A luz da manhã atravessava as cortinas do escritório, uma sala que outrora foi de papai, mas que, há dois anos, tornou-se meu território. Era o dia do pagamento dos trabalhadores, e por mais que aquele fosse um momento que costumava ser celebrado, para mim era sempre uma mistura de tensão e alívio. Sentada na cadeira de couro desgastado, eu olhava para as pilhas de cadernos e papéis à minha frente, fazendo cálculos em silêncio. Ao meu redor, os trabalhadores da fazenda estavam sentados, esperando que eu iniciasse a reunião.
Eu costumava ver papai ou mamãe fazendo isso, quando era criança. Eles se sentavam aqui dias antes, fazendo as contas sozinhos, longe dos olhares de quem trabalhava para nós. Mas agora, tudo era diferente. Eu preferia fazer as contas à vista de todos, junto com os poucos que restaram. Eles sabiam de nossa situação; não havia mais por que esconder nada. Aquele gesto de transparência era um pedido silencioso de compreensão, talvez até de compaixão.
Marinho e Pedro estavam lá, como sempre, fiéis como dois pilares que sustentavam o pouco que ainda tínhamos. Marina, sempre com seu olhar sério, encostada na parede do escritório, parecia calcular os dias que restavam até a próxima colheita. E outros quatro trabalhadores completavam a equipe que ainda segurava a fazenda de pé: Zeca, um homem já de idade que cuidava das hortaliças, Roberto, que tratava do gado que restava, Jurandir, o mais novo entre eles, e Clóvis, o homem de confiança de meu pai, que conhecia cada canto desta terra como a palma de sua mão.
Com todos ali, comecei o ritual que repetia todo final de mês. Paguei cada um deles conforme o que era de direito. As mãos calejadas de Marinho e Pedro seguraram seus envelopes sem dizer uma palavra, mas os olhares eram de agradecimento silencioso. Fiz questão de tratar todos com o máximo de respeito, afinal, eram eles que sustentavam o que restava das nossas terras.
— Bom, pessoal — comecei, enquanto mexia nos papéis —, como vocês sabem, a produção desse ano não foi das melhores. O milho e a soja foram um desastre. A colheita mal cobriu os custos. Mas, em compensação, o feijão, as hortaliças e a mandioca trouxeram algum retorno.
— O café? — Clóvis perguntou, inclinando-se na cadeira.
Suspirei, já cansada de falar sobre o café.
— Continua lá, pendurado nas árvores, abundante como sempre. Mas sem compradores. Ninguém quer o café dos Monteiros, e não temos recursos pra investir em escoamento. Está estagnado, infelizmente.
Pedro, sempre prático, limpou a garganta antes de falar:
— A solução continua sendo apostar nas hortaliças, Anaya. Produtos de ciclo curto. A gente consegue vender rápido, especialmente pra vila e os mercados em volta. Mas pra isso... — Ele fez uma pausa, como se tentasse medir as palavras. — Precisamos melhorar a irrigação.
Marinho assentiu ao lado dele, acrescentando:
— É. O sistema de irrigação está uma porcaria. Precisamos de mais motobombas pra garantir que tudo funcione bem. E a verdade é que, sem água, as hortaliças não vão vingar. Só que eu sei que a grana está curta, então... nós podemos tentar fazer nossa parte.
— Como assim? — perguntei, olhando diretamente para ele.
Marinho coçou a cabeça, olhando para os outros antes de falar.
— A gente pode ajudar a comprar as motobombas. Eu e Pedro já conversamos, e estamos dispostos a tirar do nosso pagamento pra isso. Se todo mundo contribuir, acho que conseguimos. Afinal, se a colheita melhora, melhora pra todo mundo.
Houve um murmúrio de aprovação pela sala. Marina cruzou os braços, parecendo ponderar por um momento antes de acenar com a cabeça. Zeca levantou a mão, sorrindo, e Roberto e Jurandir concordaram logo depois.
Fiquei em silêncio por alguns segundos, sem saber como responder. A oferta deles era uma generosidade inesperada, e ao mesmo tempo, uma triste confirmação da nossa situação precária. Os trabalhadores que mal tinham o suficiente para si, agora estavam dispostos a tirar do próprio bolso para garantir o futuro da fazenda. Isso deveria ser algo que eu e papai faríamos, mas ali estávamos nós, dependendo da boa vontade dos outros.
— Não sei nem o que dizer... — murmurei, tocada pela oferta. — Mas... não posso aceitar que vocês tirem do pouco que já ganham.
— Não é tirar — disse Pedro, com a voz firme. — É investir no nosso futuro. Se a fazenda afundar, todos nós afundamos com ela. Então, que tal a gente fazer o possível pra manter isso aqui de pé?
Houve um silêncio de consenso na sala, e percebi que não adiantava mais discutir. Eles já haviam decidido. Um a um, tiraram parte do que tinham acabado de receber e colocaram sobre a mesa. Olhei para cada um deles, sentindo uma mistura de gratidão e vergonha. Aquele não deveria ser o caminho das coisas, mas, de alguma forma, estávamos todos juntos nessa.
Quando a reunião acabou, a sala ficou vazia, e eu me vi sozinha, cercada de papéis e dinheiro. Suspirei fundo, pegando os envelopes e começando a dividir o dinheiro entre as diversas despesas que precisavam ser pagas. A cada contagem, eu separava uma quantia: o dinheiro das sementes, o dinheiro da luz, o dinheiro da água, o dinheiro dos adubos, o dinheiro dos inseticidas, o dinheiro da escola de Ayana, o dinheiro para as compras de casa, o dinheiro dos medicamentos... E, por fim, o dinheiro que deveria ser para mim.
Olhei para o envelope vazio e dei de ombros. Já me acostumei a isso. Este mês, como todos os outros, não sobraria nada para mim. Não faz mal. Talvez no próximo mês eu consiga reservar algo para mim.
Levantei-me da cadeira e caminhei até a sala, onde Ayana estava sentada no sofá, com o olhar distante, folheando um caderno.
— Você não foi pra escola hoje? — perguntei, percebendo que o dia já estava quase no fim e ela ainda estava ali.
Ela fechou o caderno devagar, sem me olhar.
— Não quero mais estudar no São Bento.
Aquela resposta me pegou de surpresa.
— Como assim, Ayana? Todos nós estudamos lá.
Ela suspirou, finalmente me encarando.
— Eu sei, mas eu já não quero mais. Não aguento mais aquele lugar.
A raiva e a frustração começaram a ferver dentro de mim, mas eu respirei fundo, tentando manter a calma.
— Que merda é essa, maninha? O que foi que você fez lá dessa vez?
Ela olhou para mim com uma expressão que misturava cansaço e dor, e naquele momento, percebi que ela estava exausta de brigar, de lutar. Era como se toda a raiva que ela acumulava estivesse prestes a transbordar.
— Eu só... não tenho mais forças — sussurrou ela. — Estou cansada de brigar com aqueles idiotas. Mas também não consigo parar de brigar. E agora... só quero parar de olhar pra eles.
Senti um aperto no coração. Ayana estava esgotada, assim como eu. De certa forma, ela estava lutando as mesmas batalhas que eu, só que em campos diferentes.
— Ayana... — comecei, mas ela me cortou.
— São Bento é a única escola que eu consigo pagar nesse momento, Ayana. Não posso te tirar de lá.
Ela respirou fundo, parecendo lutar consigo mesma, antes de finalmente dizer:
— Não faz mal. Eu vou terminar o ano. A final, só faltam dois meses. Mas no próximo ano... no próximo ano eu vou ficar em casa, ajudar com o trabalho aqui. — E com isso, ela pegou a mochila e saiu andando pela porta.
Eu fiquei ali, parada, sentindo o peso de mais uma responsabilidade cair sobre meus ombros. Ayana estava desistindo. E por mais que eu entendesse a dor dela, eu não podia deixar que ela se perdesse. Mas como eu poderia ajudá-la, quando mal conseguia manter minha própria cabeça acima da água?
Peguei minhas ferramentas de trabalho, o caderno de anotações e segui meu caminho para fora, me perguntando, pela milésima vez, como papai e mamãe faziam isso tudo parecer tão fácil.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 22
Comments
Irá
Autora me conta uma coisa ou nos conte um segredo o que aconteceu com a irmã mais velha já que ficaram só elas duas e um pai que ainda tinham que pagar por suas bebedeiras? Porq vc não fala muito sobre a outra irmã
2025-01-09
1