A noite estava silenciosa quando chegamos de volta ao lar, o peso do corpo de nosso pai ainda se fazia sentir. O aroma da terra úmida misturava-se ao cheiro do álcool que ainda exalava do nosso pai, e, embora ele estivesse deitado na cama, sua presença parecia penetrar cada canto da casa. Ayana e eu sabíamos que o que víamos ali era apenas um reflexo de uma história mais profunda, uma história que, por muito tempo, carregamos conosco, mas que raramente foi discutida.
As coisas começaram a desmoronar na fazenda Lemos Monteiro há anos, quando André Gonçalves, o ex-amor de mamãe e, na época, presidente da cooperativa agrícola, decidiu usurpar o café da nossa propriedade. O café sempre foi o pilar econômico da fazenda, e, com a sua exclusão da cooperativa, nosso sustento se esvaiu. O nosso pai, Gustavo, antes um homem forte e decidido, começou a mostrar rachaduras.
Sem o apoio da cooperativa, a situação financeira da fazenda tornou-se crítica. O que antes era uma fonte de orgulho agora se transformava em um peso esmagador. Gustavo, incapaz de lidar com a pressão, começou a buscar refúgio em vícios cada vez mais destrutivos. O álcool foi o primeiro, mas não foi o último.
Aos poucos, a dependência do álcool foi se tornando uma maneira de escapar das frustrações e da impotência. Mas não foi só o vício em bebida que afetou nossa família. Gustavo também mergulhou no mundo das apostas, uma tentativa desesperada de recuperar o que tinha perdido. O que começou como uma distração se transformou em um vício profundo e destrutivo, que devorava o pouco que ainda restava da nossa fortuna.
A casa que um dia fora o símbolo de nossa segurança e orgulho agora estava se desmoronando. As dívidas se acumularam, e o número de trabalhadores começou a diminuir. O que restava da fazenda se via ameaçado pela falta de pagamento e pela crescente sensação de desespero. Tudo caiu sobre os ombros de Bianca, nossa mãe, que tentou manter a família unida enquanto o nosso pai se afundava em seus próprios demônios.
Foi um período sombrio, e o auge da tragédia veio na noite em que Gustavo, em um ato de desespero e loucura, apostou a fazenda. O jogo foi com o Sr. Fonseca Abreu, um homem conhecido por sua crueldade e por explorar as fraquezas dos outros. Gustavo, vendo uma chance de recuperar o que havia perdido, apostou todas as nossas terras, acreditando que uma vitória poderia salvar nossa família.
Mas a sorte não estava a nosso favor. Perder a fazenda foi um golpe devastador. O Sr. Fonseca, aproveitando-se da situação, fez um acordo cruel: para que Gustavo pudesse manter a fazenda e salvar o que restava, ele teria que entregar a mão da sua filha primogênita, Suraya, em casamento. O sacrifício de Suraya foi o ponto de não retorno. O desespero e a vergonha dominaram nossa casa.
Mamãe, vendo o sofrimento e a humilhação, começou a adoecer. O peso da situação, a culpa pela venda da filha e a incapacidade de proteger sua família a consumiram lentamente. Sua saúde se deteriorou, e, ao final, ela morreu deixando-nos com um vazio que nenhuma palavra poderia preencher. O falecimento de nossa mãe foi a gota d'água para Gustavo. O vício em álcool e a depressão tornaram-se seus companheiros constantes, e a fazenda, sem a sua orientação, entrou em um ciclo de deterioração.
Eu, então uma jovem que lutava para entender o mundo ao seu redor, vi o desmoronamento da nossa família de perto. A traição do nosso pai, a venda de Suraya, e a morte de nossa mãe foram feridas profundas que não consegui cicatrizar. A forma como ele sacrificou a irmã para salvar a fazenda se tornou uma cicatriz eterna em meu coração. O amor e a admiração que eu tinha por ele se transformaram em ressentimento e amargura.
O tempo que se seguiu foi uma luta constante. A fazenda tornou-se um símbolo de nossas perdas e falhas, e a responsabilidade de cuidar dela caiu sobre mim. As dívidas, os credores, a necessidade de manter a família unida — tudo isso se tornou meu fardo. O peso das escolhas de meu pai e as suas consequências afetaram cada aspecto da minha vida.
Enquanto caminhava pelos campos naquela manhã, a sensação de cansaço e desilusão era quase palpável. A visão da terra, uma vez próspera e agora lutando para se recuperar das enchentes, era um lembrete constante de tudo que havíamos perdido. As hortaliças e os cultivos, agora renascendo após as chuvas, não eram apenas sinais de esperança, mas também lembranças da dura realidade com a qual lutamos todos os dias.
A reflexão sobre o passado me fez perceber que, ao longo dos anos, construí uma parede em torno do meu coração. A raiva e o ressentimento em relação ao nosso pai me impediam de ver além das suas falhas e dos seus erros. Eu havia deixado a dor e a culpa me dominarem, e isso me afastou de quem eu realmente era — uma jovem que, apesar de tudo, ainda tinha sonhos e esperanças.
Enquanto me preparava para enfrentar o dia, a visão de Ayana entrando na cozinha trouxe um momento de clareza. Ela estava animada para preparar o café da manhã e começava a fazer planos para o Natal. O contraste entre seu entusiasmo e minha apatia era um lembrete doloroso do quanto eu tinha me afastado da alegria e da esperança.
— Como ele está? — perguntei a Ayana, referindo-me ao nosso pai.
Ela olhou para mim, com uma expressão de surpresa e alívio.
— Ele ainda está dormindo. Foi uma noite difícil para ele.
Eu assenti, e o silêncio que se seguiu foi carregado de sentimentos não ditos. Enquanto observava Ayana preparar o café, percebi que ela era a última conexão com o passado que eu estava tentando enterrar. Ela ainda acreditava que, apesar de tudo, havia esperança. E talvez fosse hora de eu também começar a acreditar.
O trabalho na fazenda, as dívidas, e a luta constante para manter tudo funcionando eram pesados, mas eles não precisavam ser o único foco da minha vida. O passado, com todas as suas falhas e perdas, era uma parte importante de quem eu sou, mas não precisava definir todo o meu futuro. Se eu quisesse continuar lutando, precisava encontrar uma maneira de reconciliar meu passado com meu presente.
Ao longo dos dias seguintes, procurei encontrar uma nova perspectiva. A interação com os trabalhadores, as conversas com Ayana, e o simples fato de estar presente na fazenda me ajudaram a começar a curar as feridas. A vida na fazenda, embora difícil, ainda tinha momentos de beleza e de esperança. E talvez, assim como as plantas que começavam a brotar após as chuvas, eu também pudesse encontrar uma forma de renascer e criar algo positivo a partir do que nos restava.
Enfrentar o passado, aceitar as falhas do meu pai e encontrar uma forma de seguir em frente não seria fácil. Mas, ao menos, estava disposta a tentar. Se a fazenda Lemos Monteiro ainda tinha algo a oferecer, era o tempo de encontrar uma maneira de fazê-lo prosperar novamente, não apenas em termos materiais, mas também em termos de esperança e reconciliação.
Este capítulo é um ponto de virada na história, onde Anaya começa a confrontar as sombras do passado e a buscar uma forma de avançar. A luta entre o passado e o presente, o perdão e a raiva, e a esperança e o desespero são temas centrais que moldam o futuro da narrativa. É um lembrete de que, mesmo nas piores circunstâncias, há espaço para crescimento e transformação.
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Atualizado até capítulo 22
Comments
Cecilia geralda Geralda ramos
que ótimo creio muito no progresso delas ,vaósuperar estes problemas e ter vitória.
2025-01-14
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Irá
Nossa esse último capítulo foi bem interessante autora, pois recomeçar não é tão fácil mais mesmo assim não é de tudo ruim e vamos lá meninas regassar as mangas da camisa e vamos a luta que tudo dará certo
2025-01-09
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