Sombras no Silêncio

O vento sopra forte naquela manhã. Ele passa pelas janelas da casa como um suspiro que ecoa no vazio, carregando consigo as lembranças que a fazenda guarda em seus muros. Naquela manhã, ao contrário das outras, acordo com uma sensação estranha. Algo está mais pesado no ar, e não é apenas o cansaço acumulado ou a preocupação constante com o futuro da fazenda. Há algo mais. Um silêncio que grita.

Levanto-me, olho pela janela e vejo a paisagem lá fora: os campos, que antes pareciam infinitos, agora são apenas pedaços de terra disputando sua sobrevivência, os restos do que um dia foi o império da família Lemos Monteiro. O milho, o pouco que resta, já não cresce com a mesma força. As folhas amareladas e a terra rachada são lembretes amargos da decadência que parece se infiltrar em cada canto dessa casa.

Depois de um tempo me encarando no espelho, amarro o cabelo num rabo de cavalo apressado e desço as escadas para começar o dia. O cheiro de café amargo e a madeira velha são as primeiras coisas que me recebem na cozinha. Ayana já saiu para a escola, e eu fico só com o silêncio. Coloco o café no fogão, observando os grãos queimarem devagar, e tudo o que consigo pensar é que o tempo, de alguma forma, também está queimando. Lentamente, mas de maneira irremediável.

Saio para o campo. Há dias em que o trabalho no campo parece um alívio; outros, uma tortura. Hoje, infelizmente, parece mais com o segundo. Os trabalhadores já estão lá, mexendo na terra, tentando tirar algum proveito daquele solo cada vez mais ingrato. Ao me aproximar, vejo os rostos familiares que se tornaram quase minha única companhia constante: Pedro, sempre sério e concentrado, Marina com seu riso nervoso, e Marinho, que continua insistindo em me lançar olhares que eu prefiro ignorar.

— Como está indo? — pergunto, mais por hábito do que por interesse real. Sei que a resposta será a mesma de sempre.

— Poderia estar melhor — Pedro responde, com a voz rouca. Ele é um homem de poucas palavras, mas sempre sincero.

— As chuvas estão escassas e o solo não ajuda — Marina adiciona, tentando suavizar a franqueza de Pedro, como sempre faz.

A terra nas minhas mãos parece mais seca do que eu me lembrava. Passei tanto tempo da minha vida entre esses campos, que a sensação da terra seca entre os dedos deveria ser algo natural. Mas não é. Nada disso parece natural.

— Vamos fazer o que podemos — digo, mais para mim mesma do que para eles, tentando ignorar o nó na garganta que ameaça apertar a cada nova constatação de que tudo aqui está morrendo.

Trabalhamos por horas em um ritmo quase automático. O trabalho manual tem esse jeito de nos distrair, como se, ao mover o corpo, pudéssemos, de alguma forma, afastar os pensamentos mais escuros. Mas a realidade está sempre ali, espreitando.

Depois de um tempo, decido que preciso fazer uma pausa. Meus músculos estão cansados, e o calor da tarde começa a pesar. Sento-me à sombra de uma árvore próxima, olhando para a fazenda que, embora decadente, ainda carrega um peso de responsabilidade nos meus ombros. Aqui, o silêncio é quebrado apenas pelo som distante do riacho que separa nossas terras das do Fonseca Alcântara Abreu. Ele nunca está por aqui, mas a sua presença é sentida, como uma sombra sempre presente. Ele pode não estar, mas as consequências das suas ações estão.

“Se Suraya ainda estivesse aqui, as coisas seriam diferentes?”, penso comigo mesma, mas afasto rapidamente a ideia. Ela já tem seu próprio inferno para lidar, longe daqui. E de qualquer forma, isso nunca foi sobre ela, foi?

Antes que eu possa mergulhar muito fundo nesses pensamentos, ouço a voz de Marinho ao longe. Ele se aproxima, com aquele sorriso malicioso de sempre. Sei o que está por vir, mas não tenho energia para lidar com isso hoje.

— Está tudo bem aí, Anaya? — ele pergunta, inclinando-se contra a árvore ao meu lado.

— Estou bem, Marinho. Só cansada.

— Você sempre está cansada. Quem sabe se você tirasse um tempo para si mesma, não seria tão exaustivo?

Reviro os olhos, sem conseguir evitar.

— Tempo para mim mesma? Não sei se você notou, mas não posso exatamente me dar ao luxo de tirar férias. O trabalho não para.

Ele ri, mas há uma seriedade em seu olhar que não costuma estar lá.

— Eu entendo, Anaya. Só estou dizendo que... às vezes você carrega muito peso nas costas. Deveria deixar alguém te ajudar.

Sei o que ele quer dizer, mas também sei que esse peso é só meu. Sempre foi.

— Eu dou conta — respondo simplesmente, levantando-me para voltar ao trabalho.

Ele suspira, mas não insiste mais. Marinho sabe que eu sou teimosa demais para aceitar ajuda, mesmo quando talvez devesse.

Quando o sol começa a se pôr, estamos todos exaustos, física e emocionalmente. O campo, por mais que tente, já não nos dá o que precisamos. A colheita está cada vez mais fraca, e o dinheiro que entra mal cobre as despesas básicas.

Quando finalmente retorno para casa, o céu já está tingido de um laranja profundo, e o silêncio da fazenda parece mais pesado à medida que a escuridão se instala. Ao me aproximar da varanda, vejo Ayana ao longe, caminhando com a professora da escola ao seu lado. Meu coração aperta. Não pode ser coisa boa.

A professora, dona Isolda, é uma mulher de meia-idade com um ar severo, mas justo. Ela caminha até mim com uma expressão de preocupação que imediatamente me faz querer afundar no chão.

— Anaya, precisamos conversar — ela começa, sem rodeios.

Ayana olha para mim, seus olhos ardendo de raiva e vergonha. Já sei o que aconteceu. Sei pelo modo como ela está tensa, de braços cruzados e maxilar trincado.

— Ayana se envolveu em outra briga hoje — dona Isolda continua, sem me dar tempo de processar.

— Outra vez? — suspiro, já sentindo o peso da conversa que virá.

— Sim. Ela lutou com uma colega. Aparentemente, foi provocado por comentários sobre... a sua família.

Olho para Ayana, que agora evita meu olhar. Sinto um misto de exaustão e tristeza. Não culpo Ayana. Sei como essas provocações podem machucar, mas isso não significa que ela possa continuar resolvendo as coisas com violência.

— Eu entendo, dona Isolda. Eu conversarei com ela.

A professora acena, aliviada, e se despede, deixando-me sozinha com Ayana. O silêncio entre nós é ensurdecedor enquanto caminhamos de volta para casa. Entro pela porta da cozinha, e ela me segue em silêncio, sua cabeça baixa, como se estivesse esperando uma bronca que nunca virá.

Sento-me à mesa, cansada de todas as lutas — as internas e as externas.

— Por que, Ayana? — pergunto suavemente, sem raiva, apenas dor.

Ela finalmente levanta a cabeça, seus olhos escurecidos pela raiva contida.

— Eles não vão parar de falar da nossa família. Não vão parar de nos tratar como se fôssemos uma piada. E eu... não posso aguentar isso, Anaya. Não posso.

Meu coração se parte um pouco mais. Entendo a raiva dela porque a sinto também. Todos os dias. Mas sei que lutar assim não resolve nada.

— Eu sei. Mas temos que encontrar outra maneira. Bater neles não vai consertar o que está quebrado aqui.

Ela me olha por um longo momento, e finalmente, com um suspiro pesado, cede.

— Eu sei. Mas às vezes... parece que é a única coisa que posso fazer.

Ficamos em silêncio depois disso. Eu gostaria de ter uma resposta melhor para ela, uma maneira de fazer tudo isso ir embora. Mas, no fundo, sei que essa é uma luta que nenhuma de nós pode vencer. Ao menos, não ainda.

As sombras da noite se instalam pela casa, e com elas, a certeza de que amanhã será outro dia, com suas próprias batalhas para enfrentar.

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Comments

Adenir Rodrigues Moreira

Adenir Rodrigues Moreira

tá ficando cansativo essa família nunca vai ter paz 😞

2024-10-09

2

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