Capítulo 20 A Vingativa

Um mês depois e muitas coisas haviam mudado, na escola principalmente. De certa forma nossa manifestação havia funcionado muito bem. A vice diretora foi demitida depois da reunião com a diretora. E dentro de uma semana uma nova vice foi contratada, era uma senhora de idade que dava aula de história a anos na escola. Era uma mulher muito simpática, o que deixou a todos mais aliviados. Porém, ao mesmo tempo que a manifestação fez com que o assunto de desigualdade sobre a forma que éramos tratados vir a tona, a escola como uma pessoa vingativa mudou algumas coisas para que nada parecido ocorresse nunca mais. Primeiro, qualquer aluno que fosse pego beijando dentro da escola levaria uma advertência e na terceira advertência, suspensão. Segundo, pessoas que precisarem de apoio psicológica deveriam procurar ajuda na própria escola. Eles contrataram uma psicóloga. O que eu achei bem legal. Ao mesmo tempo que eles tivessem feito aquilo só para se redimirem de alguma forma. E terceiro, qualquer abuso de autoridade ou até mesmo entre os alunos deveria ser denunciado na direção. Enfim, foi isso o que a nova vice diretora falou para todos os alunos em uma manhã de segunda feira. E depois disso, tudo pareceu estar melhor.

— Aquelas meninas não tinham chance, meu time já estava com a vitória garantida — disse Kety sorrindo satisfeita enquanto estávamos meus amigos e os dela reunidos no recreio.

— Você é a melhor jogadora da cidade, nem um cara é páreo para você, nojenta — disse Leandro.

— Não puxa meu saco — disse ela.

— Hoje já é sexta-feira. Obrigado Deus! — disse Felipe. — O que vocês vão fazer no final de semana?

— Eu vou ir pescar com meu pai — disse Rafael.

— E eu vou ficar sozinha — reclamou Vitória ao lado dele.

— Vou viajar — disse Eduarda.

— Bem — disse Leandro indo até os meninos. — Nesse final de semana a gente pode ir para a praia atrás de gatinhas.

Leandro e Felipe sorriram.

— Vocês são tão idiotas que nem gripe pegam — disse Kety. — Já eu, vou receber a visita da minha namorada na casa do meu pai — disse ela, jogando o braço por trás das minhas costas.

— Ué? Você não ia passar o final de semana com a sua mãe? — perguntei.

— Eu até ia, mas ela vai ter plantão no hospital — Kety respondeu.

— Minha mãe também vai trabalhar final de semana, ou seja, vai ser eu minhas séries e sorvete — reclamou Vitória.

— Eu já falei que você pode ir pescar comigo — disse Rafael.

— Você tem que passar mais tempo com o seu pai. Não se preocupe, eu vou ficar bem. Vou estudar mais sobre regressão também. Minha mãe falou que um dia quer me ver em ação — disse Vitória.

— Quanta pressão — disse Felipe.

— Pois é — concordou Vitória.

— E se a gente filmar quando fizermos a próxima regressão, aí você mostra para a sua mãe — sugeri.

— Até que é uma boa ideia — disse Vitória pensativa. — Mas só se você topar ser minha cobaia.

— Sempre — respondi sorrindo.

— Podemos fazer isso logo — disse Kety. — Vitória pode ir lá em casa sábado e então eu posso filmar tudo.

— E por que você não faz? Deve ser legal — perguntou Eduarda.

Kety ficou em silêncio e disfarçou.

— Ela tem medo! — Leandro disse maliciosamente.

E então os garotos, exceto Rafael, começaram a gargalhar.

— Cala essa sua boca, idiota — disse Vitória.

— Não sejam ridículos — disse Eduarda se aproximando de Kety. — Vocês sabem que ela não tem medo de nada.

— Calma, Duda. É brincadeira — disse Felipe.

— Não fique estressadinha — disse Leandro. — Não da para falar nada para essas mulheres.

— Por isso que a gente tem que pensar antes de falar — disse Rafael, quando Vitória se sentou ao seu lado.

— Eu não tenho medo de reviver lembranças de minhas vidas passadas — disse Kety. — Só não tenho curiosidade e também acredito nas histórias que a Paloma vê, afinal, eu estou em todas elas.

Sorri.

— Então está combinado — disse Vitória. — Sábado à tarde eu passo na sua casa, Kety.

— E domingo podemos ir no salão, estou precisando cortar meus cabelos — disse Kety. — Claro, se você quiser ir comigo e com a Paloma.

— Não tenho nada melhor para fazer — disse Vitória simplesmente.

— É uma pena não poder te acompanhar amiga — disse Eduarda. — Estamos tão distantes ultimamente.

— Não se preocupe, Duda. Você é minha melhor amiga desde que nascemos, nada vai mudar isso — afirmou Kety.

Kety sorriu para Eduarda, enquanto isso Kety começou a falar sobre os jogos com os garotos, foi quando percebi que Eduarda me encarava, nunca vi tanto ódio em um olhar.

Sábado à tarde, me despedi da Marta depois do almoço, peguei minha bicicleta e sai rua a fora com o vento soprando meus cabelos e a barra de meu vestido florido. Era um dia agradável de sol, não fazia calor nem frio. Um dia perfeito para não ficarmos dentro de casa, por isso pensei que depois da regressão seria legal que nós três fôssemos até a cachoeira.

Uma das melhores coisas de morar do campo era andar pelas estradas empoeiradas de bicicleta, meus sapatos não gostavam muito, mas meus olhos gostavam de vista, meus ouvidos dos pássaros cantando, meus pulmões do ar limpo e meus cabelos da brisa quente. A paz daquele lugar que ficava totalmente diferente nas estações mais quentes recobrava minhas energias, o que era bom, pois eu chegaria bem na casa da minha namorada.

No meio do caminho encontrei Vitória, ela também andava de bicicleta e estava indo para a casa da Kety. Ela estava feliz e bonitas, seus longos cabelos cacheados estavam presos em uma trança e ela vestia um macaquinho jeans.

— Oi, Paloma! — disse ela andando de bicicleta ao meu lado. — Que bom que vamos chegar ao mesmo tempo na casa da Kety.

— Oi, Vitória — respondi sorrindo. — Pois é, estava pensando em depois que fizermos a regressão irmos dar uma volta por aí. Queria ver como é a cachoeira em um dia de sol.

— Adorei a ideia — disse ela acelerando as pedaladas. — Então vamos ir rápido para aproveitar bem o dia.

E saiu em disparada na minha frente.

— Então vamos apostar corrida? — gritei.

— Claro! — respondeu à frente.

— Então vamos! — gritei e acelerei as pedaladas até a ultrapassar.

Vitória e eu sorrimos durante todo o caminho. Então me dei conta de que entre as coisas boas que morar naquela cidade me proporcionou, ter Vitória como amiga foi umas das melhores. Com Vitória eu sentia segurança, ela era como uma irmã para mim, muitas vezes era a única que me entendia e sempre estava disposta a me ajudar. Ela era minha melhor amiga e eu tinha certeza que seria assim para sempre, pois amizades sem interesse são a coisa mais bonita que podemos ter na vida.

Chegado na casa do pai da Kety, logo sentimos o cheiro delicioso vindo da pizzaria.

— Vocês chegaram cedo — disse Kety, sentada em uma das mesas do restaurante.

— Oi, meu amor. — Andei até ela e a beijei.

Kety sorriu e me abraçou.

— Oi, Vitória! Já deixei a câmera posicionada lá no meu quarto. Pensei em fazermos isso na sala, mas meu pai pode aparecer e atrapalhar, fora que meu quarto é mais silencioso.

— Como você achar melhor — disse Vitória.

— Beleza, vamos subir? — perguntou Kety.

Vitória assentiu e corremos para o segundo andar que era a casa.

Entramos no quarto de Kety e estava tudo arrumadinho e perfumado. Das outras vezes em que fiquei em sua casa ela não se preocupou com a bagunça, porque quando eu entrava a bagunça só aumentava.

— Coloquei a câmera ali — disse Kety apontando para a escrivaninha que ficava de frente para a cama.

— A luz da janela não vai atrapalhar? — Me atirei na cama dela e olhei para a janela que ficava na cabeceira.

— É só fechar as cortinas. — Kety pulou na cama ao meu lado e fechou as cortinas. — Pronto. E eu deixei esse sofázinho para você amiga. — Kety se referiu ao pequeno sofá verde ao lado da cama.

— Obrigada — disse Vitória. — Podemos começar?

— Sim — disse Kety correndo para ligar a câmera. — Começou. — E voltou a se deitar ao meu lado.

— Acho que a estela do filme sou eu — disse sorrindo para ela.

— Que nada, a mãe da Vitória vai prestar mais atenção na filha — retrucou Kety.

— Se você não mexer nela pode ficar, mas não muito perto. A Paloma precisa se concentrar — explicou Vitória.

— Ok — disse Kety se afastando de mim e ficando sentada na ponta da cama. — Está bom agora?

— Só não cai da cama — falei.

— Engraçada ela — disse Kety emburrada.

— Paloma, podemos começar? — perguntou a Vitória.

— Sim — respondi me deitando e fechando os olhos.

— Agora se concentre, respire fundo — começou Vitória e comecei a ouvir o som das águas da queda de uma cachoeira. — Limpe sua mente e tente visualizar um local de paz, está vendo algo?

— Sim — respondi pois via aquela mesma luz branca tomar com de todo meu corpo, ficava cada vez mais intensa a ponto de me cegar.

— Agora conduza seu corpo presente, Paloma, direto para o passado.

Abri meus olhos e estava novamente daquele imenso corredor branco, estava com pressa e não tinha medo do que estava por vir, bem ou mau seria algo que não poderia me ferir mais e ainda poderia me ajudar no presente.

Todas as portas estavam fechadas e somente uma luz intensa vinha da última porta. Corri mais rápido e finalmente cheguei até ela. Já estava aberta, eu só precisava entrar. Respirei fundo e toquei meus dedos na luz, eles desapareceram, o que era curioso. Na segunda fez que fiz isso fui puxada para dentro.

Quando abri meus olhos me deparei com um teto mofado, me sentei na cama e olhei em volta. Estava em um quarto simples, acinzentado como toda casa de pedras deveria ser. Os móveis do meu quarto se resumiam em um armário surrado de madeira e duas camas de colchão de palha — bem desconfortável. Na cama ao lado da minha dormia uma garotinha um pouco mais velha do que a Amanda.

— Você já está acordada? — perguntou ela abrindo os olhos bem devagar.

Quando olhei nos olhos da garotinha loira. Algo em seu rosto mudou e me revelou que aquela garotinha era Amanda em sua vida passada. Senti muita vontade de abraça-la. Mas pensei que poderia ser estranho, eu ainda não sabia nada da garota que eu havia dominado a consciência.

— Vamos levantar, Pandora! Você precisa ir para o castelo — gritou uma mulher ao abrir a porta do quarto com violência.

Pandora. Esse era o meu nome. Diferente, gostei.

— Vamos, menina. A Princesa não vai gostar que você se atrase logo no seu primeiro dia — gritou ela.

Olhei em seus olhos e ela ficou em silêncio. Quando fiz isso aconteceu o mesmo do que com a garotinha, seu rosto mudou e desta vez vi o rosto de Marta. Fiquei feliz em saber que estávamos juntas naquela vida também. Porém ela deveria ter razão, não poderia esquecer dos compromissos de Pandora, então pulei da cama e decidi matar logo minha curiosidade.

— Já vou — falei e a mulher fechou a porta.

Olhei pela janela e vi que estava em uma típica vila medieval, carroças, pessoas andando de um lado para o outro, o caminho entre as casas de terra batida, alguns animais e um poço no centro.

— O que você está olhando lá fora? — perguntou a garotinha.

— Só estou vendo se não vai chover, Lúcia. — Pandora respondeu.

Então percebi que Pandora estava retomando sua consciência. O que me possibilitava de fazer perguntas.

No centro do quarto havia um espelho, o que mataria mais uma das minhas curiosidades.

Peguei uma escova em cima da cômoda e fui até ele. Pandora era uma garota baixa, ruiva de cabelos lisos e sardenta. Senti que ela não gostava muito da sua aparência, pois naquela época as ruivas não eram vistas como criaturas lindas e raras como na minha época. Mas Pandora era com certeza a ruiva mais linda que já vi.

— Quando chegar em casa me fala como a princesa é — disse a menina se levantado da cama.

— Sem dúvidas é uma garota soberba e mimada — disse. — Por outro lado, irão me pagar muito bem para ser sua dama de companhia. Então terei de suportar calada. Mas tudo bem, o que importa é trazer dinheiro para casa.

— Pandora! — ouvi um grito do cômodo ao lado. — Deixei sua roupa na cômoda, anda logo! Não quero que você vá com fome para o castelo.

— Mamãe fez torta de maçã — disse Lúcia pulando da cama e correndo para fora do quarto.

Terminei de pentear os cabelos e andei até a cômoda onde eu encontrei um vestido simples e cinza. Talvez fosse o melhor que Pandora tivesse.

Enquanto ela se vestia decidi fazer algumas perguntas, porque senti que estávamos dividindo bem a consciência.

“Quantos anos?”

“Quinze.”

“E em que ano estamos?”

“1346.”

Idade Média, como eu imaginei.

“Em que país?”

“Castela.”

Uma vez eu ouvi falar que antes da Espanha ser Espanha, eram três reinos que se uniram em um só depois de casar seus príncipes. Eles eram Castela, Leão e Aragão se não me engano.

As outras perguntas que eu poderia fazer já havia sido respondidas. Então decidi deixar Pandora seguir sua vida enquanto eu assistia.

E então comecei a ouvir os pensamentos dela.

Estava completamente atrasada, não sabia se poderia sequer me dar ao luxo de me alimentar antes de ir para o castelo.

Olhei no espelho e pedi ao bom Deus para que meus cabelos ruivos não fossem um problema para a princesa. Torcia que ela não fosse tão mimada e arrogante quanto falavam. Eu seria gentil com ela, pois aquele emprego ajudaria muito minha família.

Corri para a cozinha e me sentei à mesa com minha irmã e meus pais. Olhei bem para eles, queria gravar suas feições em minha memória, minha mãe cansada e mesmo assim sorrindo enquanto servia a torta e meu pai como sempre e meu pai com seus olhos atentos na minha mãe, ele a amava mais do que tudo.

Quando Pandora olhou nos olhos de seu pai, seu rosto mudou assim como havia acontecido com as outras duas. Desta vez vi meu próprio pai, o do século XXI, o que não ligava para a nossa família. Fiquei emocionada em vê-los todos ali, era uma surpresa saber que em outra vida nós havíamos sido uma família que tomava café da manhã todos juntos e alegres.

— Boa sorte no trabalho novo, filha — disse ele.

Eu devorava a torta com pressa.

— Obrigada, pai — falei terminado de comer. — Falando nisso eu já tenho de ir.

Me levantei e me despedi.

— Só não tropece de novo — disse Lúcia com o rosto lambuzado.

— Vou tentar — disse sorrindo e sai correndo para a rua.

Passei rapidamente pela vila, algumas pessoas me cumprimentaram e eu as cumprimentei.

Andei mais um pouco depois do poço até chegar no castelo. Os enormes portões haviam sido baixados à pouco tempo. E alguns cavaleiros ainda entravam na fortaleza de pedra. Fiquei olhando para o fosso enquanto isso, imaginando as feras horríveis que habitavam aquelas águas para proteger o castelo.

Assim que todos os cavaleiros entram eu entrei. Me senti sozinha e apavorada lá dentro. As outras vezes que havia entrado no pátio do castelo estava acompanhada de meu pai que era ferreiro, mas naquele momento tudo o que eu deveria fazer era procurar uma mulher chamada Olivia, era ela quem me levaria até a princesa Cornélia.

Desorientada, comecei a andar a procura da mulher velha de cabelos brancos que minha mãe havia falado. Andei por toda a parte, esbarrei em pessoas e não a encontrei.

Estava quase desistindo quando alguém tocou meu ombro. Olhei para trás assustada e me deparei com a velha que minha mãe havia falado.

— Você deve ser Pandora — disse ela seriamente. — A princesa está aguardando a nova criada.

— Ah, obrigada pela ajuda — falei rapidamente.

— Não me agradeça, apenas vamos — disse Olívia andado a minha frente.

Caminhamos rapidamente para o interior do castelo, tudo era tão grande e bonito lá dentro. Era a primeira vez que pude ver, pois nunca havia passado do pátio onde meu pai entregava as armaduras para os cavaleiros.

— Você trabalha à muito tempo no castelo, senhora Olívia? — perguntei tentando romper o silêncio daqueles corredores.

— A minha vida toda — respondeu ríspida.

— Espero poder trabalhar por longos anos neste lindo castelo. Claro que para uma moça como eu é o trabalho mais glamoroso que poderia ter em minha vida. Porém, eu não ligo para isso. O importante para mim é poder ajudar minha família.

— Ora, por favor, menina. Fale menos ou a princesa pode não gostar de você. Ela não gosta de pessoas que falam mais do que ela. Ouça esse concelho e conseguirá trabalhar no castelo pelos longos anos que deseja — disse ela enquanto cruzávamos um corredor. — Tenho minhas dúvidas se a princesa aceitará uma criada com os cabelos vermelhos como os seus.

— Se meus cabelos ruivos forem um problema os rasparei. Necessito muito deste emprego.

— Não se preocupe com isso, primeiro a princesa terá de lhe conhecer — disse Olívia, andado na direção de outro corredor. — Estamos próximo aos aposentos da Princesa Cornélia — anunciou ela.

Olhei para as pinturas e tapeçarias nas paredes e aproveitando que a Senhora Olívia estava de costas vibrei de alegria.

Senhora Olívia andou mais alguns passos até chegar em uma das partes mais bonitas do castelo. Logo ela abriu uma porta grande repleta de detalhes em ouro.

Dentro do quarto havia uma garota que aparentava ter a minha idade, apesar de ser muito mais alta e ter os cabelos negros bagunçados cortados na altura dos ombros. Eu nunca vi uma mulher com os cabelos curtos e deve ser por isso que estranhei. Ela também não era magra, minha mãe disse que isso era normal entre a nobreza, pois eles não viviam em escassez como nós plebeus.

Seu vestido era bonito, vermelho de tecido luxuoso.

— Princesa Cornélia, esta é a sua nova criada. Espero que aprove a Senhorita Pandora — disse a Senhora Olívia.

— Pandora? Assim como a mulher idiota que liberou todos os males do mundo ao abrir uma caixa? — disse a princesa se virando para nós.

Seu rosto era igualmente feio como seu corpo, o nariz desproporcional e suas feições pareciam de uma pessoa que estava pronta para contar uma piada. Ou eu era uma piada para ela.

Ela era engraçada e desengonçada. Mas assim que colocou seus olhos escuros em cima de mim, algo me causou arrepios.

— Você é horrivelmente ruiva — gritou a princesa vindo até mim e tocando meus cabelos. — E branca como se nunca tivesse visto o sol e seu rosto tem tantas sardas que chega a ser laranja.

— Ela passará o dia com você, princesa — disse a Senhora Olívia. — E amanhã me diga se a aprovou.

— Direi sim — afirmou ela. — Agora se retire.

Senhora Olivia fez uma reverência e se retirou fechando a porta. Gravei em minha mente como ela agiu, sabia que aquele era o modo que a princesa era acostumada.

— Vejo que tenho o dia inteiro para observar como ira me servir e me entreter — disse Cornélia sentando-se na cadeira na frente da penteadeira. — Por hora penteei meus cabelos. Logo chegará Catherine e ela lhe ensinará a como ser minha criada.

Cornélia levantou uma escova enquanto olhava seu rosto feio pelo espelho.

— Ande logo — exigiu ela com um sorriso sarcástico no rosto.

Andei rapidamente até ela, peguei a escova e comecei a pentear seus cabelos duros.

— Espero que além de feia você seja prestativa, estou cansada de imprestáveis.

Levantei meu rosto e olhei para o reflexo dela e depois para o meu. Eu era sem dúvidas muito mais bonita do que ela e tinha certeza que ela estava me rebaixando daquela forma por isso. Mas eu precisava do emprego. Não podia deixar aquilo me afetar.

— Sim, Princesa Cornélia — falei.

— Ótimo. E mais uma coisa, seja fiel à mim incondicionalmente. Se você quiser o emprego, lembre-se que minha vontade é lei, você não deve me desafiar, nunca. Não esqueça quem é da nobreza aqui.

— Sim, princesa — afirmei e continuei à pentear seus cabelos.

Aquela garota era mais estranha do que eu poderia imaginar. Seu ego era tanto, que ela deixou claro para que eu nem pensasse em um dia tentar ser melhor do que ela em algo.

Até que a porta se abriu e uma garota loira entrou no quarto da princesa. Não a olhei pois fiquei focada em pentear aqueles cabelos.

— Até que em fim, Catherine — disse a princesa. — Essa é Pandora. Por favor, minha querida, ensine a essa tonta tudo o que é preciso saber para me servir.

— É um prazer te conhecer — disse Catherine à mim.

Então finalmente a olhei, Catherine vestia um vestido simples de empregada, seus cabelos eram lindos, dourados e extremamente longos e mesmo penteados para trás ela era linda como um anjo. Mas o que mais me chamou atenção foram seus olhos esmeralda.

Quando Pandora olhou nos olhos de sua colega, eu pude ver o que era óbvio. Aquela linda garota loira era a minha Kety em outra vida e mesmo sem saber, Pandora já estava apaixonada por ela.

— O prazer é todo meu. Espero que possamos ser boas amigas — disse eu.

— Ora — disse Cornélia se levantando e andando até Catherine. — Catherine é minha serva mais antiga além de ser minha melhor amiga e confidente — disse ciumenta.

Catherine sorriu e eu me senti envergonhada.

— Não seja cruel com a ruiva — disse Catherine piedosa.

— Ah, você percebeu — disse a princesa maldosa. — É ruiva como um demônio.

— Isso são apenas histórias que o povo conta — falou Catherine.

— Só sei que devo agradecer a Deus por ter nascido com os cabelos negros — disse a princesa andando até a porta de seu quarto. — Vou procurar o professor de artes, já está na hora de minha aula. Normalmente Catherine me acompanha. Mas creio que hoje seu dever seja ensinar a ruiva a me servir.

— Está bem — disse Catherine em um reverência prestativa.

— E você — disse olhando para mim. — Nem pense em roubar minha amiga.

E se retirou.

Naquela tarde, Catherine me mostrou o castelo inteiro, era lindo principalmente o jardim, onde Catherine e eu conversamos por um tempo. Ela me disse tudo sobre a princesa, disse que a irmã mais velha dela era linda e havia se casado a pouco tempo com o príncipe de Aragão. Isso eu já sabia, mas gostava de ouvi-la falar. Disse que a princesa estava esperando algum príncipe pedir sua mão e isso a deixava impaciente, já que ela estava em idade para se casar e como seu pai já tinha certa idade, logo seu irmão mais velho se tornaria rei de Castela. E a princesa teria que se casar ou se tornaria um fardo.

Porém, conhecendo a Princesa Cornélia pessoalmente eu entendia porque nenhum príncipe havia aparecido até aquele momento. A Princesa podia ter tudo, mas ainda sim sua personalidade a tornava uma pessoa insuportável.

— Não se preocupe, Pandora. Se depender de mim você ficará com o emprego — disse Catherine sentada sobre a fonte no centro do jardim. — E não se importe com a forma que ela lhe trata agora, garanto que com o tempo melhora.

Posso afirmar que não melhorou. Fui contratada como Catherine prometeu. O que causou muita alegria em minha família, finalmente teríamos dinheiro para nos mantermos como mais dignidade.

Porém, minha vida no castelo não era nada fácil. A Princesa Cornélia tinha prazer em me humilhar sempre que podia.

— Esse vestido já não me entra mais, não sei o que faço com ele. Eu até daria ele para você — disse ela olhado para um de seus vestidos. — Porém lhe falta busto e ocasião para usa-lo.

Fiquei em silêncio e Catherine também.

Na suas aulas de artes a princesa nos levava para julgar suas obras. E pedia para que suas servas pintassem telas também. Não porque ela queria nos proporcionar algum talento. E sim para se vangloriar e na primeira vez acabei cometendo um erro.

— Agora mostrem suas telas — disse Cornélia assim que terminou a sua.

A Princesa virou sua tela para nós. Seu lago e floresta estavam muito distante da obra de arte que o professor havia ensinado. Mas seu sorriso mostrava que ela esperava muitos elogios.

— Está lindo! — disse Catherine. — Olhe o meu.

Catherine sorriu e virou sua tela, estava engraçado pois ela nem parecia ter prestado atenção no que o professor havia ensinado. Seu quadro era um desenho de nós três de mãos dadas.

Cornélia gargalhou e Catherine também.

— Pandora, agora é a sua vez — disse Cornélia, ainda divertida.

Eu estava feliz por ter dito a oportunidade de aprender com um mestre, por isso dei o meu melhor naquela tela e quando terminar fiquei satisfeita por ter feito algo que eu julgava bom, sentia que existia algum talento em mim.

Virei a tela e quando a Princesa o olhou ela torceu o lábio.

— Até que ficou bom, mas você nunca vai ser uma pintora — disse Cornélia indiferente.

E aquilo me fez sentir muito mau. Segurei minhas lágrimas para não chorar na frente de todos. E apenas um pensamento não saia da minha mente, eu precisava do emprego.

Eu não suportava aquela garota, tudo o que eu fazia sem pretensão de errar ou acertar se tornava um jogo para ela. Independe do que eu fizesse ou falasse para a princesa era como um jogo que ela sempre deveria ganhar, de qualquer forma ela sempre teria que se sentir superior diante a mim.

Porém, com outra pessoa era totalmente diferente. Os meses se passaram e eu continuei trabalhando como criada da princesa. E nesse tempo, Catherine e eu ficamos mais amigas, mesmo que não demostrássemos na frente da princesa.

Todos os dias, no final da tarde nós duas íamos caminhar no jardim sozinhas e Catherine falava sobre sua vida, que morava no castelo desde que os pais morreram e que para ela a princesa era como uma irmã.

— Uma irmã deverás impertinente, eu diria — afirmei.

— Eu percebo a forma que ela lhe trata, não pense que aprovo — disse ela.

— Eu queria entender melhor o que aconteceu para ela me tratar desta forma. É como se tudo o que faço não seja o suficiente para ela. Queria saber, assim poderia me desculpar e acabar com isso tudo — falei indignada.

— Não se desculpe por ser você — disse Catherine seriamente, depois tocou meu rosto com as duas mãos. — Eu adoro a Princesa Cornélia, mas nós duas sabemos que para ela você é um desafio, uma pessoa que ela quer superar pois você é perfeita e ela queria ser como você. Mas já que não consegue, seu consolo é te tratar mal.

— Você me acha perfeita? — perguntou sem jeito. — Mesmo ruiva e sardenta?

— Você é a garota mais legal, inteligente, gentil e linda que já conheci — disse Catherine fascinada.

Pensei em dizer o mesmo, que ela era linda e uma pessoa encantadora, mas não pude pois fui interrompida por um beijo apaixonado de Catherine.

De início aquele beijo me assustou, não esperava aquela reação de súbito. Porém, a medida que seus lábios tocavam os meus com tanto fervor eu sentia meu coração acelerar e meu carinho por aquela garota começava a fazer sentido. Quando me dei conta estávamos abraçadas nos beijando ferozmente.

— Eu te amo, Pandora — disse Catherine assim que nossos lábios separaram-se.

Quando minha razão retornou, percebi que o ato que havíamos cometido havia sido um pecado, duas mulheres não deveriam se beijar daquela forma.

— Isso é errado aos olhos de Deus — disse me afastando até me sentar na fonte.

— Deus não é amor? Então por que deveríamos sentir vergonha de senti-lo? — explicou Catherine.

— Esse é um modo arriscado de amar — disse ainda chateada.

— Querida — suplicou Catherine sentando-se ao meu lado. — Sinto que minha vida mudou a partir do momento em que ouvi sua voz, sei que pode parecer loucura, mas o amor que sinto por você é a o que há de melhor em mim. Entendo se você não me amar como lhe amo, porém, sinto um alívio em meu peito em declarar meus sentimentos mais belos e...

A interrompi com um beijo, ainda estava confusa e assustada mas de alguma forma sentia que a amava também.

— Sinto que lhe amo também. Sei que as pessoas não nos entenderão — expliquei assim que nos separamos. — Por isso nosso amor deve ser o segredo mais bem guardado do mundo. E que Deus nos perdoe — falei.

Catherine sorriu e me beijou novamente.

O romance entre Catherine e eu se tornou o pior e o melhor de minha vida. Nunca pensei que pudesse amar alguém com tanta intensidade. Tinha plana consciência que se fôssemos descobertas seríamos consideradas hereges e não conseguia pensar em nada ruim o bastante que pudesse acontecer, talvez fôssemos banidas ou até mortas. Eu sentia tanto medo e ao mesmo tempo tanto amor, sentia que ela seria meu paraíso e ao mesmo tempo minha ruína. Por diversas vezes pensei em desistir de nosso amor, porém assim que ela chegava perto de mim com sua voz aveludada e olhos esmeralda, eu sabia que independente de certo ou errado e do que poderia nos acontecer. Nada poderia impedir o amor que sentimos uma pela outra.

Todo os dias antes do sol nascer e a Princesa Cornélia acordar, Catherine e eu nos encontrávamos escondidas no jardim do castelo para podermos ter um momento romântico antes de ter que passar o resto do dia fazendo as vontades da princesa. Tínhamos sorte pela princesa ser extremamente sonolenta, pois assim que o sol se punha, ela ia para seus aposentos dormir. Era um alívio para nós duas, que para não deixar óbvio que tínhamos uma relação amorosa, depois do jantar dos empregados Catherine e eu nos trancávamos no quarto de empregada que dividíamos.

Catherine era a pessoa mais encantadora do mundo, não existia nada capaz de tirar sua paciência e sorriso encantador. Muitas vezes ela me ajudava a ter paciência com a Princesa Cornélia, o que muitas vezes era um grande desafio. Aquela garota era extremamente mimada e havia algo em mim que eu não sabia que, que de alguma forma a incomodava. Enquanto o contrario acontecia com o restante do castelo, os empregados, os jardineiros, os cavaleiros que já me conheciam por ser filha do ferreiro e até o Príncipe, todos me tratavam com muita educação.

Ouve um dia em que a Princesa Cornélia me surpreendeu, logo pela manhã quando Catherine e eu entramos em seus aposentos para acorda-la, a mesma estava diferente. Quando abri as cortinas e o sol tocou seu rosto. A princesa parecia outra pessoa, seu humor nunca esteve melhor.

— Bom dia, minhas queridas — disse ela sorrindo, o que era raro pela manhã. — Gostaria da companhia das duas hoje para o desjejum.

— Mas nós sempre a acompanhamos — disse Catherine se aproximando da princesa.

— Hoje faremos diferente — disse ela levantando da cama. — Quero fazer meu desjejum no jardim e quero que vocês fiquem ao meu lado como minhas convidadas.

— Que gentileza, princesa — disse Catherine sorrindo.

— Não é — concordou sorrindo. — Por isso, minha querida. Preciso que vá até a cozinha e diga para montarem a mesa para três no jardim.

— Como quiser — disse Catherine prontamente e se retirou as pressas.

— Você pode me ajudar a vestir — disse a princesa a mim.

— Qual vestido usará hoje, princesa? — perguntei.

— O vermelho — fez uma pausa —, cor de sangue.

Fiz que sim, fui até o armário, peguei o vestido e a ajudei a vestir.

— Quer que penteei seus cabelos? — perguntei.

— Claro — disse ela se sentando na frente da penteadeira.

Então comecei a pentear seus cabelos sem olhar nosso reflexo no espelho.

— Todos gostam de você — disse ela de repente.

— O quê? — perguntei.

— Eu percebi durante esses meses em que esteve aqui que consegui o carinho de todos, dos empregados, de Catherine até do meu irmão — disse ela simplesmente, o que começou a me assustar.

— Sempre fui eu mesma, não sei explicar. A única coisa que sempre fiz foi dar o melhor de mim — expliquei ainda penteando seus cabelos.

— As vezes sinto que ninguém aqui gosta de mim, só me tratam bem porque sou a filha do rei — disse ela tristemente. — Enquanto você mesmo sendo uma ruiva de família humildade, sem graça e talento algum consegue o amor de todos.

— Eu nunca quis o amor de ninguém, tem coisas que acontecem naturalmente.

— Você se sente melhor do que eu, mais bonita? — perguntou seriamente e insegura.

— Claro que não, a princesa é uma garota linda e amada por muita gente. Que logo se casará com um príncipe e viverá em castelos durante toda a vida. Enquanto eu, sou apenas uma garota ruiva que vai ter sorte caso se case com um padeiro — expliquei.

Eu odiava ter que bajular a princesa, mas meu emprego estava em risco e também não queria ficar longe de Catherine.

A Princesa Cornélia olhou para o espelho e sorriu.

— Você tem razão, eu sou uma princesa inteligente e bonita enquanto você é só uma ruiva pobretona. É óbvio que você não é e nunca será melhor do que eu — disse sorrindo convencida. — Mas eu lembro de ter lhe pedido uma coisa... que não me roubasse o carinho de Catherine.

Fiquei assustada e pronta para dizer algo em minha defesa, quando fui interrompida por Catherine que entrou sorridente.

— Está tudo pronto para o desjejum no jardim — anunciou ela.

— Ótimo — exclamou Cornélia pulando da cadeira e se pondo ao lado de Catherine. — Vamos, Pandora! Não vamos deixar o bolo esfriar.

Descemos para o jardim e uma linda mesa nos esperava. Catherine estava feliz, enquanto eu estava achando tudo aquilo muito estranho. A Princesa Cornélia nunca fora tão amigável mesmo com suas criadas particulares e as coisas que ela me disse na ausência de Catherine me deixou desconfiada ao mesmo tempo que pude ter certeza de que seu problema comigo era puramente inveja. Mesmo eu sendo apenas uma pobre criada, de alguma forma minha presença desafiava seu ego frágil.

— Estou dizendo, ela já sabe de tudo! — falei tentando controlar todo medo que sentia naquele momento.

O sol já havia se posto e Catherine e eu já estávamos em nosso quarto. Tratei de trancar bem a porta, porque o que tinha para dizer era muito sério.

— Como você pode ter certeza que ela sabe sobre nós duas? Sobre a princesa ter inveja do simples fato de você existir isso todos já sabemos. Mas é impossível, minha querida, é impossível! — disse Catherine.

— Escute o que estou lhe falando, meu amor — disse me aproximando dela e tocando seus ombros. — Ela me exigiu logo no primeiro dia para que eu ficasse longe de você, sei que parece impossível já que tomamos cuidado. Mas posso afirmar com toda certeza que ela sabe sobre nós.

— Será que ela nos viu no jardim pela manhã? — indagou preocupada.

— É o mais provável, ou alguém viu e contou para ela — sugeri.

— Nenhum empregado do castelo acharia estranho duas amigas andando pelo jardim. E todos são nossos amigos aqui.

— Então ela só pode ter tirado a conclusão por sí só — falei andado pelo quarto. — Se eu sempre feri o ego da Princesa Cornélia sem fazer esforço algum, ela ter descoberto que tenho um romance com a única pessoa que ela gosta deve ter sido um estopim.

— Não seria melhor eu ir falar com ela? Você não merece mais sofrer com as indiretas dela como aconteceu hoje. Posso dizer que foi tudo um mal entendido e você não correrá o risco de perder o emprego — explicou Catherine.

— Acho que já é tarde. Você não viu como ela nos olhou durante o desjejum. Ela vai fazer algo contra nós, Catherine. E eu tenho medo.

— O que sugere que façamos? — perguntou nervosa.

— Só nos resta fugir, minha querida. Só assim poderemos ficar juntas — importei pegando suas mãos.

— Você acha mesmo que a Princesa Cornélia seria capaz de nos denunciar? — Senti que ainda havia esperança em Catherine.

— Ela não tem provas, mas é uma princesa. Todos acreditariam nela — falei.

— Eu te amo com todo meu coração — disse Catherine se aproximando de mim. — E se nossa felicidade depender de uma fuga. Já tenho um plano orquestrado.

— Então por favor me diga, querida — disse sorrindo, acariciando seus cabelos dourados.

Catherine e eu passamos aquela noite inteira conversado e como havia dito, ela tinha um plano de fuga melhor do que eu pudesse imaginar. Claro que pensei em minha família e em como meu emprego os ajudava, porém, era minha vida que estava em risco. Se caso a princesa nos denunciasse, seríamos consideradas hereges ou prostitutas. E nossa vida seria na sarjeta, não queria esse sofrimento para meus pais e minha irmã. Então fugir era a melhor opção.

Catherine sorria nervosa enquanto me contava seu plano, felizmente ela e eu tínhamos boas amizades no castelo, Catherine principalmente. Então dependeríamos de uma dessas amizades para uma carona. E seria do padeiro. Toda semana ele ia para Leão comprar farinha para seus pães e Catherine tinha certeza que ele aceitaria nos ajudar pois o padeiro era amigo de seu falecido pai. Além de que o homem sabia onde ficava a velha cabana na floresta que ela nasceu. E seria lá, onde juntas iríamos construir nossa nova vida. Em um novo reino, onde diríamos que éramos apenas duas irmãs camponesas.

Nos próximos dois dias agimos normalmente, Catherine já havia planejado tudo com o velho padeiro que felizmente não fez muitas perguntas. A Princesa Cornélia agia de forma desconfiada a me tratava da pior maneira possível, aproveitando toda ocasião possível para me humilhar. Como em uma vez que eu estava almoçando com os outros empregados e de repente a princesa entrou na coisinha fazendo que estava com fome. E então ela olha para o meu prato, pegou um garfo e enfiou na minha batata assada, deu uma mordida e depois jogou no chão.

— Ajunte isso, criada! — ordenou ela.

A olhei incrédula.

— O que está olhando? Não aceito sujeita em meu castelo — disse arrogante.

Todos os empregados ficaram em silêncio e Catherine ao meu lado, segurou minha mão por de baixo da mesa. Olhei para ela que ficou tão abalada quanto eu. Ela assentiu e seus olhos me diziam que logo estaríamos livre de tudo aquilo.

Me ajoelhei diante da princesa e ajuntei a sujeita. Cornélia sorriu satisfeita e depois se retirou.

— O que foi isso? — disse o jardineiro, perplexo.

E assim como ele, todos os outros empregados ficaram sem entender nada. Só tinham a certeza de que como diziam, a princesa era maluca.

— Não se preocupe, meu amor — Catherine sussurrou em meu ouvido. — Amanhã mesmo iremos embora daqui e seremos felizes.

Apertei a mão dela por debaixo da mesa, sorrimos uma para a outra e nos olhos verdes de Catherine vi a esperança de uma vida melhor.

Na manhã seguinte, antes do sol nascer Catherine e eu já estávamos de pé e prontas para fugir. O velho padeiro iria sair do castelo em sua viagem até Leão para comprar farinha o suficiente para um mês. Catherine estava feliz, não sentia medo e nem remorso, para ela era como finalmente voltar para casa, mesmo que sua família já não estivesse mais lá. Eu pelo contrário, estava deixando todos que amava para poder viver um amor proibido. Estava sendo difícil para mim, ao mesmo tempo que eu saiba que fugir era a melhor opção para que todos ficassem bem.

Catherine e eu estávamos de malas prontas e vestidas para a viagem, logo o velho magrinho veio até nós.

— Bom dia, meninas! Vejo que estão prontas. Vamos? — disse o padeiro andando até a carruagem que estava no próximo ao celeiro, um lugar perfeito para que não fôssemos vistas.

— Ele já sabe de tudo? — perguntei em voz baixa enquanto andávamos atrás do homem.

— Somos amigos, claro que o contei quase tudo. Em suma, disse que vamos nos mudar para Leão em busca de uma vida melhor, porque trabalhar para a princesa é muito desgastante.

— Estou com fé que seremos muito felizes — disse nervosa.

— E eu sei que seremos — afirmou Catherine.

— Podem subir, moças — disse o velhinho gentilmente, levantando o tecido que cobria a carroça para que pudéssemos entrar.

Nós duas agradecemos e nos acomodamos. Logo o velho padeiro atiçou as rédeas e os cavalos começaram nossa viagem a caminho do Reino de Leão.

Foi quase um dia de viagem, um longo, quente e exaustivo dia de viagem. Eu pensava a cada segundo como minha família reagiria ao meu desaparecimento e mais ainda como a Princesa Cornélia reagiria. A mesma tinha um certo apego em Catherine e sábia que parte de seu ódio por mim estava relacionado a isso. Então sabia que quando ela sentisse a ausência de Catherine, logo ela ficaria furiosa, se sentido traída.

— Chegamos — gritou nosso amigo padeiro quando parou a carroça.

— Até que em fim — disse Catherine alegremente, enquanto pulava para fora da carroça.

Eu ainda estava um pouco tonta devido à viagem, mas fui atrás dela.

Catherine estava radiante e não era para menos. Estávamos em um lugar lindo. No meio da floresta havia uma cabana que mesmo abandonada parecia um verdadeiro lar, as árvores e as flores perfumavam o vento que mexia nos cabelos loiros de Catherine.

— Esse lugar é lindo! — falei.

— É o meu paraíso — disse ela.

— Espero que fiquem bem, meninas — disse o padeiro. — Eu já vou indo.

Catherine correu até seu amigo e disse:

— Sou infinitamente grata pelo que nos fez hoje. Porém devo lhe pedir que nunca, jamais conte para ninguém onde Pandora e eu estamos. Não quero correr o risco de ter que voltar para o castelo a mando da princesa.

— Fique tranquila, filha — disse ele. — Juro por Deus que você e sua amiga poderão viver em paz a partir de agora. — Ele subiu na carroça e pegou as rédeas. — Adeus, espero que um dia possamos nos reencontrar.

E rumou para fora do bosque, a caminho da estrada até a vila de Leão.

— Adeus, obrigada! — Catherine e eu gritamos até a carroça desaparecer.

— Bem, o que fazemos agora? — indaguei.

Catherine sorriu e me abraçou.

— Agora vamos arrumar nossa casa e depois aproveitar nossa vida. Tenho minhas economias e creio que serão suficientes para podermos nos estabilizar. Mas o principal, vamos poder ser livres. Finalmente! — respondeu Catherine, me abraçando fortemente.

E assim se sucederam os melhores dias de minha vida. Durante dois meses, Catherine e eu deixamos a velha cabana limpa e organizada, perfeita para morarmos. Com o tempo começamos a plantar uma hortaliças próximo ao rio que passava próximo à nossa casa.

Toda semana fazíamos a colheita e vendíamos nossas hortaliças no vilarejo. Éramos queridas por todos, que não faziam muitas perguntas depois que Catherine convenceu a todos de que éramos duas primas órfãos que moravam em uma cabana na floresta e plantavam hortaliças para sobreviver.

Nossa condição era vista como de duas pobres coitados. Porém, mal sabiam que vivíamos a mais plena felicidade, amor e liberdade.

Liberdade na qual como todas as coisas bonitas, era muito frágil.

Em um dia nublado de novembro, Catherine saiu cedo com a carroça para levar as hortaliças até o marcado como sempre fazia. Enquanto eu ficava em casa.

O melhor de morar no meio da floresta era o silêncio, ninguém visitava os arredores, então não precisávamos nos preocupar com algum desorientado querendo se aproveitar de mulheres indefesas. Mas isso não significava que eu não me preocupasse. Sempre que Catherine saia eu pedia a Deus que a protegesse, que nos protege de sermos descobertas pela Princesa Cornélia, que com toda certeza estava com muita raiva da nossa fuga. Já fazia um ano desde nossa fuga e tudo estava bem, Catherine dizia que eu me preocupava de mais.

E naquele dia, meu pior pesadelo estava prestes a virar realidade.

Estava trabalhando na horta, faltava pouco tempo para Catherine chegar em casa e naquele dia ela faria o nosso almoço. Tudo estava tranquilo, até que ouvi o som de uma carroça se aproximando da nossa casa. Deixei a horta e caminhei em direção a casa para receber Catherine, que traria coisas do mercado para nosso almoço.

Me surpreendi quando vi uma carroça desconhecida estacionada próximo à casa. Dela saíram três homens fortes e carrancudos. Mercenários, pensei.

— Você se chama Pandora? — perguntou um deles.

— Na... não — respondi nervosa.

— Você mora a muito tempo nessa casa? — perguntou o mais jovem.

— Nasci aqui, era a casa de meus pais — respondi simplesmente. — E por que vocês estão aqui? — indaguei.

— Estamos procurando uma garota ruiva chamada Pandora e uma garota loira chamada Catherine. Ambas são jovens e trabalhavam para a Princesa Cornélia de Castela — disse o último.

— Não conheço nenhuma Catherine — afirmei. — Me chamo Ofélia — disse o mais confiante possível. — Moro nesta cabana com minha única parente viva, minha irmã Lígia. Somos apenas duas camponesas, não as fugitivas que os cavaleiros procuram.

— Está bem, senhorita — disse um deles gentilmente. — Desculpe pelo incômodo.

— Tudo bem, tenham um bom dia — disse me sentindo aliviada.

Os três subiram na carroça e estavam presentes a partir quando a diante vinha a carroça de Catherine. Percebi quando os homens olharam para ela e falaram algo baixo uma para o outro. Com certeza ao ver que ela era loira suas suspeitas começaram a fazer sentido. Então eles não foram embora, continuaram com a carroça parada esperando ela se aproximar.

— O que está acontecendo? — perguntou ela descendo da carroça.

Antes de responder, um dos homens andou até mim e colocou uma espada na minha garganta.

— Você é Catherine e essa ruiva Pandora? — perguntou outro homem.

— Soltem ela, por favor! — implorou Catherine, chorando e tentando se aproximar.

— Fuja, meu amor! — gritei e a lâmina espremeu minha garganta.

Catherine estava desesperada, tentou vir até mim mais uma vez mas foi impedida por um dos homens que a agarrou.

— Isso já deve ser o suficiente. Não restam dúvidas que sejam as duas — disse o mais velho que estava de mãos livres.

— Não vamos perder tempo — disse o que me segurava. — Vamos colocar as garotas na carroça e leva-las logo para Castela. — E tirou a espada do meu pescoço.

— O que estão fazendo? Não somos quem vocês procuram! — gritou Catherine se debatendo, enquanto éramos levadas para a parte de trás da carroça coberta por um tecido branco.

Nos jogaram lá dentro e em cada lado da carroça acarretaram uma de nós pelas duas mãos.

— Fiquem quietas aí atrás — avisou um deles. — Não fomos pagos para matar garotinhas bonitas.

— Para onde estão nos levando? — perguntou Catherine, tentando se mexer embora fosse difícil por causa das correntes.

— Não se faça de desentendida, garota. Vamos levar vocês para a Princesa de Castela — respondeu o mercenário que segurava as rédeas lá na frente.

— Aquela vaca mau amada! — gritou Catherine irritada.

Os três riram. E a carroça começou a andar.

— O que vocês fizeram para irritar a princesa? — perguntou o mais novo deles.

— A Princesa Cornélia me odeia e ama a Catherine. Então não fico surpresa com o que está acontecendo — falei com desdém.

— Não irrite a nobreza, é o que eu sempre digo — comentou um deles.

— Fico feliz pelo dinheiro que vamos ganhar. Mas essa princesa é maluca. Onde já se viu uma princesa se importar tanto assim com duas empregadas — disse o que estava sentado na ponta esquerda do banco da frente.

— A Princesa Cornélia deve ter algum tipo de amor canal pela loira, só que não vai assumir. Então sente raiva da ruiva ter o amor da loira — disse o mais velho.

— É isso mesmo? — perguntou o mais novo, se virando para trás.

— E se for?! — gritou Catherine.

E os três se olharam.

— Vocês sabem o que irão fazer com a gente quando chegarmos em Castela? — perguntei mantendo a calma.

— Bem, meninas. Não é nada pessoal, mas esse é o nosso trabalho. O que a princesa irá fazer com vocês não é da nossa conta, somos apenas mercenários — respondeu o mais velho.

— Eu estou com medo — sussurrou Catherine, esticando seus braços para se aproximar de mim.

Fiz o mesmo e conseguimos tocar nossos lábios.

— Vamos passar por isso juntas, querida — falei. — Ela pode nos torturar como quiser e mesmo assim, nada vai mudar o que sentimos e vivemos juntas.

— Eu amo muito você — disse ela chorando.

Quando chegamos no reino de Castela. Reconheci o vilarejo que cresci, vi as pessoas que fizeram parte da minha vida e vi minha mãe. Pensei em chama-la. Mas mudei de ideia, não queria fazê-la sofrer.

Fomos levadas para dentro do castelo, para o calabouço melhor dizendo.

Catherine e eu fomos acorrentadas pelas mãos novamente, pelo menos uma ao lado da outra.

— Vamos ser executadas — choramingou Catherine quando ficamos sozinhas.

— Nós não cometemos nenhum crime, não tem como isso acontecer — argumentei.

— Tem sim — disse alguém se aproximando.

Ouvi mais alguns passos até que Cornélia surgiu na frente da cela.

— Oh, vocês estão horríveis — disse Cornélia.

— O que você quer? — rosnou Catherine.

— Minha doce, Catherine. Por que você me decepcionou. Eu te amava tanto — lamentou a princesa.

— Você não ama ninguém, nem a sí mesma, sua horrenda invejosa! — bradei.

— Eu te avisei, Pandora. Mas como a da mitologia grega você não soube ouvir um aviso e acabou provocando um grande mau — disse ela com desdém.

— Amei e fui amada, não foi tão ruim assim — disse de forma ríspida. — Ao contrário de você, que é uma garota horrorosa que ninguém suporta.

— Você não vai se sentir muito esperta quando queimar na fogueira hoje à tarde, ruiva. Nem você nem a minha querida Catherine — disse ela.

— Isso é impossível, não tem provas de que somos bruxas! — disse Catherine.

— Duas garotas fugindo juntas para ter relações sexuais. Se isso não for coisa do Diabo, não sei o que é — disse ela, sorrindo.

— Você é uma coisa do diabo! — gritou Catherine. — É uma princesa feia e sem coração que nenhum príncipe quer como esposa! E não suporta ser o centro do universo. Você é o próprio demônio!

— Te vejo no inferno, Catherine — disse Cornélia e em seguida saiu.

— Pandora, me desculpe é tudo minha culpa — chorou Catherine.

— Não chore, meu amor. Lembre-se de como fomos felizes, em como vivemos nosso próprio paraíso. Não me importo em ter tido uma vida curta, se vivi com seu amor por um tempo que ficará para sempre em minha alma — falei tocando minha testa na dela.

— Meu amor por você é imenso, tanto que na próxima vida pedirei a Deus para te reencontrar — disse ela aos prantos.

— Uma vida foi pouco para te amar — falei.

— Eu te amo — disse ela me olhando nos olhos.

Foi então que aqueles olhos verdes me causaram uma sensação estranha de que de alguma forma tudo ia ficar bem. Mesmo eu sabendo que não.

No final da tarde fomos buscadas pelos carrascos. Eles nos levaram acorrentadas e nos amararam em dois mastros no centro da vila.

Vi minha mãe, meu pai e minha irmãzinha chorando em meio a multidão. Me senti péssima, uma decepção para todos. E mesmo que o fogo queimasse todo meu corpo em segundos, não doeria como meu peito ao ver minha família sofrendo daquela forma.

— Eu os amo! — gritei com toda a força de meus pulmões.

Minha família continuou chorando e quando percebi eles havia desaparecido. Deviam ter voltado para casa para não me ver morrendo.

Foi quando percebi que o carrasco já havia incendiado a palha aos nossos pés. E comecei a sentir o calor das chamas.

— Eu te amo por toda eternidade — disse Catherine, chorando mais do que nunca.

— Eu te amo te amo além disso — respondi, chorando também.

Então Catherine fechou os olhos e desistiu daquela vida.

As chamadas já haviam consumido meu corpo, a dor era insuportável. E mesmo assim consegui olhar pela última vez as pessoas que viam o espetáculo. Entre elas estava a Princesa Cornélia. Olhei em seus olhos escuros e pela primeira vez vi algo familiar em toda a malícia que eles transpassavam.

Calor, dor e aqueles olhos sombrios.

Eduarda? Minha consciência de Paloma ficou mais vivida naquele momento, olhei entre as chamas para o rosto da princesa e vi o de Eduarda. Então aquilo explicava a antipatia que tínhamos uma pela a outra.

Mas já estava na hora de ir embora, Pandora já estava morrendo. E então tudo ficou claro e abri os olhos.

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