Sombras e Reflexos

A cidade de Belo Monte parecia diferente sob as luzes vibrantes da noite. Fazia muito tempo desde que eu e Ayana tínhamos andado pelas ruas do centro urbano sem a pressa do trabalho ou a preocupação com as dificuldades da fazenda. As luzes neon dos postes brilhavam com intensidade, refletindo-se nas poças de água deixadas pelas chuvas recentes. O movimento das pessoas indo e vindo, rindo e conversando, me trouxe um estranho sentimento de nostalgia, como se aqueles momentos pertencessem a uma vida distante.

Caminhávamos em silêncio, os olhos de Ayana escaneando cada rosto, cada canto, em busca de algum sinal do nosso pai. Meu peito estava apertado, mas não queria transparecer preocupação. Não podia. *Vaso ruim não quebra fácil*, repeti para mim mesma, tentando acalmar os pensamentos que, inevitavelmente, começavam a me invadir.

— Anaya, e se... e se ele estiver no hospital? Ou... na... na morgue? — A voz de Ayana saiu trêmula, quase como um sussurro, com medo até de sugerir a ideia.

Parecia que o ar ao nosso redor havia congelado por um instante. O som dos carros, das conversas e risadas ao longe ficou abafado, enquanto a possibilidade sombria pairava entre nós.

Olhei para ela, minha irmã mais nova, tentando segurar as lágrimas que já brilhavam em seus olhos. A inocência dela, o medo, tudo isso me fez sentir ainda mais a responsabilidade que carregava. Mas eu não podia ceder àquele medo, não ali, não agora.

— Vaso ruim não quebra fácil, minha irmã — falei com um tom quase debochado, tentando trazer alguma leveza à situação, embora no fundo eu também estivesse apavorada. — Nosso pai não vai morrer assim, disperso, deixando para a gente o trabalho de encontrá-lo. Se fosse para ele ir, já teria ido há muito tempo.

Ayana olhou para mim, balançando a cabeça.

— Anaya, eu não te reconheço mais... — ela murmurou, o tom de desapontamento evidente. — Não deixa esse ódio endurecer o teu coração. O papai falhou, falhou muito, mas isso não significa que você precisa falhar também, se deixando consumir pelos erros dele.

Eu fingi não ouvir. Aquela conversa já estava se tornando pesada demais. Preferia evitar mergulhar nas águas profundas que Ayana parecia insistir em agitar. O rancor que eu carregava pelo nosso pai não era algo que eu queria discutir, especialmente agora.

— Não queres um sorvete gelado? — perguntei, mudando de assunto de forma abrupta.

Ayana hesitou por um segundo, ainda com o olhar sério, mas logo deu um leve sorriso.

— Claro que quero. Afinal, não é todo dia que saio com a minha mana mais velha.

Caminhamos até uma sorveteria próxima. A cidade de Belo Monte, com suas lojas iluminadas e pessoas transitando por todos os lados, tinha um certo encanto à noite, algo que eu não via há tempos. Talvez porque, desde que assumi as responsabilidades da fazenda, meus olhos só enxergavam os problemas, as dívidas, as perdas.

Sentamos numa das mesas de plástico na calçada, o ar da noite agora mais fresco, e fizemos nosso pedido. Eu escolhi baunilha, meu sabor favorito desde criança, e Ayana escolheu leite. Enquanto esperávamos, a mente de Ayana parecia longe, provavelmente ainda preocupada com nosso pai.

De repente, uma voz alta chamou minha atenção. Um homem estava no balcão, gesticulando enquanto falava com o atendente.

— Preciso de café, estou disposto a pagar o preço que for — disse ele, com um sotaque forte, que indicava que não era dali.

Meus ouvidos captaram as palavras quase instintivamente. *Café?* Em Belo Monte, nessa época do ano, já era raro alguém sequer mencionar café. As fazendas que ainda o produziam tinham sofrido tanto que quase todas abandonaram o cultivo. Exceto, é claro, a fazenda Lemos Monteiro.

Fiquei em silêncio, observando de canto de olho, enquanto o homem continuava a falar com o atendente. Meu coração acelerou com a possibilidade. Talvez, depois de tanto tempo, tivéssemos uma oportunidade de vender nosso café. Talvez as coisas finalmente estivessem mudando.

Mas antes que eu pudesse sequer pensar em me levantar e falar com o homem, algo aconteceu. Outra figura familiar entrou na sorveteria — o Sr. André Gonçalves. Meu estômago se revirou na mesma hora. Ele foi direto ao balcão e, sem querer, esbarrou no homem que buscava café. O atendente, sem perder tempo, aproveitou para indicar que o Sr. André poderia ajudar o comprador.

Eu travei. André Gonçalves, o homem que havia sido o primeiro amor da minha mãe e, ao mesmo tempo, o responsável por boa parte das nossas desgraças recentes. Desde que assumiu a presidência da cooperativa agrícola, ele usava seu poder para nos sabotar de todas as formas possíveis. Tudo por vingança. Ele nunca superou o fato de que minha mãe o havia deixado para ficar com o meu pai, e desde então, nossa fazenda estava na sua lista negra.

A raiva queimava no meu peito enquanto eu observava o homem do café se sentar à mesa com André. Era como se o destino estivesse brincando comigo, mais uma vez me negando a chance de salvar nossa fazenda.

— Anaya, você está bem? — Ayana perguntou, notando meu silêncio repentino.

Eu apenas balancei a cabeça e dei um sorriso amargo.

— Vamos embora. — Não queria explicar. A frustração era pesada demais para ser colocada em palavras.

Deixamos a sorveteria, e o som das nossas passadas nas ruas de paralelepípedos parecia ecoar, cada vez mais distante do calor das luzes e do movimento da cidade. A noite se tornava mais fria e densa conforme nos afastávamos do centro.

— O que houve lá dentro, Anaya? — Ayana perguntou, mas eu não queria falar sobre isso.

Não era o momento para ela saber das histórias entre André e nossa família. Não agora, com nosso pai ainda desaparecido e todos os outros problemas acumulados.

Depois de andar mais um pouco, encontramos Silvano, um dos poucos trabalhadores que ainda estavam conosco na fazenda. Ele era um dos dois homens de confiança do meu pai, alguém que sabia dos passos dele melhor do que qualquer um.

— Silvano, você viu o papai? — perguntei, com a esperança renovada de que ele tivesse alguma informação.

Ele assentiu, mas o olhar em seu rosto me deixou ainda mais inquieta.

— Eu o vi mais cedo, indo em direção ao cemitério.

O cemitério? Meu coração deu um salto. O que ele estaria fazendo lá?

Sem perder tempo, eu e Ayana corremos pelas ruas escuras até o cemitério. O caminho parecia mais longo do que nunca, enquanto o medo e a apreensão cresciam em mim. A cada passo, eu imaginava o pior.

Quando finalmente chegamos, a visão que tivemos nos deixou paralisadas. Lá estava ele, nosso pai, deitado sobre a campa da nossa mãe.

Ele não se mexia. A lua cheia iluminava seu corpo imóvel, e o silêncio do cemitério parecia pesado, quase sufocante. Ayana correu até ele, enquanto eu, por um instante, fiquei paralisada. A visão do meu pai, o homem que antes eu considerava invencível, agora deitado no chão frio, frágil, foi um choque. Não era apenas o corpo dele ali, mas todo o peso de uma vida de erros e arrependimentos.

— Papai! — Ayana chamou, sacudindo seu ombro com cuidado. — Papai, acorda!

Ele abriu os olhos lentamente, parecendo confuso, como se tivesse acabado de acordar de um sonho distante. O cheiro forte de álcool chegou até mim antes mesmo que ele falasse qualquer coisa.

— O que vocês estão fazendo aqui? — Ele murmurou, a voz rouca e fraca.

— O que *nós* estamos fazendo aqui? — perguntei, finalmente encontrando minha voz. — A pergunta é o que você está fazendo aqui, deitado na campa da mamãe!

Ele não respondeu de imediato. Apenas olhou para a lápide de pedra fria, seus olhos vidrados e distantes.

— Eu... eu só queria conversar com ela... — ele disse, quase num sussurro. — Precisava falar com sua mãe.

Ayana começou a chorar ao lado dele, enquanto eu olhava para aquela cena, sentindo um nó na garganta que eu não conseguia desfazer.

— Vamos pra casa, papai. — Eu disse, tentando manter a firmeza na voz.

Ele não resistiu. Com dificuldade, o ajudamos a se levantar e, aos poucos, fomos caminhando de volta para casa. O silêncio entre nós era pesado, e cada passo parecia arrastar uma história de mágoas e frustrações que não sabíamos como resolver.

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Comments

Operons Cameluns

Operons Cameluns

Muito obrigado por nos acompanhar.

2025-02-27

0

VÓ CICI

VÓ CICI

Sem palavras 😭😭😭😭😭

2025-02-27

1

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