Ecos Do Passado

Ecos Do Passado

Capítulo Um

Dante Draven

"O frio lá fora fazia as janelas da grande sala formarem pequenos cristais de gelo, garranchos da natureza sobre o vidro. A mansão iluminada e imponente, contrastava com o manto branco que cobria Chicago naquela véspera de Natal. Eu tinha apenas o quartorze anos , mas já sentia a gravidade daqueles momentos em família, capturando-os em minha memória como tesouros preciosos.

A cozinha era um coração quente em meio ao frio, o cheiro de especiarias e do chocolate quente compunha uma melodia olfativa que se entrelaçava com as risadas de meus irmãos. Mamãe estava ao nosso lado, sua beleza serena como sempre, guiando nossas pequenas mãos na arte de fazer biscoitos de Natal. Os cortadores dançavam entre nossos dedos, criando estrelas, árvores e sinos no mar de massa sobre a mesa. A simplicidade desse contentamento parecia magicamente eterna.

Papai e Lizzie, a caçula, estavam na sala - eu podia ouvir o tilintar suave das bolas de Natal conforme eram penduradas na árvore. A gargalhada de meu pai, grave e calorosa, se espalhava pela casa, contagiando-nos com uma alegria que parecia emanar das próprias paredes de nossa casa.

Foi então que o tom do momento mudou. Papai apareceu de súbito na cozinha, um leve franzir de testa retirando a suavidade de seus traços. "Estão queimando os biscoitos?" Ele questionou, alarme disfarçado em sua voz de barítono.

Mamãe parou, uma mancha de farinha em sua bochecha ressaltando a confusão em seus olhos verdes.

"Mas, querido, ainda nem começamos a assá-los," disse ela, sua testa se enrugando igualmente.

O cheiro doce foi substituído por um odor acre que crescia em intensidade. As risadas dos meus irmãos cessaram, substituídas por expressões de medo. Meus pais trocaram olhares silenciosos, a faísca de temor em seus olhos evidente.

Do lado de fora, a neve caía gentilmente, escondendo seus segredos. Dentro da mansão , o cheiro estranho prenunciava um segredo sombrio, não um doce conforto, mas o prelúdio de uma perda que mudaria nossas vidas para sempre.

Meu pai tinha se apressado para fora da cozinha, movido por um instinto que só os pais possuem, aquele senso aguçado de que algo estava terrivelmente errado. Minha mãe, sempre a âncora de nossa família, não podia se permitir a crer que nossa fortaleza poderia ceder; assim, continuou a orquestrar a valsa da confeitaria, tentando sustentar a normalidade por mais um momento precioso.

Não durou muito. As palavras de meu pai cortaram o doce ar como uma lâmina afiada quando ele voltou correndo

"Paremos agora! Precisamos sair imediatamente! A casa está em chamas!"

Em chamas? Perguntei-me, sentindo meu estômago afundar. Como poderia nosso lar, aparentemente seguro e imutável, estar agora submerso em tal caos, especialmente em meio ao tranquilo e gélido manto branco que cobria tudo lá fora?

Não houve tempo para os porquês e comos. A fumaça começou a se infiltrar nos cantos da cozinha, um lembrete maligno de como o perigo se aproximava.

A asma já dificultava a respiração da minha mãe e de Lizzie, tornando cada sopro um esforço árduo. O ar ficava cada vez mais ralo, as batidas do meu coração aumentando em um alarmante crescendo.

"Filho, você é o mais velho. Preciso que seja corajoso," disse meu pai, mantendo uma calma que sabíamos ser forçada. Ele preparou o caminho para nossa fuga, forrando-o de toalhas brancas que logo seriam manchadas pelo desespero e cinzas.

Pulei primeiro, uma queda que pareceu durar uma eternidade antes que a terra fria me recebesse com o impacto duro da realidade. A dor em minha perna gritou, mas era nada comparado ao terror de deixar minha família para trás.

Segurei firmemente minha mãe, quando ela foi ajudada a descer. Depois Lizzie, tão leve em meus braços, como se todo seu ser estivesse sendo consumido pelo susto. A expectativa de meu pai reaparecer com Luke e Diogo foi tão opressiva quanto o peso do silêncio envenenado pela fumaça que não cessava de crescer.

"Pai!"-Minha voz se perdeu em um eco de desamparo. Mas ele não apareceu. Ninguém mais apareceu. Apenas as chamas, avançando como um monstro devorador, engolindo alegrias, sonhos e memórias.

"Não, não, Pai... Luke... Diogo" -clamei aos fantasmas que a fumaça carregava.

"Filho... precisamos sair... "- A voz da minha mãe, agora fraca, era um lembrete de que ainda havia vidas a salvar. Lizzie, quase desfalecendo em minhas mãos, respirava com dificuldade, e cada segundo era uma escolha entre a esperança e o abismo.

Com a responsabilidade de um filho mais velho e o amor de um irmão, peguei Lizzie no colo e encostei minha mãe em meu ombro ferido. Mancando, mas determinado, afastei-me dos ecos flamejantes de nosso passado, buscando socorro."

-Papai... Papai... -Sinto um toque leve em meu rosto e Meus olhos se abrem abruptamente, e sua figura, ainda embaçada pelo sono e pelo susto de um passado que insiste em me rondar através de pesadelos, se desenha a minha frente. Por um momento, encaro-a, tentando separar os fragmentos daquele terror noturno da inocência que se preocupa comigo agora.

O calor que abrasa meu rosto não é o devorar de chamas, mas o toque gentil e levemente úmido das pequenas mãos de Emily, minha filha de cinco anos

-Meu amor, o que você está fazendo aqui?- Minha voz sai mais suave do que eu esperava, traçando carinhos pelo cabelo castanho dela, uma corrente silenciosa nos conectando

-Estou indo para a escola, você não foi me dar um beijo de bom dia hoje -sua voz mingua num tom triste, e percebo o peso de uma simples rotina quebrada.

Meu coração acelera por outro motivo agora; o relógio, meu companheiro dessa correria matinal, avisa que estou atrasado.

-Caramba, já são oito da manhã.-O trabalho, um gigante que nunca dorme, me aguarda.

-Desculpa, minha princesa, papai acabou dormindo demais. - A desculpa se mistura com o beijo que deposito em sua bochecha, o contato suave é um bálsamo para meu espírito ainda remoendo a angústia de uma noite tumultuada.

Ela toca minha camisa encharcada.

-Você tá molhado.-Observadora, aponta para minha vestimenta como que desvendando mais um mistério de seu mundo infantil.

A risada que ofereço é mera fachada, um escudo leviano contra verdadeiras razões de tal estado.

-Verdade, está muito calor, vou precisar de um banho - respondo tentando esconder a verdade por trás do meu suor frio - um corpo ainda preso ao terror de chamas imaginárias.

-Por que você não me leva para a escola hoje?-Ela ergue os olhos para mim com um desejo tão simples, e meu relógio interno brada que não há tempo.

-Hoje não dá meu amor, papai está atrasado para o trabalho.- A mão ainda em seus cabelos macios, acaricio resquícios de sono que se aninham como linhas de fragilidades em torno dela.

Sua expressão se entristece, um pequeno bico formando-se em reprovação infantil.

-Não quero ir com a babá, ela é muito chata.-A sinceridade infantil se expressa sem filtros, e eu não posso evitar o sorriso que ela desencadeia em mim.

Agacho-me, olhos nos olhos, pai e filha no mesmo nível.

-Vamos fazer assim, a babá te leva para a escola e eu vou te buscar e te levo para comer fora, pode ser?- Ofereço um compromisso, uma promessa revestida de rotina pela recompensa.

Seus olhos brilham, um universo vasto e simples onde a promessa de um pai é a maior garantia.

-Promete que vai me buscar?

-Prometo- a solenidade da minha palavra é a ponte firme sobre o riacho revolto da manhã corrida.

-Então eu aceito.-A negociação se fecha com a simplicidade de um sorriso de criança.

-Boa aula, princesa. Agora vai que o papai precisa se arrumar para o trabalho.6 Mais um beijo, essa vez na testa, uma bênção cotidiana.

Ela se vira, a pequena figura movendo-se com energia que eu invejo nesta manhã. Respiro fundo, a promessa feita sendo o norte de um dia que começa atravessado

Com o peito ainda reverberando do rescaldo de uma noite intranquila, eu me ergo. A vigorosa chama de energia da pequena Emily renovou meu ânimo, e empurro para longe o manto perturbador dos pesadelos que ainda me assombram. Mesmo que relutante, meu corpo alto e traçado por músculos definidos responde ao chamado da manhã. Caminho para o banheiro com passos determinados, e logo o chuveiro ecoa pelo espaço cerâmico, calor e vapor se tornando meu casulo temporário.

Deixo a água desfazer a tensão de minhas costas largas, aliviar a tensão de minhas pernas que carregam a altura de quase dois metros em solidez. O banho é uma limpeza ritualística, lavando resquícios de uma noite escura de inverno e pesadelos comuns para um homem carregando meu passado.

Quando retorno ao quarto, o tecido macio da toalha absorve o excesso de água ao longo de meu torso, o frescor do banho me acalmando. Diante do guarda-roupa, abro suas portas que revelam uma coletânea de ternos meticulosamente organizados. Meus dedos percorrem as casimiras e lãs frias até que se detêm em uma peça que personifica a seriedade e sofisticação: um terno de três peças em tom de azul-marinho, a textura fala de qualidade que só o olhar treinado pode verdadeiramente apreciar. O colete ajustado promete enfatizar a largura de meus ombros, enquanto a calça impecavelmente cortada cairá sobre meus quadris definidos com precisão e graça.

A escolha dos sapatos não é menos cuidadosa. Opto por um par de Oxfords de couro polido, o brilho do material refletindo a luz da manhã que agora penetra pelas janelas amplas de meu quarto. São sapatos que transmitem poder, cada passo uma afirmação.

Passo para o perfume, uma fragrância que entrelaça cítricos e madeira, ecoando a multi-faceta de minha própria existência — a acidez dos desafios enfrentados e a solidez da determinação que me trouxe até aqui.

Finalmente, me aproximo da coleção de relógios, meu orgulho silencioso. Cada um fala de um sucesso, de um caso ganho, de um marco em minha trajetória. Hoje, a escolha recai sobre um cronógrafo de aço com mostrador de safira, cujo peso em meu pulso é um lembrete constante do tempo que desafia e define tanto.

Estou pronto. A postura é a do guerreiro fora do campo de batalha, cada item de vestuário uma armadura. O homem no espelho reflete o que o mundo espera ver: Dante Draven, o advogado milionário — sério, orgulhoso, e inegavelmente marcado pela ferroada elegante do meu próprio caráter.

Deslizo pelo corredor perfumado do meu apartamento com passadas largas, a urgência da manhã pendendo sobre mim como uma toga desafiadora. Meu objetivo é claro: alcançar o estacionamento onde meu carro, um espetáculo de engenharia e luxo, aguarda — um Aston Martin DB11, uma obra-prima cintilante em tons de um preto profundo que sugere a vastidão do cosmo, tão silencioso quanto a noite, pronto para explodir em uma força retumbante ao menor toque.

A cautela me impele a inspecionar o veículo antes de assumir o volante, uma rotina agora tão enraizada quanto meu próprio reflexo. Observo cada pneu, a integridade das janelas, o sutil recuo da linha da porta que poderia sugerir uma intromissão indesejada; todos lembranças das ameaças que afio com cada veredicto pronunciado. Satisfeito com a segurança, destranco o carro e o som acolhedor de portas que se destrancam ressoa com um click satisfatório.

O interior é um santuário de couro e metal, as costuras do estofado são linhas de latitude e longitude que mapeiam meu reino de conforto e poder. Assento-me, e com um simples giro da chave, o carro ganha vida, um rosnado grave que me fala de potência contida.

Eu parto, o veículo respondendo a cada comando com a precisão de um dançarino parceiro. Minha mente, entretanto, começa a divagar, correndo para a tarde quando retirarei Emily da escola, onde nossa promessa espera para ser cumprida. Prevejo o sorriso dela, a leveza de seu abraço, que por mais um dia irá suturar as feridas de responsabilidade e memória.

Vou enviar uma mensagem para Rachel assim que estiver no escritório, uma simples nota para desenredar os fios da tarde de seus compromissos com minha filha. Os minutos são contados, então piso no acelerador, a rua quase deserta se estendendo diante de mim com a promessa de um itinerário direto e rápido.

E então ela aparece — uma jovem, os movimentos impetuosos, carregando sacolas como correntes insubstanciais contra a força de toneladas de aço e velocidade. Mesmo o semáforo implorando atenção com sua luz vermelha, ela avança, sou arrancado da contemplação de futuros promissores, enfrentando o território familiar do imprevisto.

Minha reação é instintiva, o pé esmaga o freio com a decisão de uma alegação final, o carro obedece, tremendo sob a pressão de parar a tempo. Ela se vira no último segundo, o susto pintado em seus olhos encontrando o meu próprio, espelhando a mesma surpresa e terror que eu via nos acusados esperando veredictos na sala do tribunal.

Paramos, o carro e eu, tão perto dela que posso distinguir a marca do batom avermelhado que ela usa, o tom claro de suas unhas pintadas contrastando com o plástico das sacolas. Por um momento que parece suspenso, só existe nós três — ela, eu e a máquina que acaba de obedecer à distância de um fôlego.

No susto a mulher acabou deixando as compras caírem no chão, ela se abaixa para pegar as compras

A frustração é uma faísca em meu peito, incandescente e tirânica – como sempre acontece em momentos de atraso inesperado.

"Por que essas coisas sempre acontecem quando estou atrasado?" A irritação borbulha dentro de mim, uma erupção inoportuna que me coloca à beira.

-Você poderia pegar essas malditas compras logo? Preciso passar-clamo, a voz amplificada pelo silêncio abrupto da rua, enquanto minha cabeça emerge pela janela para dirigir meu desagrado à jovem, cujos movimentos agora parecem desacelerados pela própria indignação.

-Se você fizesse a gentileza de me ajudar, seria mais rápido- ela dispara de volta, levantando a cabeça, um relâmpago de rebeldia em seu olhar chocado e uma faísca de desafio que brilha de volta para mim.

-Se você tivesse sido mais atenta, isso não teria acontecido- respondo automaticamente, o estresse tingindo cada palavra, moldando-as em armas aguçadas pelo resmungo.

Ela responde apenas com um olhar, mas continua a juntar as compras com sua paciência original intacta

Então, um suspiro me escapa, carregado de uma impaciência que se dissipa no ar frio da manhã. Relutante, saio do carro, atento para atrais o pisca-alerta. Me aproximo, a figura dela se agacha meticulosamente em meio a maçãs e legumes espalhados – um retrato de caos comum, comum demais para a minha preferência matinal.

Minha mão toca no chão frio, recolhendo uma maçã que tinha rolado mais distante. Enquanto me inclino, ela se assusta, e quando nossos olhos se encontram, algo inesperado se aninha em meu peito. Uma faísca, estranha e indomável, arremessa-se em mim, contra toda a lógica e compostura que recobre a minha existência.

Por um momento minúsculo, que talvez valha centenas dos meus casos de sucesso, o mundo se estreita até este ponto de interseção – seus olhos, vastos e curiosos, refletem uma faixa de céu azul iluminado que eu já esquecia existir.

Eu balanço a cabeça, tentando voltar para a realidade enquanto ajudo a mulher a recolher os legumes que caíram da sacola. Seus olhos, tão intensos e curiosos, me prenderam por um momento, fazendo-me esquecer de tudo ao meu redor. Mas agora, a dura realidade retorna, e eu me lembro de que não estamos em um conto de fadas.

Silenciosamente, termino de ajudá-la a recolher os legumes, colocando-os de volta na sacola com cuidado. Assim que terminamos, a mulher se levanta do chão e vira de costas, pronta para ir embora. É então que decido que não posso deixar essa situação passar sem uma palavra final.

-Não vai agradecer a ajuda?-pergunto, com um tom de ironia, tentando esconder a frustração que começa a surgir dentro de mim.

Ela se vira para mim, seus olhos cheios de desdém. -Não é o mínimo que você poderia fazer após quase ter me matado- responde com um tom de voz afiado.

Eu solto um suspiro exasperado.

-Você atravessou no farol fechado para pedestres - respondo, minha voz carregada de sarcasmo.

-Não jogue a culpa em mim por sua própria imprudência.

A mulher não responde, apenas vira as costas e começa a andar, como se quisesse deixar essa breve interação para trás. Observo-a se afastar, sentindo uma mistura de raiva e confusão dentro de mim.

Que mulher Irritante

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Comments

Cristina Rosa

Cristina Rosa

que homem lindo !;;;

2024-08-29

1

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