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Ecos Do Passado

Capítulo Um

Dante Draven

"O frio lá fora fazia as janelas da grande sala formarem pequenos cristais de gelo, garranchos da natureza sobre o vidro. A mansão iluminada e imponente, contrastava com o manto branco que cobria Chicago naquela véspera de Natal. Eu tinha apenas o quartorze anos , mas já sentia a gravidade daqueles momentos em família, capturando-os em minha memória como tesouros preciosos.

A cozinha era um coração quente em meio ao frio, o cheiro de especiarias e do chocolate quente compunha uma melodia olfativa que se entrelaçava com as risadas de meus irmãos. Mamãe estava ao nosso lado, sua beleza serena como sempre, guiando nossas pequenas mãos na arte de fazer biscoitos de Natal. Os cortadores dançavam entre nossos dedos, criando estrelas, árvores e sinos no mar de massa sobre a mesa. A simplicidade desse contentamento parecia magicamente eterna.

Papai e Lizzie, a caçula, estavam na sala - eu podia ouvir o tilintar suave das bolas de Natal conforme eram penduradas na árvore. A gargalhada de meu pai, grave e calorosa, se espalhava pela casa, contagiando-nos com uma alegria que parecia emanar das próprias paredes de nossa casa.

Foi então que o tom do momento mudou. Papai apareceu de súbito na cozinha, um leve franzir de testa retirando a suavidade de seus traços. "Estão queimando os biscoitos?" Ele questionou, alarme disfarçado em sua voz de barítono.

Mamãe parou, uma mancha de farinha em sua bochecha ressaltando a confusão em seus olhos verdes.

"Mas, querido, ainda nem começamos a assá-los," disse ela, sua testa se enrugando igualmente.

O cheiro doce foi substituído por um odor acre que crescia em intensidade. As risadas dos meus irmãos cessaram, substituídas por expressões de medo. Meus pais trocaram olhares silenciosos, a faísca de temor em seus olhos evidente.

Do lado de fora, a neve caía gentilmente, escondendo seus segredos. Dentro da mansão , o cheiro estranho prenunciava um segredo sombrio, não um doce conforto, mas o prelúdio de uma perda que mudaria nossas vidas para sempre.

Meu pai tinha se apressado para fora da cozinha, movido por um instinto que só os pais possuem, aquele senso aguçado de que algo estava terrivelmente errado. Minha mãe, sempre a âncora de nossa família, não podia se permitir a crer que nossa fortaleza poderia ceder; assim, continuou a orquestrar a valsa da confeitaria, tentando sustentar a normalidade por mais um momento precioso.

Não durou muito. As palavras de meu pai cortaram o doce ar como uma lâmina afiada quando ele voltou correndo

"Paremos agora! Precisamos sair imediatamente! A casa está em chamas!"

Em chamas? Perguntei-me, sentindo meu estômago afundar. Como poderia nosso lar, aparentemente seguro e imutável, estar agora submerso em tal caos, especialmente em meio ao tranquilo e gélido manto branco que cobria tudo lá fora?

Não houve tempo para os porquês e comos. A fumaça começou a se infiltrar nos cantos da cozinha, um lembrete maligno de como o perigo se aproximava.

A asma já dificultava a respiração da minha mãe e de Lizzie, tornando cada sopro um esforço árduo. O ar ficava cada vez mais ralo, as batidas do meu coração aumentando em um alarmante crescendo.

"Filho, você é o mais velho. Preciso que seja corajoso," disse meu pai, mantendo uma calma que sabíamos ser forçada. Ele preparou o caminho para nossa fuga, forrando-o de toalhas brancas que logo seriam manchadas pelo desespero e cinzas.

Pulei primeiro, uma queda que pareceu durar uma eternidade antes que a terra fria me recebesse com o impacto duro da realidade. A dor em minha perna gritou, mas era nada comparado ao terror de deixar minha família para trás.

Segurei firmemente minha mãe, quando ela foi ajudada a descer. Depois Lizzie, tão leve em meus braços, como se todo seu ser estivesse sendo consumido pelo susto. A expectativa de meu pai reaparecer com Luke e Diogo foi tão opressiva quanto o peso do silêncio envenenado pela fumaça que não cessava de crescer.

"Pai!"-Minha voz se perdeu em um eco de desamparo. Mas ele não apareceu. Ninguém mais apareceu. Apenas as chamas, avançando como um monstro devorador, engolindo alegrias, sonhos e memórias.

"Não, não, Pai... Luke... Diogo" -clamei aos fantasmas que a fumaça carregava.

"Filho... precisamos sair... "- A voz da minha mãe, agora fraca, era um lembrete de que ainda havia vidas a salvar. Lizzie, quase desfalecendo em minhas mãos, respirava com dificuldade, e cada segundo era uma escolha entre a esperança e o abismo.

Com a responsabilidade de um filho mais velho e o amor de um irmão, peguei Lizzie no colo e encostei minha mãe em meu ombro ferido. Mancando, mas determinado, afastei-me dos ecos flamejantes de nosso passado, buscando socorro."

-Papai... Papai... -Sinto um toque leve em meu rosto e Meus olhos se abrem abruptamente, e sua figura, ainda embaçada pelo sono e pelo susto de um passado que insiste em me rondar através de pesadelos, se desenha a minha frente. Por um momento, encaro-a, tentando separar os fragmentos daquele terror noturno da inocência que se preocupa comigo agora.

O calor que abrasa meu rosto não é o devorar de chamas, mas o toque gentil e levemente úmido das pequenas mãos de Emily, minha filha de cinco anos

-Meu amor, o que você está fazendo aqui?- Minha voz sai mais suave do que eu esperava, traçando carinhos pelo cabelo castanho dela, uma corrente silenciosa nos conectando

-Estou indo para a escola, você não foi me dar um beijo de bom dia hoje -sua voz mingua num tom triste, e percebo o peso de uma simples rotina quebrada.

Meu coração acelera por outro motivo agora; o relógio, meu companheiro dessa correria matinal, avisa que estou atrasado.

-Caramba, já são oito da manhã.-O trabalho, um gigante que nunca dorme, me aguarda.

-Desculpa, minha princesa, papai acabou dormindo demais. - A desculpa se mistura com o beijo que deposito em sua bochecha, o contato suave é um bálsamo para meu espírito ainda remoendo a angústia de uma noite tumultuada.

Ela toca minha camisa encharcada.

-Você tá molhado.-Observadora, aponta para minha vestimenta como que desvendando mais um mistério de seu mundo infantil.

A risada que ofereço é mera fachada, um escudo leviano contra verdadeiras razões de tal estado.

-Verdade, está muito calor, vou precisar de um banho - respondo tentando esconder a verdade por trás do meu suor frio - um corpo ainda preso ao terror de chamas imaginárias.

-Por que você não me leva para a escola hoje?-Ela ergue os olhos para mim com um desejo tão simples, e meu relógio interno brada que não há tempo.

-Hoje não dá meu amor, papai está atrasado para o trabalho.- A mão ainda em seus cabelos macios, acaricio resquícios de sono que se aninham como linhas de fragilidades em torno dela.

Sua expressão se entristece, um pequeno bico formando-se em reprovação infantil.

-Não quero ir com a babá, ela é muito chata.-A sinceridade infantil se expressa sem filtros, e eu não posso evitar o sorriso que ela desencadeia em mim.

Agacho-me, olhos nos olhos, pai e filha no mesmo nível.

-Vamos fazer assim, a babá te leva para a escola e eu vou te buscar e te levo para comer fora, pode ser?- Ofereço um compromisso, uma promessa revestida de rotina pela recompensa.

Seus olhos brilham, um universo vasto e simples onde a promessa de um pai é a maior garantia.

-Promete que vai me buscar?

-Prometo- a solenidade da minha palavra é a ponte firme sobre o riacho revolto da manhã corrida.

-Então eu aceito.-A negociação se fecha com a simplicidade de um sorriso de criança.

-Boa aula, princesa. Agora vai que o papai precisa se arrumar para o trabalho.6 Mais um beijo, essa vez na testa, uma bênção cotidiana.

Ela se vira, a pequena figura movendo-se com energia que eu invejo nesta manhã. Respiro fundo, a promessa feita sendo o norte de um dia que começa atravessado

Com o peito ainda reverberando do rescaldo de uma noite intranquila, eu me ergo. A vigorosa chama de energia da pequena Emily renovou meu ânimo, e empurro para longe o manto perturbador dos pesadelos que ainda me assombram. Mesmo que relutante, meu corpo alto e traçado por músculos definidos responde ao chamado da manhã. Caminho para o banheiro com passos determinados, e logo o chuveiro ecoa pelo espaço cerâmico, calor e vapor se tornando meu casulo temporário.

Deixo a água desfazer a tensão de minhas costas largas, aliviar a tensão de minhas pernas que carregam a altura de quase dois metros em solidez. O banho é uma limpeza ritualística, lavando resquícios de uma noite escura de inverno e pesadelos comuns para um homem carregando meu passado.

Quando retorno ao quarto, o tecido macio da toalha absorve o excesso de água ao longo de meu torso, o frescor do banho me acalmando. Diante do guarda-roupa, abro suas portas que revelam uma coletânea de ternos meticulosamente organizados. Meus dedos percorrem as casimiras e lãs frias até que se detêm em uma peça que personifica a seriedade e sofisticação: um terno de três peças em tom de azul-marinho, a textura fala de qualidade que só o olhar treinado pode verdadeiramente apreciar. O colete ajustado promete enfatizar a largura de meus ombros, enquanto a calça impecavelmente cortada cairá sobre meus quadris definidos com precisão e graça.

A escolha dos sapatos não é menos cuidadosa. Opto por um par de Oxfords de couro polido, o brilho do material refletindo a luz da manhã que agora penetra pelas janelas amplas de meu quarto. São sapatos que transmitem poder, cada passo uma afirmação.

Passo para o perfume, uma fragrância que entrelaça cítricos e madeira, ecoando a multi-faceta de minha própria existência — a acidez dos desafios enfrentados e a solidez da determinação que me trouxe até aqui.

Finalmente, me aproximo da coleção de relógios, meu orgulho silencioso. Cada um fala de um sucesso, de um caso ganho, de um marco em minha trajetória. Hoje, a escolha recai sobre um cronógrafo de aço com mostrador de safira, cujo peso em meu pulso é um lembrete constante do tempo que desafia e define tanto.

Estou pronto. A postura é a do guerreiro fora do campo de batalha, cada item de vestuário uma armadura. O homem no espelho reflete o que o mundo espera ver: Dante Draven, o advogado milionário — sério, orgulhoso, e inegavelmente marcado pela ferroada elegante do meu próprio caráter.

Deslizo pelo corredor perfumado do meu apartamento com passadas largas, a urgência da manhã pendendo sobre mim como uma toga desafiadora. Meu objetivo é claro: alcançar o estacionamento onde meu carro, um espetáculo de engenharia e luxo, aguarda — um Aston Martin DB11, uma obra-prima cintilante em tons de um preto profundo que sugere a vastidão do cosmo, tão silencioso quanto a noite, pronto para explodir em uma força retumbante ao menor toque.

A cautela me impele a inspecionar o veículo antes de assumir o volante, uma rotina agora tão enraizada quanto meu próprio reflexo. Observo cada pneu, a integridade das janelas, o sutil recuo da linha da porta que poderia sugerir uma intromissão indesejada; todos lembranças das ameaças que afio com cada veredicto pronunciado. Satisfeito com a segurança, destranco o carro e o som acolhedor de portas que se destrancam ressoa com um click satisfatório.

O interior é um santuário de couro e metal, as costuras do estofado são linhas de latitude e longitude que mapeiam meu reino de conforto e poder. Assento-me, e com um simples giro da chave, o carro ganha vida, um rosnado grave que me fala de potência contida.

Eu parto, o veículo respondendo a cada comando com a precisão de um dançarino parceiro. Minha mente, entretanto, começa a divagar, correndo para a tarde quando retirarei Emily da escola, onde nossa promessa espera para ser cumprida. Prevejo o sorriso dela, a leveza de seu abraço, que por mais um dia irá suturar as feridas de responsabilidade e memória.

Vou enviar uma mensagem para Rachel assim que estiver no escritório, uma simples nota para desenredar os fios da tarde de seus compromissos com minha filha. Os minutos são contados, então piso no acelerador, a rua quase deserta se estendendo diante de mim com a promessa de um itinerário direto e rápido.

E então ela aparece — uma jovem, os movimentos impetuosos, carregando sacolas como correntes insubstanciais contra a força de toneladas de aço e velocidade. Mesmo o semáforo implorando atenção com sua luz vermelha, ela avança, sou arrancado da contemplação de futuros promissores, enfrentando o território familiar do imprevisto.

Minha reação é instintiva, o pé esmaga o freio com a decisão de uma alegação final, o carro obedece, tremendo sob a pressão de parar a tempo. Ela se vira no último segundo, o susto pintado em seus olhos encontrando o meu próprio, espelhando a mesma surpresa e terror que eu via nos acusados esperando veredictos na sala do tribunal.

Paramos, o carro e eu, tão perto dela que posso distinguir a marca do batom avermelhado que ela usa, o tom claro de suas unhas pintadas contrastando com o plástico das sacolas. Por um momento que parece suspenso, só existe nós três — ela, eu e a máquina que acaba de obedecer à distância de um fôlego.

No susto a mulher acabou deixando as compras caírem no chão, ela se abaixa para pegar as compras

A frustração é uma faísca em meu peito, incandescente e tirânica – como sempre acontece em momentos de atraso inesperado.

"Por que essas coisas sempre acontecem quando estou atrasado?" A irritação borbulha dentro de mim, uma erupção inoportuna que me coloca à beira.

-Você poderia pegar essas malditas compras logo? Preciso passar-clamo, a voz amplificada pelo silêncio abrupto da rua, enquanto minha cabeça emerge pela janela para dirigir meu desagrado à jovem, cujos movimentos agora parecem desacelerados pela própria indignação.

-Se você fizesse a gentileza de me ajudar, seria mais rápido- ela dispara de volta, levantando a cabeça, um relâmpago de rebeldia em seu olhar chocado e uma faísca de desafio que brilha de volta para mim.

-Se você tivesse sido mais atenta, isso não teria acontecido- respondo automaticamente, o estresse tingindo cada palavra, moldando-as em armas aguçadas pelo resmungo.

Ela responde apenas com um olhar, mas continua a juntar as compras com sua paciência original intacta

Então, um suspiro me escapa, carregado de uma impaciência que se dissipa no ar frio da manhã. Relutante, saio do carro, atento para atrais o pisca-alerta. Me aproximo, a figura dela se agacha meticulosamente em meio a maçãs e legumes espalhados – um retrato de caos comum, comum demais para a minha preferência matinal.

Minha mão toca no chão frio, recolhendo uma maçã que tinha rolado mais distante. Enquanto me inclino, ela se assusta, e quando nossos olhos se encontram, algo inesperado se aninha em meu peito. Uma faísca, estranha e indomável, arremessa-se em mim, contra toda a lógica e compostura que recobre a minha existência.

Por um momento minúsculo, que talvez valha centenas dos meus casos de sucesso, o mundo se estreita até este ponto de interseção – seus olhos, vastos e curiosos, refletem uma faixa de céu azul iluminado que eu já esquecia existir.

Eu balanço a cabeça, tentando voltar para a realidade enquanto ajudo a mulher a recolher os legumes que caíram da sacola. Seus olhos, tão intensos e curiosos, me prenderam por um momento, fazendo-me esquecer de tudo ao meu redor. Mas agora, a dura realidade retorna, e eu me lembro de que não estamos em um conto de fadas.

Silenciosamente, termino de ajudá-la a recolher os legumes, colocando-os de volta na sacola com cuidado. Assim que terminamos, a mulher se levanta do chão e vira de costas, pronta para ir embora. É então que decido que não posso deixar essa situação passar sem uma palavra final.

-Não vai agradecer a ajuda?-pergunto, com um tom de ironia, tentando esconder a frustração que começa a surgir dentro de mim.

Ela se vira para mim, seus olhos cheios de desdém. -Não é o mínimo que você poderia fazer após quase ter me matado- responde com um tom de voz afiado.

Eu solto um suspiro exasperado.

-Você atravessou no farol fechado para pedestres - respondo, minha voz carregada de sarcasmo.

-Não jogue a culpa em mim por sua própria imprudência.

A mulher não responde, apenas vira as costas e começa a andar, como se quisesse deixar essa breve interação para trás. Observo-a se afastar, sentindo uma mistura de raiva e confusão dentro de mim.

Que mulher Irritante

Capítulo Dois

Safira Rossete

O frio cortante da manhã me envolve enquanto atravesso a rua apressada, meu coração batendo acelerado com a pressa da vida urbana. Não esperava que um dia tranquilo se transformasse em um turbilhão de emoções ao quase ser atropelada por um homem arrogante, um verdadeiro cavalheiro moderno.Senti o calor do motor em minha pele enquanto recuava rapidamente, escapando do impacto iminente. Minha respiração se transformou em um suspiro aliviado, mas meus olhos capturaram o rosto do homem responsável por fazer meu coração bater descompassado.

 Como ousa quase atropelar uma dama? Mas meu orgulho ferido foi momentaneamente obscurecido pela realidade: ele não me atingiu, e meus pés encontraram o chão firme, fortalecendo minha postura enquanto o encarava.

A expressão no rosto dele ao sair do carro não era de preocupação, mas sim de uma desdém quase palpável, como se eu fosse apenas um obstáculo a ser contornado e esquecido. Se não fosse pela leve inclinação de cabeça, eu teria pensado que ele sequer notou o susto que me causou. Seu olhar frio e indiferente se encontrou com o meu, marcando o início de um duelo silencioso.

Não houve oferta de ajuda imediata, mas, antes que pudesse expressar meu descontentamento, ele percebeu que eu não estava prestes a sair de seu caminho tão facilmente. Isso foi o suficiente para que ele se decidisse a cooperar, ainda que sua gentileza parecesse um fardo incômodo. Cada gesto dele era um lembrete de sua relutância em admitir que sua condução imprudente quase causou um acidente. No entanto, mesmo envolta na frustração do momento, não pude deixar de notar o quão absurdamente bonito ele era. Seus traços fortes e decididos, misturados com uma aura de confiança, o destacavam como uma escultura viva de arrogância e charme. Um pensamento audacioso, mas inegavelmente verdade

A poeira assentou-se, e a rua retomou sua serenidade, mas meu coração continuava sua dança frenética, ainda ecoando o susto que aquele encontro inusitado me causara. Era quase como se, no momento em que nossos olhares se encontraram, algo inexplicável tivesse sido desencadeado.

Finalmente cheguei àquela mansão imponente, uma fachada de esplendor que ocultava uma realidade sombria. Cada passo que eu dava em direção à entrada parecia ecoar com a dança frenética do meu coração, uma trilha sonora de contrastes entre o exterior majestoso e a prisão oculta que aquelas paredes representavam para mim.

A porta maciça se abriu com um rangido, saudando-me com uma visão familiar do hall grandioso, cujo mármore frio e os candelabros suntuosos contrastavam com a atmosfera gélida que permeava a casa.

 Não era um lar; era uma gaiola dourada na qual eu estava aprisionada desde que fui retirada do orfanato.

Dorothy e Samuel, meus pais adotivos de título apenas, governavam essa mansão com rigidez. A promessa de uma família amorosa desvaneceu-se rapidamente quando percebi que a adoção era apenas um disfarce, uma artimanha cruel para me manter cativa em seus caprichos.

Meu uniforme doméstico já estava desgastado, uma vestimenta que simbolizava minha posição naquela casa. Eu, a empregada oculta por trás da fachada de filha adotiva. A cozinha, meu domínio de labuta, sempre ressoava com os sons da escravidão disfarçada de dever filial.

Deixei as compras em cima da mesa e fui para meu quarto

Cada canto daquela mansão era testemunha silenciosa das minhas lágrimas derramadas, uma poesia de sofrimento escrita nas paredes. Os quartos, os salões, todos refletiam uma beleza inalcançável, enquanto eu, a sombra que varria os vestígios de uma vida que nunca poderia ser minha, observava de longe.

A porta pesada se fechou atrás de mim, selando meu destino até a próxima aurora. O aroma de riqueza misturava-se com o perfume doce da opressão enquanto eu subia a escadaria, cada degrau um eco das minhas esperanças desvanecidas. À medida que avançava pelos corredores silenciosos, podia sentir os olhares julgadores dos retratos pendurados nas paredes, uma galeria de testemunhas mudas da minha subjugação.

O quarto que eu chamava de meu era uma cela decorada, um esconderijo de ilusões onde a beleza superficial desafiava a realidade. O dossel da cama era como um refúgio imaginário, uma cortina que separava o sonho da vigília. Ao longo dos anos, transformei esse espaço aparentemente meu em um refúgio mental, um santuário de pensamentos que ousavam sonhar com liberdade.

O relógio na parede anunciava a hora de me preparar para o segundo turno de escravidão, o emprego na escola que, ironicamente, proporcionava-me uma pausa da servidão na mansão. Vestindo meu uniforme escolar, que tinha mais dignidade do que o doméstico

Desci as escadas, cada degrau um eco do meu passado e um presságio do futuro incerto. A casa estava silenciosa, uma trégua momentânea na qual eu podia quase imaginar uma liberdade que estava além do meu alcance. As cortinas fechadas escondiam o mundo exterior, um lembrete de que, para mim, as ruas eram trilhas apenas percorridas entre a mansão e a escola.A cozinha era meu ponto de abastecimento antes de enfrentar a segunda metade do dia.

 Meu salário da escola , um trabalho que adquiri a algumas semanas, me proporcionava o luxo de comprar minha própria comida, uma liberdade limitada a algumas escolhas nas prateleiras empoeiradas da mercearia próxima. Peguei um pacote de bolachas e enchi um copo de água, uma refeição modesta para uma jornada marcada pela fome.

Devorei cada bolacha com uma urgência que vinha do conhecimento de que o tempo era um luxo que eu não poderia me dar. Meus pais adotivos não estavam em casa, uma bênção que me permitia saborear cada mordida sem o peso da vigilância constante.O silêncio na cozinha era uma sinfonia de solidão, e, por um breve momento, me permiti sonhar que poderia escapar da órbita daquelas paredes. Mas a realidade era implacável, e o último gole de água foi o despertar para a jornada que ainda estava por vir.

Terminei minha refeição apressada, lavando o copo

com um suspiro de resignação. As sombras da mansão pareciam esticar-se para me prender enquanto eu saía pela porta, com a determinação de enfrentar mais uma tarde de labuta.

A pé, seguia para a escola, os passos marcados pelo peso dos meus sonhos e pela dança incessante da minha mente. O arrogante charmoso que quase me atropelara ainda rondava meus pensamentos, uma figura indesejada que persistia, mesmo quando as ruas se desdobravam diante de mim.

...

O sol brilha no pátio da escola, criando pequenas poças de luz onde as crianças brincam alegremente. Minha função durante o intervalo é observar os pequenos, uma pausa na rotina que, por alguns momentos, me transporta para um mundo onde a leveza da infância é a protagonista.

-Toma, tia Safira trouxe para você.-A vozinha melodiosa de Emily ecoa, e ela estende um donut na minha direção. Seus olhos brilham com uma animação contagiante enquanto eu recebo o doce gesto.

-Obrigada, meu anjo.- A gratidão se mistura com um sorriso, e um beijo carinhoso no rosto da pequena é minha forma de retribuir.

-Percebi que você está animada hoje, aconteceu alguma coisa?-Pergunto, buscando puxar assunto e mergulhar nas histórias que florescem na mente infantil.

-Sim, papai vai vir me buscar para comermos fora, e vou poder ficar longe da bruxa chata.-Emily responde empolgada,

-Bruxa chata?-Indago, curiosa

-Minha babá, ela é muito chata, não me deixa fazer nada, e quando fala alguma coisa, é sobre meu pai. Já pedi para o papai arrumar outra babá pra mim, mas ele não me escuta... Eu queria uma babá legal igual você... Já sei, vou falar para meu pai que quero você como babá.-

Meu coração se aquece diante da ideia improvável e encantadora.

-Seria um grande alegria cuidar de você, mas eu gosto de passar esse tempo aqui, ajudando todos vocês durante o intervalo. E também seu pai pode não gostar da ideia - Respondo

O brilho nos olhos de Emily persiste, determinado, como se cada palavra que eu dissesse fosse uma nota em uma canção que ela ainda não desistiu de tocar.

-Mas eu vou falar com o meu papai, tenho certeza de que ele vai deixar, tia Safira. Você é tão legal, e eu não gosto daquela babá chata de jeito nenhum.- A convicção na voz dela é adorável, e eu me pego sorrindo diante da pureza de sua insistência.

-Ah, meu doce, eu aprecio muito o seu carinho, mas sei que seu pai toma decisões pensando sempre no seu bem-Tentando ser delicada, explico novamente, mas há algo encantador na persistência da pequena Emily.

O sinal toca, interrompendo nossa conversa e anunciando o retorno das crianças para a sala de aula.

-Vai ser nosso pequeno segredo, tia Safira. Eu vou falar com o papai mesmo assim!- Emily confidencia, com um olhar travesso e decidido. Ela me entrega um último sorriso antes de se juntar ao grupo de alunos que, como um cardume animado, se direcionam para as salas.

Observo Emily sumir pelo corredor, e meu coração se enche de ternura por essa pequena alma corajosa. É incrível como a esperança e a determinação podem residir em uma criança tão pequena.

Enquanto as crianças se dispersam e a escola retoma sua tranquilidade momentânea, eu me permito sorrir, absorvendo a energia vibrante do pátio. Por mais complexa que seja minha situação, esses momentos com as crianças proporcionam uma luz suave em meio às sombras da minha vida.

Capítulo Três

Dante

A fumaça ainda enche meus pulmões, mesmo depois de todos esses anos. O cheiro de cinzas e medo é tão real quanto o couro da cadeira em que estou sentado. Eu olho para o cliente à minha frente, mas minha mente está em outro lugar. Em um lugar onde o fogo dançava e a morte espreitava.

-Obrigado, Sr. Draven- o cliente se levanta, estendendo a mão para um aperto final. Eu o encontro com um sorriso polido, mas meus olhos estão vazios. Ele não percebe. Eles nunca percebem.

Assim que a porta se fecha atrás dele, eu me permito mergulhar de volta naquele dia. O dia em que perdi tudo. O dia em que o mundo meu mundo foi reduzido a cinzas. Minha mãe e minha irmã, ambas vítimas de um incêndio que nunca deveria ter acontecido. Ambas vítimas de uma asma que se tornou fatal naquela noite fatídica.

Eu sobrevivi, mas a que custo? A culpa me consome, corroendo-me por dentro. Eu deveria ter feito mais. Eu deveria ter salvado minha família. Mas como?

Eu sacudo a cabeça, tentando afastar os pensamentos sombrios. Eu tenho trabalho a fazer. A investigação. A busca por justiça. A busca pela verdade. Eu nunca acreditei que o incêndio fosse acidental. Tudo apontava para o contrário. E recentemente, eu descobri uma ligação. Uma ligação que poderia explicar tudo.

Os Rossete.

Uma família rica, mas com uma reputação sombria. Rumores de riqueza construída em meios ilícitos. Rumores de que eles exterminavam qualquer um que chegasse perto demais da verdade. Meu pai, também advogado, estava investigando-os. Ele deixou para trás documentos, provas de atividades criminais. E agora, esses documentos estão em minhas mãos.

Eu me levanto, caminhando até a janela. O sol está se pondo, banhando a cidade em um brilho dourado. Mas tudo que vejo são sombras. Sombras do passado. Sombras de uma vingança que está por vir.

Eu pego os documentos que meu pai deixou, espalhando-os sobre a mesa de mogno. As palavras dançam diante dos meus olhos, mas eu as forço a ficar quietas. Eu preciso entender. Eu preciso saber a verdade.

Os Rossete. Dorothy e Samuel. E sua filha, Safira. Eu não sei muito sobre ela, apenas que ela existe.

Eu pego meu laptop, abrindo uma nova aba de pesquisa. Eu digito o nome dela, mas a internet é surpreendentemente escassa em informações. Não há fotos, não há perfis de mídia social, não há nada. Como se ela fosse um fantasma.

Mas eu não vou desistir tão facilmente. Eu começo a cavar mais fundo, procurando qualquer menção a ela. Qualquer coisa que possa me dar uma ideia de quem ela é. De quem os Rossete realmente são.

Horas passam. Meus olhos estão cansados, minha cabeça lateja. Mas eu não posso parar. Não agora. Não quando estou tão perto.

Finalmente, eu encontro algo. Uma foto antiga, escondida em um artigo de jornal esquecido. Safira Rossete, uma criança de aproximadamente uns dois anos de olhos brilhantes e sorriso tímido. Ela parece inocente.

Eu olho para a foto por um longo tempo, tentando decifrar os segredos que ela pode conter. Eu preciso me aproximar dela. Eu preciso me aproximar dos Rossete. Mas como?

Eu penso em todas as possibilidades. Eu poderia me infiltrar em um de seus eventos de caridade. Eu poderia tentar me aproximar deles através de um amigo em comum. Eu poderia até mesmo tentar me passar por um investidor interessado em seus negócios.

Os Rossete são poderosos, e eu preciso de provas concretas contra eles. Provas que possam resistir ao escrutínio.

Eu olho para o relógio na parede, seu tique-taque constante é um lembrete cruel do tempo que não para, do tempo que não espera. Já são quase três da tarde. Hora de buscar Emily na escola. Eu havia prometido a ela. Promessas são sagradas, especialmente para uma criança que já perdeu muito.

Suspiro, fechando a pasta de documentos que estava examinando.

Eu me levanto, ajustando o nó da minha gravata. Meu reflexo no espelho de corpo inteiro do escritório me encara de volta. O homem no espelho é um estranho, um fantasma do passado vestido com o traje de um advogado bem-sucedido. Eu mal o reconheço.

Eu saio do escritório, deixando minha secretária com instruções claras.

-Se algum cliente aparecer sem ter marcado horário, diga que não estou mais atendendo hoje.- Ela acena, entendendo a urgência em minha voz.

O estacionamento está quase vazio quando chego lá. Meu Aston Martin DB11 brilha sob o sol da tarde, uma fera de aço esperando para ser solta. Eu entro no carro, sentindo o couro frio contra minha pele. A chave gira no ignição, e o motor ronrona em resposta.

Eu dirijo pelas ruas da cidade, cada esquina, cada luz de trânsito é um lembrete da vida que eu costumava ter. A vida antes do incêndio.

A vida antes dos Rossete.

A escola de Emily surge à vista, um oásis de inocência em um mundo que perdeu sua pureza. Eu estaciono o carro, olhando para o prédio. Crianças correndo, rindo, vivendo. Uma visão que aquece meu coração e ao mesmo tempo, traz uma pontada de tristeza. Emily merece uma vida normal, uma vida sem a sombra do passado pairando sobre ela.

 Eu caminho em direção à escola, meus passos ecoando na calçada vazia.

Uma das cuidadoras, uma mulher de meia-idade com um sorriso gentil, me vê e acena.

-Sr. Draven -ela diz

-Vou chamar Emily para você.

Eu assinto.

-Papai!-Emily corre em minha direção, seus cachos loiros saltando com cada passo. Mas ela não está sozinha. Ao seu lado, segurando sua mão pequena, está uma figura que faz meu coração parar.

A jovem do quase atropelamento.

Ela olha para mim, seus olhos azuis arregalados de surpresa. O choque é mútuo.

O que ela está fazendo aqui?

-Papai, já pode mandar a Rachel embora-Emily diz, seu sorriso inocente contrastando com a tensão que sinto.

-Achei minha nova babá.

Eu olho para a jovem, nossos olhos se encontrando em um silêncio desconfortável.

Eu olho para Emily, que me observa com olhos esperançosos.

-Filha, já conversamos sobre isso- digo, tentando manter minha voz firme.

-Mas... eu não gosto da Rachel, Safira é muito mais legal que ela- Emily murmura

Safira. O nome ecoa em minha mente. A filha dos Rossete se chama Safira. Mas não pode ser a mesma pessoa, certo? Safira é um nome comum nos Estados Unidos. Deve ser apenas uma coincidência.

-Então, seu nome é Safira, garota descuidada. Posso também saber seu sobrenome?- Pergunto, um sorriso sarcástico brincando em meus lábios. Safira me olha, seu cenho franzido em uma expressão de desafio. Ela é linda, tenho que admitir. E essa expressão de indignação só a torna ainda mais atraente.

-Não é da sua conta- Safira responde bruscamente, mas parece se arrepender imediatamente ao lembrar que Emily ainda está ali.

Eu dou um sorriso irônico, e Emily olha para Safira, confusa.

-Quero dizer... eu... não falo meu sobrenome para estranhos- Safira se corrige, sua resposta sem graça me fazendo rir.

Que garota petulante, penso comigo mesmo. Mas, de alguma forma, essa petulância só a torna ainda mais intrigante.

Safira

Ele me olha, seus olhos escuros fixos em mim. Então, ele se vira para Emily.

-Sinto muito, minha pequena, mas parece que Safira não é a melhor escolha para ser sua babá. Ela é muito mal-educada e também parece ser descuidada- ele diz, um sorriso sarcástico brincando em seus lábios. Eu posso dizer que ele está se lembrando do incidente mais cedo.

-Mas ela só está nervosa... a maioria das mulheres fica nervosa quando está perto de você. Foi a Rachel que me disse. Acho que é por causa do seu trabalho. Mas ela é legal, papai, eu juro- Emily tenta me defender, sua inocência brilhando em seus olhos.

Ele sorri para Emily, um sorriso que parece iluminar seu rosto sério. Então, ele se vira para mim novamente. Ele se aproxima, seus olhos escuros fixos em mim. Ele é alto, deve ter uns dois metros. Apesar do terno que veste, posso ver que seu corpo é musculoso. Ele tem um ar dominante, quase intimidante. Mas também é charmoso, de uma maneira estranha.

Meu coração dispara. Ele parece um anjo caído. Ele está tão perto que posso sentir o perfume de sua colônia. É uma mistura intoxicante de madeiras nobres e especiarias, com um toque de bergamota e âmbar. É um perfume masculino, dominante, assim como ele.

Eu me sinto minúscula diante dele. Por um instante, esqueço de respirar.

-É verdade, senhorita Safira? Eu te deixo nervosa?- Ele pergunta, tocando meu queixo com os dedos.

Eu engulo em seco, tentando encontrar minha voz. Mas tudo que consigo fazer é olhar para ele, perdida em seus olhos escuros.

Minhas pernas parecem bambas, como se fossem desmoronar a qualquer momento. Eu respiro fundo, tentando recuperar o controle.

-Não- consigo murmurar, minha voz mal audível.

Ele ri, um som profundo que parece ressoar em meu peito.

-Mentirosa-ele diz, se afastando de mim. Eu sinto a perda de seu calor imediatamente, como se um cobertor tivesse sido arrancado de mim em uma noite fria.

Ele se vira para Emily, seus olhos suavizando.

-Por favor, papai, deixa ela ser minha babá -Emily pede, seus olhos brilhando com esperança.

-Acredito que Safira não gostaria de deixar o trabalho na escola, não é Safira?- Ele pergunta, olhando para mim. Eu assinto, ainda impactada por sua presença. Ele é como um furacão, deixando um rastro de destruição em seu caminho.

Os olhos de Emily se enchem de lágrimas, e meu coração se aperta.

-Mas ela poderia cuidar de mim depois da escola, Safira também para de trabalhar nesse horário- Emily insiste, sua voz tremendo.

Ele suspira, passando a mão pelo cabelo.

-Vou pensar, está bem? Agora vamos, vou te levar para sua lanchonete preferida- ele diz, um sorriso aparecendo em seu rosto. Emily parece se animar imediatamente, suas lágrimas desaparecendo tão rápido quanto apareceram.

-Tudo bem, tchau Safira- Emily diz, acenando para mim. Eu aceno de volta, observando enquanto eles se afastam.

Eu fico ali, sozinha, o silêncio da escola vazia me envolvendo. Eu toco meu queixo, ainda sentindo o calor de seus dedos.

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