O som do vento soprando através dos campos é o primeiro a me receber todas as manhãs, como um lembrete constante de que nada mudou. A névoa baixa se recusa a partir, densa e opressiva, como o peso em meu peito. O sol, preguiçoso e indiferente, parece hesitar em aparecer, como se até ele soubesse que não há nada digno de iluminar na fazenda Lemos Monteiro. Tudo o que resta aqui são sombras e silêncio. Silêncio e eu.
Levanto da cama como quem carrega o mundo nas costas. As tábuas rangem sob meus pés, sempre avisando que o dia começou, mas, para mim, parece que ele nunca termina. Não desde que minha mãe se foi. Desde que Suraya foi levada. Desde que eu me tornei a mãe, o pai e, bem... tudo o que resta.
Passo pela sala escura, onde as cortinas permanecem fechadas, como se isso pudesse manter o tempo parado, e encontro meu pai, como sempre, já afundado na velha poltrona da varanda. Ele não me olha. Ele não olha para nada. Os olhos fixos no horizonte, a garrafa ao lado dele, quase vazia, como se o álcool fosse a única coisa que ainda restasse a preencher o vazio. Parece que é.
"Pai," minha voz sai baixa, cansada, sem a menor expectativa de resposta.
Ele não responde. Claro que não. Já faz tempo que ele desistiu de tentar. Às vezes me pergunto se desistir também não seria mais fácil para mim. Mas então, o que restaria para Ayana?
Suspiro, pegando a garrafa antes que ele termine o que sobrou. O som do líquido caindo pelo ralo parece mais significativo do que qualquer palavra dita entre nós nos últimos dois anos. Jogo a garrafa na pia e passo as mãos pelo rosto, tentando lembrar como era a sensação de não estar exausta. Nem sequer consigo lembrar o último dia em que dormi sem peso no peito.
E então ouço aquela voz.
— Anaya?
Ayana, como sempre, descendo as escadas lentamente, ainda meio sonolenta, os cabelos bagunçados e o olhar inchado de quem ainda se agarra a algum tipo de esperança que eu já perdi há muito tempo. Ela ainda consegue ser tão inocente, mesmo depois de tudo.
"Bom dia," digo, forçando um sorriso que nem ela acredita mais. "Dormiu bem?"
Ela para por um momento, coçando os olhos antes de responder.
— Dormi... mas eu sonhei com a mamãe de novo.
Claro que sonhou. Sempre o mesmo sonho. O mesmo pesadelo disfarçado de esperança, onde nossa mãe está viva, onde tudo está bem, onde as coisas ainda fazem sentido. E, então, ela acorda e percebe que o mundo real continua do jeito que sempre foi: sem ela.
Eu queria poder dizer algo reconfortante, mas já tentei tantas vezes que as palavras soam vazias até para mim. Então, faço o que posso.
— Foi só um sonho, Ayana — murmuro, tentando não demonstrar a impaciência crescente. — Vamos tentar focar no que precisamos fazer hoje, certo? A fazenda... ela precisa de nós.
Ela assente, mas vejo em seus olhos que minha resposta não a convenceu. Eu me pergunto se ela realmente acredita que Suraya vai voltar, como se nossa irmã fosse abrir a porta um dia, sorrindo, como se nada tivesse mudado. Se ao menos a vida fosse tão simples.
Fazemos o café em silêncio. A rotina diária é uma espécie de âncora, a única coisa que me impede de perder o rumo completamente. Pão duro, café amargo e um pouco de queijo. Não é muito, mas é o suficiente. O suficiente para fingir que tudo está sob controle.
Estamos à mesa, e Ayana, como sempre, começa a olhar pela janela, seus olhos fixos no horizonte, além da cerca, na direção da fazenda vizinha, a famosa Lá Rosa. Lá, do outro lado do riacho, está a propriedade do tal Fonseca Alcântara Abreu, o homem que levou Suraya. Ele mal aparece em Belo Monte, preferindo a grande cidade, Lagoas, onde provavelmente a mantém presa, ou... Bom, não sei.
E, então, como se fosse um ritual, Ayana pergunta a pergunta que me persegue todas as manhãs.
— Você acha que Suraya está bem?
Eu paro. Respiro fundo. Isso está começando a se tornar insuportável.
"Você não acha que está na hora de mudar as perguntas matinais?" digo, a voz carregada de uma mistura de irritação e cansaço. "Está ficando cansativo ouvir a mesma pergunta todos os dias."
Ela me olha, surpresa e magoada, como se eu tivesse acabado de apagar a última vela de esperança que ela tinha. E talvez eu tenha. Mas a verdade é que eu não tenho respostas para dar. Não sei onde Suraya está. Não sei como ela está. E, francamente, não sei se algum dia voltaremos a vê-la. A realidade é brutal, mas é a única coisa que me mantém ancorada.
O silêncio se instala entre nós. E eu sinto o peso das minhas palavras. Não queria ser cruel, mas às vezes, o silêncio entre as perguntas e as respostas não respondidas é ainda mais doloroso do que a verdade que evitamos.
Depois do café, coloco minhas botas. Não há tempo para pensar sobre o que dissemos ou deixamos de dizer. O campo nos espera, o trabalho nos chama. A fazenda não vai cuidar de si mesma. E se eu falhar, tudo o que restou desmorona.
O campo está envolto em uma névoa leve quando saio. O cheiro da terra úmida e o som distante do riacho, que divide a nossa fazenda da Lá Rosa, me acompanham. A água flui calmamente, indiferente aos dramas que se desenrolam nas duas margens. Fico tentada a me deitar no chão e deixar tudo simplesmente passar. Talvez o riacho me leve também.
Mas ao invés disso, pego a enxada e começo a trabalhar. Meus dedos afundam na terra, e é como se o trabalho físico fosse a única coisa que ainda me conecta a este lugar, a esta vida.
Eu olho para o horizonte, imaginando até quando consigo seguir assim. Não há respostas, apenas a repetição interminável do que precisa ser feito.
E a mesma pergunta que martela na minha cabeça todos os dias: "Até quando?"
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Atualizado até capítulo 22
Comments
Angela S Silva
o Fonseca não tinha pagado as dívidas da fazenda o que o pai fez que não progrediu
2025-02-06
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Angela S Silva
porque ninguém avisou a suraya que a mãe dela faleceu
2025-02-06
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Cecilia geralda Geralda ramos
ela deveria atraver o riacho e procurar a irmã pelo menos uma resposta.
2025-01-14
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