Capítulo 9 Buscando Respostas

Quando chegou sexta-feira a euforia de Vitória estava no ápice. Logo pela manhã, não houve um segundo que ela não falasse sobre como seria a nossa tarde.

No intervalo não foi diferente, Vitória já havia enchido minha paciência. Porém, eu não dizia nada, apenas concordava. E durante o recreio foi a vez de Rafael ouvir tudo que ela tinha para falar.

— Eu posso ir também? — perguntou Rafael realmente interessado. — Deve ser legal ver.

Estávamos sentados no mesmo banco debaixo de algumas árvores. A dia estava quente em comparação aos anteriores, o sol se exibia timidamente no céu, pois algumas nuvens o cobriam de vez em quando. Ele aparecia o suficiente para secar o orvalho da grama e esquentar nossos corpos.

— Eu só fico deitada no sofá de casa sonhando. Não deve ser muito interessante — argumentei.

— Aí que você se engana — disse Vitória. — Enquanto você está lá revivendo suas memórias. Eu te faço perguntas e você responde a todas. Você fala durante tudo o processo.

— Pensei que eu só falava com você quando você voltasse para me buscar — disse confusa.

— Que legal! — disse Rafael.

Vitória ficou sorrindo convencida e uma dúvida me veio à tona.

— Se enquanto eu estava revivendo as minhas memorias, como você disse. Eu te falava tudo ou respondia suas perguntas. Por que você me fez contar toda a história depois? — indaguei.

— Para não perder nenhum detalhe, ué! — respondeu ela.

— Entendi — falei sentindo um pouco da minha privacidade invadida.

— Não vejo a hora de ser a minha vez! — disse Rafael animando. — O que será que eu fui? O que você acha?

— Você era um velho rabugento dono de uma taberna — falei sarcástica.

— Que maldade, Paloma — disse ele fazendo um biquinho. — Eu sempre fui tão legal com você. — Ele sorriu, então não me preocupei em ter o ofendido.

— Tenho certeza que você não foi um velho rabugento dono de um boteco — disse Vitória também sorrindo. — Se você foi um pouco parecido com o que é agora. Não poderia ter sido menos que um príncipe ou um cavaleiro.

Rafael sorriu e passou seu braço por trás das costas de Vitória.

— Viu, essa aqui me ama de verdade — disse olhando para mim enquanto a abraçava.

Vitória sorria satisfeita. Ela ergueu as sobrancelhas insinuando que estava quase chegando onde queria, e eu sorri em cumplicidade.

— Mas só depende de você, Paloma — disse Rafael. — Eu posso ir na sua casa ver a sessão de regressão?

— Se mais ninguém ficar sabendo, até pode ser — respondi. — Por que é melhor minha mãe não saber que estou levando visitantes lá em casa.

— Por que não? — perguntou Vitória.

— Eu prefiro assim.

Chegando à tarde, depois que minha mãe saiu para o trabalho e Amanda estava escola. Minha mãe sempre buscava Amanda na casa de nossa tia avó para o almoço e quando saía sempre levava ela. Eu ficava com um pouco de pena da minha irmãzinha. A rotina dela era muito corrida. Seria muito mais fácil se dona Marta mudasse Amanda para o turno da manhã, mas ela não queria isso.

Por um lado, era bom pois eu passava a tarde sozinha e podia receber visitas como aquele dia.

Logo depois que minha mãe saiu mandei uma mensagem para confirmar o horário com Vitória. Ela disse que viria as duas da tarde e Rafael a acompanharia.

Eu ainda tinha uma hora, pensei em fazer um bolo para eles, coisa simples e rápida. Então peguei a farinha e todos os ingredientes e preparei um bolo de chocolate o mais rápido possível, coloquei no forno e me sentei na varanda para ler O Morro dos Ventos Uivantes parra passar o tempo.

Quando o bolo ficou pronto corri para desenforma-lo. E enquanto eu contava os pedaços, ouvi alguém batendo palmas no portão. Corri com a bandeja do bolo e a deixei na sala pronta para receber meus convidados.

Me certifiquei que estava tudo arrumado e corri para abrir o portão. Eu estava mau arrumada, de jeans e camiseta. Mas isso não importava, eu estava em casa.

Enquanto abria o portão cumprimentei Vitória que havia decido da sua bicicleta, ela vestia um vestido verde, muito bonito. E Rafael sorridente como sempre estava na sua bicicleta. Ele vestia jeans e camiseta assim como eu.

— Sejam bem vindos — falei enquanto eles estavam no meu quintal.

— Que lugar bonito que você mora — elogiou Rafael.

— Eu não disse? — comentou Vitória.

— Eu fiz um bolo de chocolate — falei em voz baixa. — Espero que vocês gostem.

Vitória veio até mim e passou um braço sobre meu ombro, enquanto com a outra mão apertou meu rosto.

— Você é mesmo muito fofa — disse ela sorrindo.

— Onde eu deixo a bicicleta? — perguntou Rafael.

— Ali encostada na parede — respondi apontando para a parede próxima a porta.

Rafael encostou sua bicicleta na parede e Vitória também.

Entramos dentro de casa e eu os conduzi até a sala. Lá comemos o bolo e conversamos. Ou melhor, Vitória e eu conversamos enquanto Rafael devorava o bolo que a propósito ficou melhor do que eu esperava.

Agora chega de enrolação! — disse Vitória se levantando e andando até onde havia deixado sua bolsa. — Vamos começar a sessão? — perguntou ela já com seu caderno nas mãos.

— Mas já? — disse Rafael com a boca cheia de bolo.

— Sim — disse seriamente enquanto sentavam-se no sofá.

Era engraçado o modo que Vitória ficava séria quando ia brincar de hipnóloga.

— Se deite no sofá, Paloma. Vamos fazer o mesmo esquema de antes — mandou ela.

Aproveitei que já estava sentada no sofá grande, tirei os sapatos e me deitei.

— E o que eu faço? — perguntou Rafael, sentado ao lado de Vitória no sofá pequeno.

— Você continua aí e fica em silêncio — respondeu Vitória.

— Está bem — disse ele se acomodando no sofá.

Vitória o olhou seriamente, o reprimindo com o modo como o encarava. Para ela aquilo era algo muito sério e importante.

— Está pronta, Paloma? — perguntou.

— Sim — respondi.

Fechei meus olhos, me deitei confortavelmente no sofá, coloquei os braços do lado do corpo e respirei fundo.

Logo Vitória colocou para tocar o som de cachoeira.

— Pra que isso? — Ouvi Rafael perguntar.

— É para a concentração. E não atrapalha mais, Rafa — respondeu Vitória.

Rafael ficou em silêncio.

— Está confortável, Paloma? — perguntou ela.

— Sim — respondi de olhos fechados.

— Ótimo, agora respire fundo cinco vezes e na terceira vez que ouvir o estalo dos meus dedos, você se imaginará naquele mesmo corredor branco.

Respirei fundo as cinco vezes e quando ouvi o terceiro estalo de dedos me vi novamente naquele extenso corredor branco.

— Você se vê no corretor branco agora — disse Vitória. — Você está buscando aquela mesma porta no final do corredor, mas ela está longe. Por isso você mal a vê. Porém, você é resistente e continua andando até ela. Enquanto você caminha, uma luz branca cobre todo o seu corpo, como se fosse uma armadura. O que realmente é. Uma armadura espiritual.

Enquanto andava pelo corretor branco, olhava para as minhas mãos que emanavam uma luz branca que estranhamente me deixava mais tranquila. Aos poucos a voz de Vitória foi se tornando algo quase inconsciente. Como se fosse desaparecer a qualquer momento.

Cheguei a até a porta e virei a maçaneta cautelosamente. Abri a porta e um forte vento soprou meus cabelos e me impediu que visse o que havia do outro lado. Quando finalmente consegui ver o que estava acontecendo. Me vi sentada em um lugar estanho, de solo barrento e eu ouvia homens falando alto por toda parte. Olhei para meus pés e me deparei com coturnos extremamente mal acabados. Minhas calças também estavam imundas, o tecido era diferente, mais pesado. Continuei olhando para mim mesma até chegar no restante das minhas roupas, foi quando percebi que vestia uma farda. Passei a mão pelos cabelos e eram curtos e nada macios, pareciam estar sujos como o restante do meu corpo. Continuei passado a mão pelos cabelos até que cheguei no rosto, foi quando senti algo que me assustou. Eu tinha barba! Não tão longa mas também não aparada. Eu estava um caco, podia sentir isso. Minha respiração estava pesada, estava cansado. Sim, cansado. Foi então que comecei a responder perguntas como as que Vitória me fez. Em que ano estamos? Minha consciência respondeu: 1943. Quantos anos temos?... 23. Homem ou mulher?... Homem. Nome?... Pietro. E onde estamos?... Alemanha... longe de casa... Itália.

Foi então que Pietro retomou sua consciência e eu voltei a ser mera expectadora. Eu estava cansado, ofegante e faminto. Sentia-me sortudo de certa forma, pois pelo menos estava vivo. Eu havia recém saído de uma batalha contra os alemães. No território deles. O que dificultava e muito para os soldados italianos. Do meu batalhão haviam sido mortos menos que a metade dos soldados. O que nos denominava vitoriosos de certa forma. Eu havia ido bem, consegui contar nove alemães derrubados por meu fuzil. Eu era um sobrevivente e naquele momento eu tentava descansar, mesmo que minha mente nunca pudesse realmente descansar depois de ver tudo do que o homem é capaz.

Eu estava sentado em uma pedra na frente de um tanque de guerra que fedia como um chiqueiro. Estávamos no acampamento e eu havia me afastado dos outros soldados do meu batalhão. Precisava pensa, tentar esquecer toda a morte que havia visto, todo sangue, todo sofrimento, todas as vidas e sonhos interrompidos. Lembrei de minha velha mãe, que estava em casa, na nossa querida Itália. Ela era a pessoa mais forte que eu conhecia e mesmo assim nunca fez mal para ninguém. Ao contrário de seu casula, que saiu de casa um ingênuo camponês e quando voltasse — isso se Deus permitisse. — Voltaria um assassino, um ser sem alma. Que só tentou se manter de pé para ter a chance de rever sua velha mãe.

Tudo o que mantia com vontade de vencer era ela, eu vivia e matava por ela. Nada mais me importava.

Eu estava distante do acampamento, porém, mesmo assim era possível ouvir os berros do sargento. Ele era um homem detestável. Era um dos motivos que me levaram a me afastar naquele momento. Tudo o que eu não precisava era ouvi-lo se vangloriar dos alemães que havia matado. Homens nos quais eram como nós; estavam no campo de batalha pois eram obrigados pelo governo.

Digamos que o sargento e eu não simpatizamos logo de início. Ele já entrou no batalhão exibindo seu sorriso convencido, seus cabelos castanhos e olhos verdes. Que segundo ele, abalavam os corações das jovens em Veneza. Ele havia de ter a mesma idade que a minha, porém eu tinha algo que ele nunca haveria de ter. Maturidade, era isso que lhe faltava para ser um homem digno de respeito.

Uma forte luz branca tomou conta de mim. Fiquei desorientada, mas não me impus contra aquilo. Pensei que Vitória estivesse me chamando de volta.

Quando abri meus olhos eu via escuridão, brasas e sentia o chão úmido tocando meu rosto. Sentia fraqueza, sede e desespero. Até que alguém me levantou do chão, me pegou pelos braços e me arrastou para longe. Fiquei olhando onde antes era o acampamento militar. Agora não se restava mais nada além de cinzas e o odor pútrido do que havia restado dos meus companheiros. Foi então que me lembrei. Nosso acampamento foi atacado durante a madrugada pelos alemães.

Eu não fazia ideia de quem era o bom homem que havia me resgatado. Só tinha certeza que algo havia me atingido na perna esquerda, que eu sentia queimar.

O desconhecido continuou me arrastando pelo bosque. Até que chegamos em uma mata mais fechada. Eu olhava para o céu, que estava mais bonito, mais azul do que o que havia visto quando acordei. Isso significava que estávamos distantes de onde o massacre aconteceu. Lamentei por meus companheiros e suas famílias.

Por outro lado, quis saber quem foi a boa alma que havia me resgatado daquele inferno. Queria me levantar e andar, pois a respiração pesada de meu companheiro mostrava que não estava sendo fácil me arrastar.

Sentia extrema dor na minha perna, tanto que as vezes sentia como se dor sempre houvesse sido uma parte de mim.

Logo me vi sendo arrastado para o que me pareceu uma velha e abandona cabana no meio da floresta.

O homem que eu ainda não havia sequer visto o rosto me acomodou em uma velha cama mofada. A cabana era muito pequena, um cômodo apenas. Que parecia servir bem como quarto e cozinha.

Enquanto eu estava deitado. A dor em minha perna esquerda só piorava. Era tanta que eu me admirava por não estar gritando.

O estranho permanecia de costas para mim, estava do outro lado da cabana, parecia nervoso enquanto cozinhava algo que cheirava bem. Eu queria saber quem ele era. Só o que eu sabia era que ele era um soldado italiano assim como eu. Pois suas roupas, embora sujas e esfarrapadas eram como as que eu vestia.

— Somos os últimos que restaram — disse ele finalmente. Permanecendo ainda de costas.

— O que aconteceu? Não me lembro de nada — perguntei, e no mesmo momento a dor na minha perna piorou, por conta de eu ter me mexido. — Aí! — resmunguei.

— Fomos atacados durante a madrugada. Entendo perfeitamente você não se lembrar de nada. Foi tudo muito rápido — respondeu ele, andando rapidamente até onde eu estava com um pano úmido na mão. Que ele passou no meu ferimento. — Uma granada deve ter explodido perto de você. Tem sorte por estar vivo.

Ele limpava minha ferida com muita cautela. Enquanto eu ainda olhava para o seu rosto e não conseguia distinguir quem era por conta da sujeira.

— Lamento muito pelos outros — disse tristemente.

— Eu também — disse ele, voltando para as panelas. — Mas a guerra é assim mesmo. Alguns morrem, outros sobrevivem e todos se tornam infelizes.

— Como encontrou este lugar? — perguntei me deitando novamente na cama e olhando para o teto. — Não corremos risco de sermos pegos aqui?

— Quando o acampamento foi atacado eu estava procurando lenha na floresta. Eu já estava voltando quando ouvi o bombardeio, então sai correndo pela floresta e encontrei este lugar. Sei que não podemos ficar muito tempo aqui. Mas quando você estiver recuperando iremos embora.

— Voltaremos para casa — comentei.

— Se o bom Deus nos permitir — disse ele, vindo até mim com uma colher e um prato de sopa. — Só espero que você se recupere logo. — Se sentou em um banco ao meu lado e levou a colher até a minha boca.

Naquele momento finalmente consegui olhar nos olhos de meu companheiro. Fiquei surpreso ao ver que logo o homem que eu não simpatizava o Sargento Carlos, foi o homem que arriscou voltar para o acampamento e teve a bondade de resgatar um homem ferido condenando a morte. Naquele momento me arrependi por tê-lo difamado pelas discussões. A verdade é que ele era um bom homem.

Eu me sentia fraco, enquanto ele continuava a me dar comida na boca. Eu queria poder fazer aquilo por mim mesmo, não era nenhum inválido digno de pena. Mas a verdade, é que eu sentia que todas as minhas forças foram arrancadas de mim.

Então invés de reclamar e colocar a tona a antipatia que eu tinha com ele, eu deveria agradecer a Deus por ter o mandando para salvar a minha vida. E a partir daquele momento comecei a vê-lo com outros olhos.

Literalmente... aquela foi a primeira vez que eu realmente olhei em seus olhos e naquele momento tudo pareceu desacelerar.

Aqueles olhos verdes, eu os conhecia de algum lugar. Eram tão bonitos, me faziam sentir em casa. Me faziam sentir carrinho.

Como Paloma consegui identificar o nervosismo que Pietro sentia. Todo aquele carrinho que surgiu por um minuto se misturou com revoltada, era como se ele tentasse reprimir o que havia sentido. Como se fosse errado se afeiçoar ao homem que havia o salvado.

Então como Paloma, com a minha consciência no comando. Olhei mais uma vez de olhar com meu senso crítico para o homem que me alimentada. Minha respiração ficou pesada. Como mulher posso afirmar que não seria nenhum martírio ser salva por um homem daqueles. Mesmo sujo era possível ver que era bem afeiçoado e forte como um cara de academia. Sua barba e seus cabelos mesmo sujos emolduravam um rosto lindo. Ele era um sonho, é o que eu posso afirmar.

Mas foi quando olhei em seus olhos que me espantei. Eram verdes e lindos, o que logo me fez lembrar de Kannon e olhando melhor... eram sim! Os mesmos olhos de Kannon e tecnicamente os mesmo de Kety. Olhei mais uma vez, diretamente nos seus olhos e vi seu rosto mudar. Da primeira vez apareceu Kannon e seus cabelos loiros e pele bronzeada e em seguida Kety, com seus longos cabelos castanhos e pele pálida. Sim, Carlos era a reencarnação de Kannon e de Kety. Todos eram a mesma pessoa, a mesma alma.

— O que foi? — perguntou ele, preocupado.

Tomei um susto quando ele finalmente falou e rapidamente passei o controle para Pietro.

— Você acha que irei ficar curado logo? — perguntei olhando para minha perna.

— Espero que sim — disse ele, exibindo um sorriso cortes. — Temos uma longa jornada pela frente. Quando você estiver melhor queimaremos nossos uniformes e voltaremos para a Itália como homens livres. Estou farto desta guerra.

— Eu também — concordei.

Durante o tempo que passamos juntos, fomos ficando mais amigos a cada dia. Fiquei cerca de duas semanas de cama, até que finalmente o ferimento em minha perna estivesse finalmente curado. Carlos se mostrou um excelente enfermeiro. Todos os dias ele saia da cabana e só voltava ao que me parecia ser o meio dia. Voltava com caça, raízes, as vezes com frutas, ervas e lenha.

Eu temia que a fumaça saída da chaminé da cabana em ruínas chamasse a atenção do inimigo, pois embora estivéssemos afastados, estávamos em seu território.

Com os cuidados de meu companheiro logo me vi disposto a voltar a caminhar. Aquilo significava nossa liberdade.

Mas enquanto minha saúde não colaborasse, a companhia um para o outro deixava de lado a monotonia daquele lugar afastado da civilização.

Carlos se mostrou um grande conhecedor das artes e um ótimo cantor. Enquanto eu, um contador de histórias.

Não posso negar que durante aquele pouco tempo que estivemos juntos, muitos dos meus conceitos sobre ele mudaram completamente. Eu não o via mais como um ser humano desprezível, invés disso, passei a vê-lo como um verdadeiro amigo.

Quando ele saia pela manhã, ansiava pela sua volta, não suportava ficar solitário, não suportava pensar na hipótese de ele ser pego pelos alemães e nunca mais voltar.

Não conseguia ver minha jornada sem ele, me pegava pensando no momento em que chegaríamos juntos na Itália e na alegria de nossas famílias em receberem seus filhos sobreviventes das trincheiras.

Só Deus tinha conhecimento do martilho que me via passar caso algo o separasse de mim. Minhas expectativas estavam formadas. Qualquer diferença no percurso me causaria imenso sofrimento. Sim, nós estaríamos juntos até o fim.

Nossa proximidade com o passar dos tempos foi aumentado. De colegas fomos para amigos e de amigos fomos para confidentes e parceiros.

— Chegaremos juntos ao nosso destino final — afirmou ele enquanto beijava minha mão.

Quando me dei conta percebi sentia algo a mais por Carlos, que havia evoluído de um imenso afeto. Aquilo me parecia errado, imoral, meu coração não deveria me trair daquela forma. Sentia amor, nada mais do que amor. Eu o amava, mas não como amava minha família e amigos. Me sentia diferente perto dele, me sentia protegido ao mesmo tempo que sentia que era meu dever protege-lo. Sentia-me confuso, imoral e reprimia cada vestígio daqueles pensamentos.

Porém, a vida é engraçada, não é? É icônico como as coisas sempre tendem para a imoralidade. Ou talvez o que chamamos de moral não seja nada além de algo que o homem criou para reprimir seus desejos.

O que eu não esperava era o mesmo de meu companheiro estivesse passando por o mesmo mar de incertezas que eu. Não que ele falasse sobre o assunto para comigo. Mas seus olhares e gestos de afeto falavam por sí só.

Nós nos amávamos, e isso era tudo que tínhamos.

Certo dia, quando eu já estava quase curado, dando meus primeiros passos, repleto de esperanças de que logo poderíamos ir para casa e vivermos nosso amor em segredo. Algo inesperado aconteceu. Carlos chegou mais cedo do que de costume da sua caça. Chegou afoito e entrou as presas na cabana.

— O que houve? — Olhei para suas mãos. — Onde está a caça? Você foi atacado por um lobo.

— Quem dera fossem os lobos as criaturas mais perigosas que se pode encontrar nesta floresta — disse ele, nervosamente, enquanto olhava pela janela.

— Eles te viram? — perguntei preocupado.

— Espero que não.

Carlos olhou para mim e notei todo seu desespero.

— Eram muitos?

— Um batalhão, fortemente armado. Além de terem tanques de guerra. Estão vindo para essa direção. — Fechou a cortina e veio até mim. — Precisamos ir embora o mais rápido o possível. Você se sente bem para fugirmos?

Carlos tomou meu rosto com suas mãos cálidas, seus olhos transmitiam todos os seus medos. Não sabia o que fazer para conforta-lo além de beijar seus lábios.

— Não estou completamente curado. Mas o desespero nos fortalece — afirmei sorrindo para ele.

— Ótimo. — Me beijou rapidamente e andou até a cama.

Olhei por uma pequena janela e uma linda floresta nos cercava.

— Acho melhor sairmos logo daqui. — Ouvi ele dizer.

— Você pode ter razão — concordei.

— Eu não suportaria perder você — disse ele.

Então desviei meu olhar da janela e olhei para Carlos que estava sentado ao meu lado.

Em súbito minha consciência passou para o poder de Paloma. Então deixei de ser expectadora e me tornei personagem.

Fiquei o observando por um momento. Mesmo sentindo muito medo, ele sorria. Senti um imenso aperto no meu peito, não era dor, era um sentimento forte. Foi quando eu falei involuntariamente, como se não fosse eu mesma naquele momento.

— Eu amo você — falei e Pietro voltou a sua realidade.

Carlos sorriu quando pronunciei aquelas poucas palavras que significavam muito.

— Eu também te amo — disse ele tendo meu rosto em suas mãos. — Por isso temos que sair logo daqui, nem que eu tenha que te levar nas costas.

Assenti e andei até ele para abraça-lo. Por um momento esqueci que o inferno nos aguardava.

— Não temos escolha, vou ter que te levar nas costas. Seu ferimento vai piorar se correr. — Pegou em minhas pernas e logo estava em seu colo.

Sorri enquanto olhávamos um nos olhos do outro.

— Você não vai se cansar de correr me arrastando.

— Seria mais difícil correr sabendo que te deixei para trás — disse ele.

Enquanto nos beijávamos, algo lá fora explodiu. Desci do colo dele e me inclinei para olhar pela janela. Lá fora estavam as trevas que nos aguardavam. A floresta em chamas anunciava o poder de um canhão e o som dos tanques de guerra estava ainda mais próximo. Logo estaríamos cercados, não havia escapatória.

— Eles estão muito perto. Não teremos chance de fugir! — exclamei.

O rosto de Carlos ficou rígido. Seus olhos furiosos olhavam para janela.

— Se não podemos fugir, lutaremos — disse seriamente já sacando um fuzil.

Peguei um fuzil que estava em cima da mesa e fiz o mesmo. Estávamos prontos para morrermos juntos.

Olhamos pela janela e para nossa infelicidade, em meio a mata começaram a surgir soldados que pareciam ser guiados por um jovem soldado que apontava na direção da cabana.

Não houve aviso, não houve sequer chance para um diálogo. Os alemães formaram uma linha em torno de nós e começaram a atirar.

Como poderiam ter tanta certeza? Me questionei.

O que não sabiam era que Carlos e eu, embora condenados não iríamos para o inferno sem que levar parte daqueles malditos conosco.

Rapidamente nos escondemos entre as paredes e usamos suas frestas como caminho para as balas do fuzil. Nossa mira era excelente. Acertamos diversos soldados, enquanto balas atravessavam a cabana na nossa direção.

Embora fôssemos ótimos atiradores. Aquilo não era o bastante, pelo menos não para sempre.

Eu estava distraído atirando quando algo horrível aconteceu. Uma bala atravessou o peito de Carlos tão rapidamente quanto um raio.

Deixei a arma de lado, aquilo não fazia mais sentido.

Peguei Carlos em meus braços e afastei as lágrimas dos seus olhos enquanto meus olhos se inundaram.

— Vai ficar tudo bem — afirmei mesmo sabendo que o contrário aconteceria.

Carlos me olhou e sorriu. Juntou forças para pegar minha mão e levar até seu peito ensanguentado.

— Eu... amo você — disse com a voz fraca.

— Eu também, meu amor.

E então os olhos dele se fecharam lentamente. E uma imensa tristeza tomou conta de mim. Ele estava morto e não me restava mais nada a fazer.

Balas continuavam a passa pelas paredes da cabana. Minha vida certamente terminaria ali, e assim começaria meu inferno; com um coração partido.

Não havia mais nada a ser feito sequer aceitar. Por isso, me levantei e deixei as balas me atravessarem.

Foi quando a dor se tornou alívio.

Minha última visão antes de tudo se escurecer foi meu corpo cair por cima do peito de meu amado.

Aos poucos a consciência de Pietro foi desaparecendo e a minha voltando. Confesso que ainda sentia a dor em meio peito que Pietro sentiu quando viu Carlos sendo morto. E sentia que depois de ter visto aquilo, a sensação ficaria para sempre em mim.

— Paloma... está na hora de voltar. — Ouvi Vitória me chamar.

— Eu sei — disse abrindo uma porta na escuridão e quando olhei para o outro lado. Via o teto da minha casa.

Estava de volta à 2017.

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Comments

Terezinha Gouveia

Terezinha Gouveia

muito bom , não consigo parar de lê 😍

2024-05-01

1

Lan Yumi

Lan Yumi

gosto

2024-04-23

1

Ver todos

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