Teresa aceitou a proposta de Fábio, mas ainda não fazia ideia do que a aguardava, ela só pôde ter um vislumbre do quão grandioso e assustador aquilo seria, quando recebeu uma cópia escrita da coreografia; ela estava encadernada, e tinha todas as instruções, desde alinhamento musical, até glossário de termos próprios. Todos os passos eram de alto nível, mesmo os que foram designados para ela, e por um momento, ela pensou em desistir, mas quando mostrou à Luíza, no final das aulas, ela pareceu não se abalar muito com o roteiro, apenas batendo em seu ombro de forma encorajadora.
— Vai ser fácil — ela disse — É só você treinar todos os dias à partir de agora.
— Tem um pirouette no final do terceiro ato — Teresa respondeu amargamente — Eu não sei nem se tem como eu fazer isso com uma prótese.
— Se você não conseguir, a gente corta esse movimento — Luíza disse — Não se esqueça que isso tudo é sobre você — ela emendou, mas isso não ajudou muito...
O treinamento começou dois dias depois. Teresa detinha o papel principal, mas estava cercada de bailarinas muito mais habilidosas do que ela. Fábio escalou as alunas da turma avançada para fazerem os papeis de coadjuvantes, eram nove bailarinas, todas tão perfeitas e talentosas, que pareciam flutuar sobre o piso; uma delas era Emanuele Souza. Teresa não sabia muita coisa sobre Emanuele, além de o fato de ela ter sido uma fofoqueira quando mais nova, e que ela era sobrinha da antiga dona da academia Maria Pascoal. Nos dias em que estiveram ensaiando, ela pôde confirmar que a garota realmente nutria um certo rancor por ela (e não dava para culpá-la). Nos momentos em que se distraía, Teresa podia sentir o olhar penetrante de Emanuele, estudando-a, analisando-a, e quando estavam dançando, era como se ela quisesse sempre roubar o seu lugar. Várias vezes, Emanuele foi repreendida por invadir o seu espaço, como se a coreografia, por si só, já não fosse difícil o suficiente. De primeira, as garotas formais (como Fábio insistia em chama-las) abriam espaço pelo piso, todas nas pontas dos pés, com os braços em quinta posição, Emanuele ficava no centro, com quatro garotas em cada um dos lados. A sinfonia tinha início, ao som harmonioso de violinos e saxofones; os músicos (vinte no total) entravam em cena, como em uma marcha, ficando nas sombras, atrás das bailarinas, enquanto elas iniciavam o número, transbordando formalidade em seus movimentos. Elas iniciavam golpeando os chãos em uma chuva de frappés, antes de mudarem bruscamente de posição, tentando se encaixar umas nas outras e partirem para um entrechat, onde pulavam e moviam os pés nervosamente no ar (quando criança, Teresa achava que esse movimento de pés se assemelhava bastante aos de alguém em uma forca). As bailarinas se moviam com graciosidade, como verdadeiros cisnes, realizando adágios e grand battements com uma precisão quase cirúrgica, isso apenas no primeiro ato. Teresa teve que assisti-las ensaiar apenas essa parte por uns três dias, enquanto tentava aprender os seus movimentos para o segundo ato que estava por vir. Depois de alguns dias de ensaio, Quando todas as garotas formais já haviam se cansado de arrancar elogios de Fábio, elas tentaram fazer o segundo ato pela primeira vez. Após a onda de formalidade dos violinos, violoncelos e saxofones, os instrumentos se calavam, restando apenas um violino solitário e melancólico. Todas as moças ficavam mais ao fundo, com as pernas e braços em primeira posição; era quando ela deveria entrar em cena. O seu primeiro movimento era um Arabesque Penchée em adágio, obviamente, bem além do que ela conseguiria fazer com o nível em que estava, o que Teresa fez quando entrou em cena foi uma versão mínima do movimento (quase um Arabesque à demi-hauteur), e sabia que Emanuele (ou qualquer outra garota) estava rindo dela nesse momento. As outras bailarinas marchavam para cerca-la, enquanto uma fanfarra de tambores se unia ao violino, as moças cercavam-na com Frappés afiados como açoites no piso, enquanto ela se movia em um Arabesque à hauter onde erguia brevemente a sua perna, girando sobre a ponta do pé e deslizando sob a chuva de açoites, a maior parte do segundo ato, se seguia nessa onda de movimentos repetitivos, feitos nas pontas dos pés, a fanfarra crescia, os violinos voltavam a tocar harmonicamente, a canção ganhava mais energia, e as moças formais realizavam, todas ao mesmo tempo, os movimentos de Pirouette, erguendo uma das pernas para gerar propulsão e girando sobre uma ponta de pé (elas deveriam fazer três giros, mas Teresa viu que algumas mal conseguiram concluir o segundo), isso marcava o final do segundo ato. Teresa (apesar de não estar preparada) imaginava que eles ainda iriam ensaiar o terceiro e último ato, mas Fábio se aproximou do centro do salão, com um tom de insatisfação em seu rosto.
— Parem, parem, por favor — ele disse em alta voz, se colocando no meio das bailarinas e abanando os braços como se fosse atacado por um enxame de abelhas.
— O que foi? — Emanuele perguntou.
— Teresa, querida, você não tá fazendo isso direito, você tá tentando ser precisa em seus movimentos, mas não tá colocando sentimentos, meu amor — ele disse em uma suave (porém firme) repreensão.
— Eu tô tentando seguir os passos da coreografia, mas eu ainda não tenho força e nem equilíbrio suficiente pra maioria deles — ela disse em justificativa, enquanto as outras garotas se dispersavam com um ar de afobação, aquela foi a primeira interrupção direta que Fábio fez em um ensaio.
— Teresa, meu amor, você não tá entendendo — ele disse, segurando-a firmemente pelos ombros — Você não tem o equilíbrio necessário, e nem vai conseguir ter até o dia da apresentação, então, o que você faz?
— Mas eu vou conseguir, só preciso de tempo — ela disse, mas foi rapidamente interrompida:
— Você não entendeu a pergunta, então, SE você não conseguir, o que você faz? — ele insistiu, fitando-a com seus olhos escuros e profundos.
— Não sei, a gente cancela a apresentação? — Teresa perguntou, desviando o olhar para Luíza, que ainda estava encostada na parede, apenas observando, como fazia todos os dias desde que os ensaios começaram.
— Cancelar? Não, meu bem, a gente não vai cancelar se você não conseguir — Fábio disse, expondo um sorriso tão grande que chegou a ser doentio — Você improvisa! — ele disse, usando a voz grave, enquanto a sacudia pelos ombros.
— Improvisar? Pelo amor de Deus, eu não sei se eu consigo fazer isso, você quer que a apresentação seja um fiasco? — ela perguntou, elevando a voz de forma irritadiça.
— Você consegue, todo mundo consegue, meu bem — ele respondeu, retornando à sua voz aguda.
— Mas...
— Sem mais, Teresa, essa apresentação depende de você — Fábio pontuou — Então, o que você faz?...
— Eu improviso — ela disse em rendição, sem muito empenho.
— Exato — ele disse, com a voz ainda mais aguda — Tô contando com você, viu?
Com o fim dos ensaios, todas as bailarinas foram saindo do salão do terceiro andar em um mutirão de collants brancos e rosa. Teresa foi uma das últimas, e Luíza veio falar com ela, expondo um de seus raros sorrisos e batendo em seu ombro para apalpa-lo novamente. Embora gostasse da forma como Luíza o fazia, Teresa já estava um pouco cheia de pessoas apertando e balançando seus ombros. Ela recuou um pouco.
— Já chega disso, por favor — ela disse.
— Tudo bem — Luíza disse, lhe dando espaço para que terminasse de parafusar a prótese de pé plano.
— Então, eu fui péssima, né? — Teresa perguntou.
— Não, não foi, não — Luíza respondeu.
— Eu juro que não entendi o que aquele chato quis dizer — ela murmurou, terminando com a prótese e guardando o pé de ponta em sua bolsa — Ele fala pra eu improvisar e ser eu mesma, mas reclama toda vez que eu faço alguma coisa diferente do que ele planejou.
— Talvez você não esteja sendo você mesma — Luíza disse, passando a acompanha-la em direção à saída do salão.
— E ser eu mesma quer dizer que eu tenho que errar os passos?
— Não, isso você já tá fazendo — Luíza disse sem a menor suavidade — Você tem que acertar de um jeito diferente, você tem que encontrar o seu próprio método de dança, é nisso que o Fábio tá confiando.
— Achar o meu próprio método? — Teresa perguntou, enquanto elas paravam em frente do elevador, esperando que as apressadinhas o liberassem de volta.
— Não é fácil, algumas pessoas levam a vida inteira pra aprender os seus métodos, e algumas acabam morrendo sem nunca criar uma coisa nova — Luíza disse, olhando-a de canto.
— Eu tô começando a achar que foi um erro ter aceitado esse negócio — Teresa disse em resposta. Luíza bufou de irritação.
— Não, não foi um erro, você só se arrependeu porque está com preguiça de tentar entender onde é que o Fábio quer chegar com isso — ela disse.
— Eu não tô com preguiça — Teresa disse em tom de desdém.
— Não? E o que você tem, medo? — Luíza perguntou, fitando-a novamente, dessa vez, com olhos profundamente analíticos — Você tem medo de não conseguir corresponder às expectativas dele?
— Eu não tenho medo, Luíza — ela disse, no mesmo tom de voz, mas teve que se esforçar para não gaguejar, talvez ela tivesse um pouco (só um pouquinho) de medo.
— Não? Então por que você foge tanto? — Luíza perguntou, se aproximando dela e tomando todo o foco de sua visão. Os segundos de silêncio que se seguiram, foram os mais tensos de sua vida, por sorte, a porta do elevador se abriu, estalando de leve e quebrando a tensão que se instalou entre elas.
— Você vai descer? — Teresa desconversou, entrando no elevador.
— Não, não vou mais — Luíza disse. Enquanto as portas do elevador se fechavam, ela deu uma última olhada para Teresa — O ensaio final vai ser anunciado daqui a umas semanas, vai ter muita gente assistindo, inclusive, o comitê de arte tulipas, é melhor você pensar bem no que você quer fazer, Teresa — ela disse, e as portas se fecharam.
Embora não tenha gostado da bronca de Luíza, Teresa a entendeu, e elas continuaram ensaiando no decorrer do mês, até o dia do ensaio geral.
Quando o carro passou pelo semáforo da rua Xavier da Silveira. Teresa desejou, mais do que tudo, que Samanta resolvesse parar naquela lanchonete para comprar esfirras, ao menos para que ela ganhasse um pouco mais de tempo, mas nada feito, sua mãe estava tão ansiosa quanto Natália, que se esticava do banco de trás, pondo sua grande cabeça entre elas. Mais cedo, Samanta havia pedido para que Natália a acompanhasse nesse dia, a justificativa que ela deu foi: você vai precisar de um apoio moral, e nada mais, mas Teresa sabia que a frase estava incompleta, a frase completa era: Você vai precisar de um apoio moral se (ou quando) tudo der errado, e você fizer papel de otária pela milésima vez.
— Eu tô muito empolgada pra ver você fazer isso, sério — Natália disse, com um sorriso enorme (daqueles seus clássicos sorrisos que torciam o lábio superior, relevando uma parte da gengiva), no momento em que o carro estacionou em frente à academia tulipas. Teresa se arrastou nos ensaios das semanas anteriores, pulando, caindo, girando e falhando repetidas vezes. As broncas de Fábio já haviam se tornado tão automáticas, em sua mente, que quando ela ia fazer uma tarefa do dia-a-dia, como beber café, conseguia imaginar ele a julgando por isso: não, queridinha, você não tá bebendo esse café com paixão, eu quero paixão nisso, meu amor, paixão! E ela acabava rindo de si mesma por isso, era melhor do que chorar.
— É melhor nem ficar — Teresa disse, dando uma olhada no espelho retrovisor do carro, apenas para conferir se os band-aids estavam devidamente posicionados. Seria um problema para eles se ela continuasse suando frio daquele jeito.
— Nem adianta me pedir pra não ficar, eu tô muito feliz por você, Tê — Natália disse.
— E se eu cair e me arrebentar no chão? — ela perguntou, abrindo a porta do carro.
— Você não vai — Samanta disse em repreensão — Você ensaiou esse tempo todo, esse é só o ensaio geral, não é diferente dos outros — ela disse, mas Teresa sabia que isso não era verdade; o ensaio geral iria contar com o último movimento da coreografia, o qual ela ainda não tinha feito nos outros ensaios, um Pirouette de quatro voltas (que era uma volta a mais do que as moças formais eram capazes de fazer). Teresa treinou com Luíza, treinou em casa, treinou até no chuveiro (e essa foi uma péssima ideia), mas o mais longe que conseguiu chegar, foi em duas voltas, ela caiu na terceira e quase torceu o tornozelo.
— E se você cair, eu te ajudo a se levantar — Natália disse, saindo pela porta de trás e insistindo em ajuda-la a sair também.
— Tem certeza que não quer que eu vá? — Samanta perguntou.
— Mãe, não, isso seria muito vergonhoso — Teresa disse, e Samanta riu com desgosto.
— Tá bom, tá bom, a velhota tá indo embora — ela ligou novamente o carro, o motor rugiu suavemente — Se cuida, eu te amo.
— Também te amo — Teresa disse, e Samanta deu a partida, saindo dali e deixando-a sozinha com Natália, na calçada da academia. Natália era a única amiga que Teresa tinha preservado após o acidente, parte disso era pela natureza simples e sincera que ela tinha, ela era o tipo de pessoa de quem era impossível sentir raiva, tudo que ela dizia era puro, e ela não abandonava as pessoas, ao contrário das suas outras amigas; Darlene arranjou um namorado de São Paulo e tomou um chá de sumiço (antes mesmo do acidente), e os outros simplesmente cortaram o contato com ela depois de um tempo. Era um pouco engraçado pensar que sua mãe estava sendo a sua melhor amiga nesses dias de dificuldade, e Luíza quem estava se tornando uma espécie de mãe para ela, uma mãe bem mais rígida do que ela estava acostumada.
Já dentro da academia, Teresa se trocou e foi até o salão de dança principal, vendo que os músicos já estavam ali, junto às bailarinas e umas oito pessoas desconhecidas, que deviam ser o tal comitê de arte da Tulipas. Todos eles pareciam ter mais de cinquenta anos, só de vista, ela viu umas três carecas brilhando. Eles se vestiam como Fábio, lenços, jaquetas, óculos escuros e calças apertadas, como se fossem membros de uma mesma tribo urbana.
— Ah, chegou a nossa estrela — ela ouviu Fábio comentar animadamente com um dos membros do comitê, quando viu ela chegar.
— Teresa — Luíza, do outro lado do salão, chamou-a através de um gesto. Teresa respirou fundo e foi até ela, um pouco apreensiva, enquanto Natália seguia-a de longe.
— Oi.
— Você conseguiu? Conseguiu fazer o Pirouette? — Luíza perguntou.
— Não exatamente, pra ser sincera — ela disse.
— Eu vou falar com o Fábio — Luíza disse, fazendo menção de sair, mas ela a impediu, segurando-a pelo ombro.
— Não, me deixa tentar primeiro, eu já caí umas três vezes nesses ensaios, uma a mais não vai me matar, não — ela disse, mantendo o olhar em Luíza por um tempo, tentando afastar aquela ansiedade cortante de seu peito, e aquela voz pessimista que, embora muito mais baixa do que antes, ainda estava ali, sussurrando no fundo de sua mente: todos vão rir de você, você vai cair de bunda no chão de novo, vai ser uma comédia.
— Teresa — Luíza disse em um tom terno, talvez, tocada pelo aspecto de sua feição preocupada e autodepreciativa — Você não precisa fazer isso hoje se não se sentir pronta, você ainda tem tempo pra treinar.
— Eu sei... — Teresa disse, tão baixo que foi quase um sussurro — Mas eu acho que eu consigo, eu vou ao menos tentar.
— Tá, se você quer enfrentar seus medos, eu apoio isso — Luíza disse, tocando em seu ombro — Mas se você não conseguir, saiba que pode tentar de novo outra hora — ela emendou. Teresa discordava disso, mas preferiu não contraria-la, ao invés disso, ela apenas assentiu.
— Prontas? — Fábio perguntou, quando as bailarinas se alinharam para o primeiro ato. Os violinos começaram a tocar, harmoniosos, e as moças formais iniciaram os seus movimentos de frappés. Enquanto elas se moviam pelo salão, Teresa e Natália ficaram mais recuadas, assistindo-as.
— Você dançava melhor que elas? Antes do acidente? — Natália perguntou, olhando-a de lado, e só se deu conta do quão invasiva estava sendo, quando já era tarde demais — Ah, esquece a pergunta, desculpa.
— Não, tudo bem — Teresa disse, não muito preocupada com isso.
— Não, sério, eu perguntei sem pensar — Natália disse (não era a primeira vez que ela fazia isso).
— Eu não lembro bem — Teresa respondeu — Eu acho que eu tava no mesmo nível que elas, talvez um pouco melhor...
— Ah — Natália murmurou.
— Pois é — Teresa disse, exibindo um meio sorriso, causado pela nostalgia.
— E agora? Você acha que consegue fazer tudo isso aí? — Natália perguntou, apontando para as moças no exato momento em que elas realizaram um grand battement para trás. Teresa sorriu, orgulhosa de si mesma.
— Isso aí eu consigo, não sei o resto — ela respondeu com bom humor, tentando expulsar a voz pessimista em seu interior: desiste, Teresa, você vai passar vergonha.
Teresa parafusou o pé de ponta, e calçou a sapatilha, pouco antes de entrar para o segundo ato. As moças formais foram para trás, com os braços e pernas na primeira posição, e ficaram ali, como bonecas inanimadas. Ela chegou ao centro do salão na ponta dos pés, enquanto um único violino acompanhava o som de uma fanfarra de tambores. Teresa realizou, em adágio, um Arabesque Penchée com uns 170 graus (uns dez graus a menos do que deveria, mas cem graus a mais do que na primeira vez em que ensaiou o ato). Quando as outras bailarinas a cercaram e começaram com a chuva de frappés ao seu redor, a voz pessimista foi facilmente engolida pela voz interior de Fábio: Coloca emoção nisso, meu amor, seja original, por favor. Teresa tomou fôlego, ser original. Ela se moveu na ponta dos pés, com os braços em quinta posição, realizando grand battements e uma versão mais original do coupé para trocar os seus pés de lugar, dando lugar para que os movimentos fossem (na medida do possível) realizados com ambas as pernas. Ao fim, todas as garotas formais realizaram o pirouette de três voltas, enquanto a música assumia o seu clímax sombrio, com o som moribundo dos violinos, e a ascensão bizarra dos tambores, até que um engolisse o outro, e o silêncio engolisse tudo. Teresa se deixava subjugar, concluindo o ato em um écarté. O silêncio reinava.
— Perfeito, meninas, perfeito — Fábio disse — Agora, vamo pra o terceiro ato — ele emendou, dessa vez (talvez, por causa do comitê), ele não tinha nenhuma crítica para fazer.
O terceiro ato se iniciava com a melodia gritante de um violoncelo solitário, o ar clássico havia sido deixado para trás, aquilo era livre, espontâneo, e a forma como os tambores, saxofones e piano entravam, enquanto as moças formais voltavam a cerca-la com frappés, mostrava claramente que o território pertencia a ela à partir daí, e isso era o mais desesperador. Teresa se deixou levar pela melodia, movendo-se nas pontas dos pés, enquanto sua prótese protestava, ameaçando desabar subitamente, ela a ignorou, realizando um Arabesque à hauter (erguendo a perna esquerda em 90 graus), girando sobre si mesma e se aproximando mais do público em échappés gloriosos, as moças formais lhe davam espaço para que realizasse suas proezas, ela aceitava o espaço, começando com uma série de três grand jetés para a direita, usando a perna esquerda para aterrissar (e quase sentindo o chão escorregar sob seu pé a cada salto que realizava), então, ao finalmente retornar ao centro, cativando a atenção de seu público, ela realizava uma série de Fouetté rond de jambe en tournants, apoiando-se na perna esquerda e girando sobre ela, enquanto fazia a prótese ricochetear, dando impulso ao movimento e girando quatro vezes. O movimento final vinha logo em seguida, onde ela deveria ajustar a prótese, usando toda a força rotativa que acumulou para converter o movimento em um pirouette. Assim ela fez, usando a mão para cruzar a sua prótese, mas isso tirou completamente o seu equilíbrio, e quando girou, seu pé esquerdo não conseguiu se equilibrar na ponta, fazendo-a cair de joelho no chão, enquanto sua prótese se contorcia para cima, machucando o coto da perna decepada. Teresa gritou brevemente, os instrumentos se calaram, deixando um eco, e as outras garotas correram para ajuda-la a se levantar. Os membros do comitê também vieram, cercando-a com um burburinho de preocupação.
— Ah, Teresa, querida, tá tudo bem com você? — Fábio perguntou, afastando as outras pessoas de seu caminho. Duas garotas puxaram-na pelos ombros, a ajudando a se levantar, mas haviam, pelo menos, umas dez mãos em suas costas nesse momento.
— Eu tô bem — ela respondeu, se desvencilhando das garotas, sendo obrigada a engolir o seu orgulho. Teresa já havia sofrido certa humilhação desde o começo, mas esse dia pareceu pior, porque ela não estava apenas envergonhada, ela estava decepcionada.
— Esse último movimento, Fábio, o que você tem na cabeça? — um dos membros do comitê perguntou para Fábio, assim que o pessoal se acalmou — Isso é fisicamente impossível pra ela!
— Não, não é — Fábio disse — Ela só precisa de prática.
— Não, não tem prática que dê jeito nisso, é impossível.
— Impossível? Você não viu quantas coisas ela fez aqui? Coisas que também deveriam ser impossíveis pra "pessoas como ela", e mesmo assim ela fez! — Fábio retrucou asperamente, usando sua voz grave e fazendo aspas com os dedos.
— Não, ele tá certo — um outro membro do comitê disse, em defesa do amigo, enquanto olhava fixamente para Teresa — Você forçou essa menina a fazer uma coisa que vai além da capacidade física dela, isso é desumano, sabia?
— Ah, pelo amor de Deus... — Fábio murmurou, revirando os olhos.
— O ballet dela é perfeito, mas esse movimento final tem que ser cortado — o primeiro cara disse, e se voltou para ela — Você fez um show hoje, viu? Não fique se sentindo mal por isso...
— Vamo parar por hoje, meninas — Fábio disse, não escondendo a sua insatisfação.
Apesar do que o membro do comitê lhe disse, foi um pouco difícil ela não se sentir mal com aquilo. Naquela noite, Teresa apenas ligou o rádio na estação X, e ficou ouvindo, enquanto olhava para o telhado. As músicas tocavam, mas ela não conseguia dar atenção, a cena de sua queda se repetia em sua cabeça de novo e de novo, sem descanso. Nesse mesmo dia, chegou a carta da Brasilegs.
— Então, você vai fazer uma apresentação? Isso é bem legal, Teresa, sério — o doutor Julho Cezar disse com sinceridade, mesmo que Teresa não tivesse mais tanta certeza disso — Eu acho que vou chamar o pessoal do consultório pra ir assistir.
— Ah, espera, eu ainda não tenho certeza disso, ainda tô pensando no assunto — ela disse, um pouco sem graça.
— Ah, sim, sim, pois quando você decidir, me avise, viu? — ele disse — Eu tenho uns amigos que usam prótese, nem todos eles conseguiram se reerguer igual a você, e eu acho que assistir você dançando vai ser um baque muito positivo pra eles.
— Outras pessoas? — Teresa perguntou, por um momento, seu subconsciente realmente chegou a acreditar que ela era a única pessoa do mundo que usava uma prótese, mas haviam outros, claro que haviam outros.
— Outras pessoas, e você pode servir de inspiração pra elas — Julho Cezar disse com um brilho de empolgação no olhar — Você pode mostrar pra eles que consegue, não só caminhar, mas dançar com uma prótese, isso é uma inspiração — enquanto ele falava, a emoção era evidente em seu aspecto, saindo de seu corpo e contagiando-a. Teresa sentiu seus olhos arderem, querendo chorar pela milésima vez; uma mistura conflitante de sentimentos permeava o seu peito nesse momento. As palavras de Julho Cezar faziam todo o sentido, e por um momento, seu cérebro se esqueceu de todas aquelas nuvens negras de tempestade, vislumbrando as estrelas que ela tanto tentava alcançar, e elas pareciam mais atrativas do que nunca.
— Sim, eu posso servir de inspiração...
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Atualizado até capítulo 23
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