Sob as Estrelas e o Peso do Mundo

Eu estava sentada na cozinha, a última luz do crepúsculo já havia sumido, deixando apenas a sombra fria da noite. A lâmpada amarela do teto iluminava a mesa, onde Marinho e eu jantávamos. Ele havia trazido um pedaço de carne que caçou mais cedo, algo que, apesar de simples, era um luxo por aqui. Às vezes, a carne fresca é o único gosto de normalidade que ainda nos resta. Ele cortava um pedaço, mastigando devagar, enquanto me observava. Sabia que queria me dizer algo.

— Sabe, Anaya... — começou ele, com um tom de hesitação que não combinava com a sua figura robusta e sempre confiante. — Hoje à noite, na vila, vai ter uma banda nova tocando no bar. O pessoal tá animado. Acho que você deveria ir, se distrair um pouco.

Olhei para ele, arqueando uma sobrancelha.

— Sair? Pra onde? Pro *Bar do Estrela*? — sorri de canto. — E o que eu vou fazer lá? Dançar? Sabe que eu não sou dessas, Marinho.

Ele deu uma risada curta, um som que ecoou pela cozinha como uma tentativa de suavizar o peso do nosso dia a dia. Era a forma dele de tentar trazer um pouco de cor ao nosso mundo cinza. A verdade é que sair para a vila, ver gente, ouvir música, não parecia mais parte da minha vida. Há muito tempo não era.

— Talvez seja exatamente disso que você precisa. Ver gente, dar uma risada, beber alguma coisa, ouvir uma música ao vivo. Quando foi a última vez que fez algo assim? — Ele me olhava com um sorriso leve, mas eu podia ver a preocupação escondida por trás dele. Marinho sempre foi assim, tentando se aproximar, mas nunca invadindo meu espaço. Talvez fosse por isso que, de todos, ele era o mais suportável.

Eu estava prestes a recusar, como sempre fazia, quando Ayana entrou pela porta da cozinha, pálida, os olhos arregalados, e se aproximou de mim silenciosamente. Sem uma palavra, ela sussurrou em meu ouvido.

— Papai... Ele está todo sujo, Anaya... Acho que está doente de novo.

Senti meu estômago revirar. Coloquei o garfo de lado e levantei da cadeira, meu coração já começando a bater mais rápido. Marinho parou de mastigar no mesmo instante, o olhar preocupado imediatamente estampado em seu rosto.

— Vou ver o que aconteceu — murmurei para ele, e saí da cozinha com Ayana a passos rápidos.

Chegamos ao quarto de meu pai. A porta entreaberta revelava o cheiro acre de suor e álcool misturado. Ele estava jogado na cama, imóvel, a camisa ensopada de vômito e uma expressão de total abandono. Meu pai não era mais o homem que eu lembrava. O vício havia roubado o que restava da sua dignidade, e a culpa corroía meu peito de uma maneira que era difícil de suportar.

Ayana olhava para mim em busca de respostas, mas eu mesma não sabia o que fazer. Ele estava inconsciente, e a mera ideia de limpar aquilo soava insuportável.

— Não podemos deixá-lo assim — murmurei, mais para mim do que para ela.

— Como a gente vai lavar ele sem... sem ver... sabe? — Ayana perguntava, sua voz vacilante. A vergonha e a confusão estavam claras em seus olhos.

Eu não sabia o que dizer. Estávamos presas entre a necessidade de cuidar do nosso pai e o desconforto de lidar com a situação.

Foi quando Marinho entrou no quarto, olhando a cena com uma expressão firme.

— Eu ajudo — disse ele, sem rodeios. — Vocês não precisam lidar com isso sozinhas.

Senti um alívio momentâneo, misturado com a sensação incômoda de fraqueza. Ele se aproximou, pegou um balde de água e começou a limpar meu pai com uma habilidade inesperada, quase como se já tivesse feito isso antes. Nós duas observávamos em silêncio, tentando não olhar muito para os detalhes.

Quando ele terminou, meu pai estava deitado limpo, respirando de forma mais leve, ainda perdido em seu próprio mundo, mas pelo menos não mais mergulhado na sujeira. Eu queria me sentir grata, mas tudo o que conseguia era um nó na garganta.

— Obrigada, Marinho — murmurei, enquanto saíamos do quarto, fechando a porta atrás de nós.

— Não precisa agradecer. Ele é seu pai — respondeu ele, com um sorriso triste. — Agora, que tal irmos para o bar? A noite ainda é jovem, e vocês duas merecem um respiro.

Olhei para Ayana, que deu de ombros, ainda sem dizer muito. O silêncio dela, no entanto, me dizia o suficiente. Estava cansada, exausta de tudo aquilo, assim como eu.

— Tudo bem — cedi, num suspiro. — Vamos ao bar.

Caminhamos devagar até o *Bar do Estrela*, uma caminhada silenciosa e pesada sob o céu estrelado. As luzes da vila brilhavam ao longe, e conforme nos aproximávamos, o som da música ia crescendo. Um acorde de violão, seguido pela batida leve de um tambor. Parecia um eco distante de uma vida que eu já não lembrava mais como viver.

O bar estava cheio, as vozes das pessoas misturando-se à música que saía de uma banda improvisada no canto. Marinho, Pedro e eu entramos juntos, mas Ayana logo se afastou, atraída por um grupo de colegas mais jovens que estavam fora, rindo e conversando. Eu a observei de longe, aliviada por vê-la sorrir, mesmo que por um breve momento.

Sentei-me com Marinho e Pedro, tentando me perder na música, no som das risadas e nas conversas altas ao redor. Mas, como sempre, o passado e o presente insistem em se misturar. Uma voz conhecida se aproximou.

— Olha só quem resolveu sair da toca... — A voz era carregada de veneno, e quando olhei para o lado, vi que era Maria Clara, uma antiga colega de escola. Seu sorriso era cruel, e os olhos brilhavam com algo próximo de diversão maldosa.

Eu a ignorei, tentei não morder a isca.

— Não sabia que você ainda tinha coragem de sair por aí, depois de tudo que aconteceu com a sua família — continuou ela, com uma voz alta o suficiente para que os outros em volta pudessem ouvir.

Senti o sangue ferver. Marinho me lançou um olhar de advertência, mas eu estava tentando manter a calma. Isso fazia parte da minha vida agora, aguentar os insultos e as insinuações.

— Não estou com paciência hoje, Maria Clara — respondi, seca.

— Paciência? Ora, Anaya, paciência é o que você deveria ter tido com seu pai antes de ele acabar como... — Ela não terminou a frase. Mas não precisou.

E foi naquele momento que eu perdi o controle.

Levantei-me tão rápido que nem percebi quando minha mão acertou o rosto dela. O barulho foi seco, e o choque se espalhou pelo bar num silêncio pesado. Maria Clara me olhou com os olhos arregalados, e então tudo desmoronou. Ela se jogou em mim, e antes que percebêssemos, estávamos no chão, socos e gritos misturados enquanto a confusão se espalhava pelo bar.

Alguém nos separou, não sei quem, mas quando tudo terminou, eu estava com o rosto quente e as mãos tremendo. Marinho me puxou para longe, e vi que Pedro estava com a mão em meu ombro, me empurrando para a saída.

Ayana, do lado de fora, não fazia ideia do que havia acontecido. Ela estava longe o suficiente para não ter visto a briga, rindo e conversando com os amigos. Quando me viu, confusa e agitada, veio correndo.

— O que aconteceu? — perguntou, preocupada.

— Nada de mais — murmurei, ainda tentando recuperar o fôlego.

— Nada? — Marinho riu, sacudindo a cabeça. — Só a sua irmã quebrou a cara daquela Maria Clara, só isso.

Ayana piscou, surpresa, e depois, para meu alívio, soltou uma risada. A risada dela era algo que eu não ouvia há muito tempo.

— Você... você fez isso mesmo, Anaya? — ela perguntou, ainda rindo.

Eu balancei a cabeça, sem saber se ria ou chorava. No fim, só suspirei, e começamos a caminhar de volta para a fazenda, sob o céu estrelado.

As luzes da vila foram ficando para trás, e por um breve momento, o peso do mundo parecia um pouco mais leve. As estrelas brilhavam sobre nós, silenciosas testemunhas da nossa luta constante. Mesmo que por uma noite, estávamos juntas, e isso, de alguma forma, era o suficiente.

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Comments

Irá

Irá

Autora vc tem certeza que não me conhece? Ou conhece minha história ou um pouco dlea, diferença que eu não era a filha e sim a sobrinha que carregava tudo e quase todos nas costas até eu resolver fugir e ir pra outro lugar, foi qd o pesadelo voltou com tudo e de novo tive que ir novante. Mais sempre acreditando que eu conseguiria uma vida diferente e mais alegre, demorou um pouco mais hoje já estou à 18 anos com uma pessoa que não é tipo muito gentil mãos não me maltrata e somos felizes juntos pois um ajudou o outro. Chorando aqui parece q voltei a um passado bem distante. E Tb não foi meu pai e sim minha mãe que sempre fez e pra completar ainda tenta fazer minha vida um inferno isso mesmo minha mãe l!

2025-01-09

1

Iracilda Santana

Iracilda Santana

violência nunca é a solução, mais a outra precisava desse corretivo

2025-01-28

0

galega manhosa

galega manhosa

que história sofrida. ma da um principe pra salvar as donzela pq se piorar eu desisto de ler

2024-10-06

2

Ver todos

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