ninar esquecida.
E, por um breve momento, tudo pareceu um pouco mais fácil de suportar. Sob a escuridão do quarto, deitados lado a lado, éramos apenas nós. As feridas, as mágoas e o medo de um futuro incerto pareciam desaparecer, pelo menos por aquela noite.
E assim, dormimos juntos, três corações carregando o peso de uma vida cheia de perdas, mas ainda encontrando, nas pequenas coisas, a força para continuar.
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Atualizado até capítulo 22
Comments
Boravercuriosa🌹🌪️
Ah autora, vc conseguiu me fazer chorar.
Que tristeza e ainda conseguiu colocar beleza, onde um simples gesto de amor e carinho, transforma o momento.😢😢
2025-01-10
1
Boravercuriosa🌹🌪️
Muito triste.😢
2025-01-10
1
Aureca's
história triste,porém boa, espero que elas dêem a volta por cima e superem as dificuldades.
2024-10-08
2