Era um domingo, um dia depois da entrevista com o doutor Julho Cezar. Teresa foi acordada pelo som agudo da campainha, e se levantou às pressas, colocando a sua prótese, indo até a porta, ainda de camisola, e abrindo-a, rezando para não ser o entregador do outro lado. Quando seus olhos de adaptaram ao clarão que entrou na sala, Teresa viu Luíza, de costas, se afastando, depois de desistir de esperar. Ela usava um casaco de frio e uma calça jeans.
— Luíza — Teresa a chamou, e Luíza olhou sobre o ombro.
— Ah, Teresa — ela disse — Achei que não tinha ninguém em casa.
— Eu tava dormindo, desculpa pela demora — ela disse, sem deixar de apontar o fato de Luíza tê-la acordado às sete e meia em uma manhã de domingo, isso, por si só, já deveria ser considerado como um atentado ao pudor.
— Desculpe por te acordar, filha, eu queria falar com você — Luíza disse, se aproximando novamente dela.
— Tá, entra aí, eu vou vestir uma roupa — ela disse, mas Luíza ficou na porta, fitando-a momentaneamente, antes de soltar o ar dos pulmões com um pouco de força.
— Na verdade, eu queria que você viesse comigo — ela disse.
— Ah, sério? E onde a gente vai? — Teresa perguntou, entrando para trocar de roupa.
— Na academia — Luíza respondeu, entrando e ficando sobre o tapete da porta, enquanto Teresa se dirigia para o quarto. Conforme se afastava, elas falavam mais alto.
— A tulipas? — Teresa perguntou, entrando no quarto, mas deixando a porta entreaberta, para que pudesse escuta-la.
— Aham — Luíza disse — Eu achei que você ia ficar mais abalada por ter caído no ensaio.
— Eu não tava tão abalada, até você dizer isso — Teresa disse, enquanto se desfazia da camisola, e procurava por algumas roupas em seu guarda roupas.
— Eu tô falando sério, Teresa — Luíza a repreendeu — Eu ouvi o que aquele homem disse, e sei que isso pode ter chateado você.
— Que eu sou fisicamente incapaz de fazer uma pirueta? — Teresa perguntou, usando o termo em português, só para não ter que pronunciar pirouette em francês.
— Eu acho que ele falou besteira — Luíza disse — Quem é ele pra dizer o que você é capaz de fazer ou não?
— Médico que não é — Teresa disse.
— Pois é, ele não é — Luíza confirmou.
— Mas se você só veio pra me consolar, sério, não precisa — Teresa disse, escolhendo uma calça jeans e uma blusa branca de mangas compridas.
— Eu não vim aqui só pra fazer isso — Luíza disse em tom de desdém — Acha que eu perderia meu tempo com isso? — acho, pensou Teresa, mas ela preferiu não falar, apenas sorriu, enquanto calçava as sandálias (era bem difícil fazer isso com a prótese).
— Não sei — ela respondeu simplesmente.
— Eu quero dar uma passada na academia pra ver umas coisas — Luíza disse. Era domingo, a academia estaria fechada, mas Teresa não focou muito nisso, já que Luíza era professora, como todo mundo sabe, domingos não existem para os professores (aparentemente, nem mesmo para as professoras de ballet).
— Tá bom, eu vou com você — Teresa saiu junto de Luíza, sem fazer questão de pregar os band-aids em sua bochecha, sua cicatriz já não incomodava tanto quanto no começo, dês de a conversa com Julho Cezar, quando ela descobriu que poderia servir de inspiração, sua cicatriz passou a ganhar um novo significado para ela; Teresa a olhava no espelho, mas não via uma imperfeição tosca, o que ela via era um símbolo de sua resistência, um claro lembrete de quem ela era; símbolos devem ser exibidos, lembretes devem ser lembrados.
Essa acabou sendo a primeira vez que Teresa viu a academia Tulipas vazia. A vizinhança estava calma, sem muito movimento de carros ou motos, a sorveteria estava aberta, mas havia apenas um jovem casal tomando sorvete em uma das mesinhas de plástico brancas, as outras estavam vazias. Olha-los, fez ela se lembrar de Gustavo; Teresa desviou o olhar e afastou-o de seus pensamentos. Sem o burburinho das alunas e professoras, os sons de música clássica e o chicotear dos passos na madeira escura, dava para ouvir perfeitamente o cantarolar dos passarinhos, e qualquer outro som, gerava um eco que reverberava pelas paredes.
— Então, você ainda vai dançar? — Luíza perguntou, com uma incredulidade tão exorbitante, que chegou a incomoda-la.
— A minha desistência era tão óbvia assim? — Teresa perguntou, enquanto Luíza pegava um chaveiro do bolso e abria a porta principal da academia, gerando um ruído seco que ecoou através do silêncio.
— Pelo que eu te ouvi dizer nesse tempo todo, sim, com certeza — Luíza disse, sem fazer questão de amenizar as coisas, ela nunca amenizava.
— Eu só pensei na ideia de servir de inspiração pra outras pessoas que... São iguais a mim — ela disse, um pouco hesitante, acompanhando Luíza para dentro do saguão da academia. Apenas quando disse isso em voz alta, ela percebeu o quão vergonhoso soava; suas bochechas coraram um pouco.
— Isso é uma coisa boa — Luíza disse — Você só foi pensar nisso agora? Não tinha passado pela sua cabeça em nenhum momento enquanto treinava?
— Não — Teresa disse — Eu nem lembrava que tinha outros cotocos no mundo — ela emendou, e riu um pouco de sua própria piada.
— Ah, isso me deixa com uma dúvida — Luíza disse — No que você tava pensando? — Ela perguntou, passando pelo balcão vazio da atendente, e indo até o vestiário, onde haviam vários armários de aço alinhados na parede. Ela abriu o terceiro armário. Lá dentro, Luíza guardava apenas alguns collants, sapatilhas de ponta de cetim, e algumas fitas de músicas clássicas: kenny g, Michael Jackson, Billy Ocean, e alguns outros, tinha até mesmo uma versão mais recente de Lago dos cisnes, gravada por um tal de Djonga Walter.
— Eu... Sei lá — Teresa disse, depois de pensar um pouco — Eu acho que eu só tava pensando em mim mesma.
— E não tá agora? — Luíza perguntou, pegando algumas fitas de música e fechando o armário em um pequeno estrondo — Você tá pensando em como essas pessoas poderiam se inspirar em você, ou em como você poderia ser uma inspiração pra elas?
— E tem alguma diferença? — Teresa perguntou, sorrindo, mas Luíza manteve-se séria, na verdade, ela até parecia um pouco soturna.
— A diferença tá em quem vem primeiro — Luíza disse — Eu vou dançar um pouco, você vem?
— Você me chamou aqui só pra ensaiar? Você viu o que eles disseram lá, né? É fisicamente impossível, pra mim, fazer aquele movimento — Teresa disse, um pouco farta de toda aquela piedade, mas não era piedade que ela via nos olhos de Luíza, era uma triste e experiente compreensão.
— Eu quero te mostrar uma coisa, se não for pedir demais que você cale a boca e observe um pouco — Luíza disse, removendo a blusa; ela já usava um collant por baixo.
— Tá... — ela respondeu em um tom de voz afetado..
— Se você observar melhor as pessoas mais velhas, você vai ver que elas tem muita coisa pra te ensinar — Luíza disse, removendo a calça também, e ficando apenas com o collant. Ela pegou um par de sapatilhas de ponta, que estava embaixo do banco, e calçou-as.
— Tá bom, eu tô observando — Teresa disse, revirando levemente os olhos.
No salão de dança do primeiro andar (assim como em todos os outros), havia um aparelho de som portátil de duas caixas. Aquele era um modelo que rodava fitas e CDs, e (se você o aguentasse na costas) poderia ser levado para qualquer lugar. Luíza foi até o aparelho, com uma pilha de fitas nas mãos, e colocou uma fita do tal Djonga para tocar, música clássica de ballet. Teresa apenas a observou, na entrada do salão, enquanto ela se colocava na ponta dos pés, e caminhava em pas até o centro do salão. Teresa já tinha visto Luíza dançar algumas vezes, como quando fez uma demonstração da maneira correta de se proporcionar para um pirouette bem executado, ou como quando ela demonstrava o modo prático de trabalhar o seu port de bras (a forma correta de mover os braços); mas ver Luíza se mover por aquele salão, sem alunas, sem professoras, sem regras e sem limitações, foi a coisa mais mágica que já lhe aconteceu. Luíza iniciou o ato com uma chuva de frappés, fazendo menção ao primeiro ato de sua apresentação, mas não demorou para que ela começasse a usar os movimentos que foram destinados a Teresa, realizando um Grand Battement com a perna esquerda para trás, em adágio, tão lentamente perfeito, tão sincronizada com as batidas dos instrumentos clássicos, que quase parecia flutuar sobre sua perna direita. Luíza se moveu na ponta dos pés, enquanto seus braços mudavam da quinta para a primeira posição, deslizando como as asas de uma borboleta. A música fez uma pausa, e tudo parecia estar acabado, por um momento, Luíza ficou imóvel como estava, com os pés em quinta posição, e as mãos em primeira; mas a força dos violinos retornava, junto ao piano, como em um estrondo sonoro, e Luíza voltara a se mover pelo salão, realizando dois passos para a frente, e um Grand jete, um dos passos mais difíceis do ballet, se não o mais difícil. Por um momento quase interminável, Luíza esteve no ar, com sua perna esquerda esticada para trás, e a direita esticada para a frente, ensejando tocar no piso frio, sem hesitação alguma, completamente segura de si mesma. Havia uma diferença crucial entre elas, todas as vezes que Teresa realizava um grand jete, ela não sabia se cairia de pé, ou se quebraria as suas pernas em um espacate involuntário. Luíza era diferente, ela tinha certeza que cairia de pé, e essa certeza fazia com que os seus movimentos fossem mais livres, mais ousados. Luíza ainda realizou mais três grand jetes em direção ao final no salão; no último deles, ela realizou uma Fouetté rond de jambe en tournant, girando sobre seu pé esquerdo, e chicoteando o ar com a perna direita, no fim, recatando a perna e realizando um pirouette de quatro voltas, o mesmo movimento que diziam ser fisicamente impossível para Teresa. A música acabava com esse tom, com um ar de realização, enquanto os violinos subiam a sua nota ao máximo, e se calavam subitamente. Apesar de a música ter acabado, Teresa ainda podia ouvir o cântico das fadas em sua mente, em um constante e caloroso coral, agraciando a performance de Luíza. Teresa aplaudiu-a lentamente, se aproximando do centro do salão com um sorriso no rosto.
— Às vezes, eu nem acredito que você já tem mais de sessenta anos — ela disse. Luíza a olhou com uma expressão impassível.
— Isso porque eu nunca usei minha idade como desculpa pra não dançar — respondeu-a.
— Ah, Deus, vai começar — Teresa suspirou.
— Não, nada disso, eu não dou desculpas — Luíza disse — Não adianta pedir pra Deus te dar uma coisa que você não tá disposta a conquistar.
— Tá, deixa eu ver se eu entendi, você acha que eu tô usando a minha prótese como desculpa pra não fazer os pirouettes? — ela perguntou, elevando a voz, toda a magia se esvaiu do ambiente em um instante.
— Eu não disse nada — Luíza respondeu.
— Não, você fez uma insinuação estranha, nem vem com essa — Teresa insistiu.
— O que eu falei, Teresa, é que eu não dou desculpas pra não enfrentar os meus medos, todo mundo tem medo, mas é a forma como você lida com ele que te torna diferente — Luíza disse calmamente.
— Medo? Medo do quê? — Teresa perguntou, profundamente intrigada em ouvir as palavras meus medos vindas de Luíza — Do que você teria medo, Luíza? Poxa, você é incrível, olha só o que você acabou de fazer, você não tem nada a ver comigo, não tem nenhuma das minhas limitações!
— Você acha isso? — Luíza perguntou.
— Acho! — ela respondeu secamente.
— Certo, então eu não vou discutir — Luíza disse, sorrindo um pouco, não de maneira afrontosa, mas como um adulto rindo da ingenuidade de uma criança.
— Então não discuta — Teresa disse, se dirigindo até a saída do salão em passos firmes e estrondosos, mas quando estava quase a alcançando, Luíza falou novamente:
— Você já reparou que as pessoas tão sempre fugindo das coisas que dão medo a elas?
— Isso é meio óbvio, né? — ela perguntou, sem sequer olhar sobre o ombro — Quem iria correr pra cima de uma coisa que causa medo?
— Alguns animais fazem isso — Luíza disse, e Teresa ouviu os passos dela, se aproximando — Eles não sentem medo de coisas que deixariam a gente morrendo de medo.
— Luíza — ela se virou para Luíza, com um sorriso de insatisfação no rosto, e com o cenho franzido — Do que você tá falando, hein?
— Eu só tava pensando esses dias, sobre... — Luíza começou, mas se calou, ficando em silêncio por um tempo, com o olhar distante, como se tivesse um vislumbre de memórias antigas e inacessíveis, até que Teresa perdeu a paciência.
— Sobre o quê? — ela perguntou.
— Teresa — Luíza disse, retornando, em parte, à realidade. Ela fitou-a com uma profunda curiosidade brilhando em suas pupilas, e sua pergunta, fez com que Teresa achasse que ela tinha perdido a cabeça — Você acredita em destino?
— Destino? — Teresa repetiu, com uma interrogação no rosto; ela arqueou uma sobrancelha — Eu acho que não, Luíza, por quê?
— Eu não sei se eu acredito, mas eu com certeza acredito no sobrenatural — Luíza respondeu.
— Legal, mas eu ainda não entendi.
— Você quer ouvir uma história? — Luíza perguntou, fitando-a com aqueles olhos cheios de um misterioso brilho. Era como se Luíza estivesse envolta em uma aura mística, uma aura que, aos poucos, tentava repelir Teresa para longe.
— Olha, eu não sei se vai dar — Teresa disse, tentando sair de fininho (aquela história de magia e destino estava subitamente lhe causando calafrios), mas Luíza suspirou, com aquela expressão aborrecida.
— Eu prometo que te explico direitinho do que eu tô falando — ela insistiu.
— Não sei... Toda essa conversa sobre medo, animais e destino, tudo isso parece coisa de doido pra mim — Teresa disse, imitando um pouco a sinceridade exacerbada da própria Luíza.
— Não me trate como se eu fosse uma louca, menina, por que você não escuta a história primeiro, pra depois começar a me julgar? — ela perguntou, com aquele jeito áspero que já era clássico. Teresa conhecia Luíza, sabia que ela não era louca, ela podia ser a mulher mais ranzinza desse mundo, podia ser calada e ter sérios problemas para firmar relações com as pessoas, e podia perfeitamente ter tido uma queda de glicose e estar balbuciando nesse momento, mas ela não era louca...
— Fala, onde você quer chegar com isso? — Teresa perguntou, depois de respirar fundo. A aura de Luíza, agora, parecia capaz de engoli-la, capaz de leva-la para um lugar que estava além da compreensão, mas isso já não lhe importava muito.
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Atualizado até capítulo 23
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