Gritos no Silêncio

O ar estava pesado naquela manhã, não só pela tempestade que ainda rondava a fazenda, mas pelo clima tenso que vinha crescendo dentro de casa. Eu não conseguia parar de pensar na visita do cobrador. O banco nunca deveria ter voltado a nos pressionar. Era suposto que tudo estivesse resolvido depois do casamento da Suraya. O Sr. Fonseca prometeu que as dívidas seriam quitadas. Ele, como um dos mais ricos da cidade, tinha recursos para isso, e era o que nos haviam garantido. Mas, agora, com o banco às portas e as dívidas se acumulando, a realidade estava longe de ser essa.

Fui até o quarto do meu pai, Gustavo, e o encontrei sentado, imóvel, como sempre. Seu olhar perdido não me trazia nenhuma resposta, mas a minha raiva crescia a cada segundo. Ele tinha que saber. Ele era o responsável por tudo isso, por todas as decisões ruins que nos trouxeram até aqui. Era a sua vida, a sua escolha que nos deixou presas.

— Por que o banco veio aqui cobrar, pai? — Perguntei, tentando controlar a fúria, mas minha voz já carregava uma amargura que eu mal conseguia segurar.

Gustavo mal reagiu. Seu olhar parecia vazio, como se ele estivesse em outro mundo.

— Eu disse... por quê? — Repeti, agora gritando. — Por que o banco ainda está nos cobrando, se o casamento da Suraya deveria ter resolvido isso tudo?

Nada. Apenas o silêncio, sufocante e opressor. Minhas mãos tremiam de raiva. Ele não iria responder. Nunca respondia. Era como falar com uma parede.

— Você sabe que a responsabilidade era sua! — gritei, já fora de mim. — Você nos abandonou! Abandonou a mim, à Ayana, à fazenda! Fez escolhas que arruinaram a nossa vida!

Eu sabia que estava à beira de explodir, mas não consegui parar. Todas as emoções que eu havia guardado por tanto tempo começaram a jorrar sem controle. A dor, a frustração, a sensação de que minha vida tinha sido roubada.

— Eu tenho 18 anos, pai! — continuei, o tom da minha voz subindo mais e mais. — Eu deveria estar vivendo, conhecendo o mundo, me apaixonando, amando... Eu deveria estar sonhando com o futuro, não limpando a sujeira que você deixou para trás! Eu não aguento mais ser a mulher dessa casa! Eu não quero mais ser forte! — Minhas palavras saíam descontroladas, como uma confissão reprimida.

Eu tremia. Lágrimas corriam pelo meu rosto enquanto eu olhava para aquele homem que já não parecia meu pai. Apenas uma sombra do que ele havia sido. Eu queria gritar mais, xingar, chacoalhá-lo até ele dar alguma resposta, mas ele continuava ali, inerte.

Foi quando Ayana entrou na sala. Ela parou no meio do caminho, perplexa ao me ver naquele estado, gritando com nosso pai. Seu rosto mostrava uma mistura de choque e raiva.

— O que está acontecendo aqui? — perguntou, a voz tensa.

— Ele é o responsável por tudo, Ayana! Por que você não entende isso? — gritei, ainda fora de mim. — Ele arruinou nossas vidas! Fez escolhas terríveis que nos trouxeram até aqui, e agora ele só fica aí, sentado, sem fazer nada, enquanto a gente tenta segurar o mundo nas costas!

— Anaya, pare! — Ayana retrucou, a raiva crescendo nela também. — Você não pode falar assim com o papai! Ele está doente! Não tem culpa de estar assim!

— Doente? — eu ri, amarga. — Ele sempre teve culpa, Ayana! Não está doente de hoje, está doente há anos! E por causa dessa "doença", você e eu perdemos a nossa vida! Estamos aqui presas, tentando salvar essa fazenda enquanto ele não faz nada!

Nesse momento, um cheiro insuportável tomou conta do quarto. O corpo de Gustavo tremeu levemente, e o silêncio entre nós foi quebrado por algo que nenhuma de nós esperava. Ele havia se urinado e defecado ali, na cadeira. O cheiro tomou conta do espaço em segundos.

Eu não pude acreditar no que estava vendo.

— Olha só, até parece que ele faz isso de propósito — comentei, sem sequer tentar esconder o desprezo.

Ayana, completamente revoltada com a minha reação, deu um passo à frente, o rosto vermelho de raiva.

— Você não tem o direito de falar assim! — gritou ela. — Isso é culpa sua, Anaya! Se você não tivesse gritado com ele, ele não teria ficado assim! Você o está pressionando, assustando! O papai já está fragilizado, e você só piora tudo!

— Como é que eu sou culpada disso? — rebati, furiosa. — Eu não fiz ele se cagar nas calças!

— Você o está tratando como se ele não fosse nosso pai! — retrucou Ayana, a voz embargada de lágrimas. — Você só piora a situação! Se continuar assim, um dia vai se arrepender, Anaya... e aí, será tarde demais.

Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Ayana sempre foi a mais sensível, a mais ligada a Gustavo. Mesmo assim, a raiva não me permitia entender o ponto dela. Ela pegou meu pai pela mão, com um cuidado que eu já não tinha mais, e o levou até o banheiro.

— Vem, papai, vou te ajudar a tomar um banho — disse ela, com uma doçura que só me irritava mais.

Eu fiquei ali, observando de longe enquanto ela o lavava. A água fria escorria sobre ele, levando consigo a sujeira, enquanto Ayana limpava o corpo frágil de Gustavo.

— É isso que você queria, papai? — murmurei, incapaz de segurar as palavras ácidas. — Ver suas filhas obrigadas a te lavar?

Ayana virou-se de repente, a raiva pulsando no olhar.

— Se você não vai ajudar, Anaya, saia daqui. Já fez o suficiente.

Eu queria continuar ali, enfrentar Ayana, mas algo em mim quebrou. A exaustão tomou conta. Sem dizer mais nada, saí do banheiro e fui até a cozinha. Minhas mãos tremiam enquanto as lágrimas silenciosas rolavam pelo meu rosto. Eu não queria que as coisas fossem assim. Não queria que a nossa vida tivesse se tornado essa confusão insuportável.

Foi nesse momento que Juraci e Pedro entraram pela porta, interrompendo meus pensamentos. Eles traziam o relatório dos danos causados pela tempestade. Seus rostos estavam carregados de preocupação.

— Trouxemos o levantamento provisório da chuva, Anaya — disse Pedro, abrindo uma pasta surrada. — As perdas foram maiores do que esperávamos. Muita coisa foi arrastada.

Eu enxuguei as lágrimas rapidamente e me recompus. A vida não parava, nem por um segundo. E, por mais que a dor e a raiva me consumissem, eu sabia que precisava continuar.

— Certo, vamos ver o que dá para salvar — respondi, minha voz trêmula, mas firme.

Enquanto eles me passavam os números, a tensão entre as responsabilidades da fazenda e os conflitos familiares crescia dentro de mim.

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Comments

Odailma

Odailma

Não dá pra comentar tamanho desespero

2025-01-18

1

VÓ CICI

VÓ CICI

Verdade eu só fico chorando 😭😭😭😭

2025-02-27

0

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