Capítulo 7 Pela Primeira Vez

Segunda-feira, Vitória passou a manhã inteira animada para aquela tarde em que finalmente eu seria sua cobaia.

A verdade é que eu estava nervosa, mesmo que no fundo acreditasse que aquilo fosse uma tremenda tolice.

Se caso a regressão realmente funcionasse, eu teria algum receio que meu suposto passado não me agradasse muito. Como se por exemplo eu tivesse sido um carrasco de guilhotina ou algo assim. Com toda certeza essas são lembranças que eu não gostaria de recordar.

Eram duas da tarde, eu estava sozinha em casa e andava em círculos pela sala enquanto esperava por Vitória. Já havia arrumado tudo e feito um bolo para nós duas. Lá fora fazia um belo dia de sol, enfim as nuvens haviam se afastado. O que significava que a estrada de chão estava propicia para um passeio de bicicleta e também significava que Vitória estava atrasada.

O atraso dela me fez pensar no que poderia ter acontecido algum imprevisto. Era um fato que estradas de chão completamente desertas são um perigo para garotas, ainda mais as jovens e bonitas como Vitória. Comecei a criar paranoias com isso e enviei uma mensagem.

“Oi, já está vindo?” Enviei.

“Estou saindo agora. Daqui a pouco chego aí” respondeu rapidamente.

“Estou te esperando” respondi.

“Prometo chegar logo” enviou e ficou offline, deduzi que já estava a caminho.

Me sentei na varanda e fiquei a esperando, olhando para a natureza que me rodeava e tentando me preparar de certa forma para quando ela chegasse.

Em menos de meia hora, Vitória apareceu com sua bicicleta no meu portão.

Peguei a chave e fui abrir o portão para ela entrar. Quando me aproximei notei que Vitória sorria de uma forma tão animada que eu comecei a temer que a regressão não funcionasse e ela ficasse decepcionada.

— Oi — disse enquanto ela entrava.

— Oi, amiga! — disse alegremente. — Você está pronta para ver quem você era na sua vida passada?

— Acho que sim — respondi sorrindo enquanto fechava o portão.

— Me preparei no final de semana inteirinho — disse ela empurrando sua bicicleta em direção à minha casa. — Até pedi ajuda para a minha mãe. E ela disse que se eu conseguir fazer isso hoje ainda posso ser uma boa hipnóloga. Isso não é legal? — exclamou animada.

— Sim — respondi com a voz um pouco fraca.

Entramos dentro de casa e Vitória deixou sua bolsa na mesa da cozinha e tirou um caderno pequeno e uma caneta.

— Quando podemos começar? — perguntou prontamente.

— O que é isso? — perguntei apontando para o caderno em suas mãos.

— Para anotações, claro.

— Vai parecer o Freud — comentei.

— Está bem, engraçadinha — disse divertida. — Você está pronta?

— Pensei que você quisesse comer algo antes. Até fiz um bolo de chocolate. — Apontei para a mesa, onde ela não havia notado o bolo.

— Já que você insiste, podemos comer o bolo antes da sessão — disse sorridente. — É essencial que você esteja completamente confortável. E sem fome — acrescentou.

Comemos uma fatia cada uma enquanto bebíamos café. Ou melhor, Vitória bebia café, pois segundo ela cafeína não faria bem para alguém que deveria relaxar.

— Bem, já que estamos alimentadas, podemos começar! — afirmou se levantando e andando até a sala. — Seu sofá parece perfeito. Vai nos servir.

— E eu o que faço? — perguntei andando até ela.

— Deite-se no sofá de barriga para cima e fique com os braços retos — mandou.

Enquanto eu me deitava no sofá, Vitória se sentou no sofá menor e pegou o celular e o caderno.

— Está confortável? — perguntou seriamente, nem parecia a mesma pessoa.

— Acho que sim — respondi.

— Tente relaxar, feche os olhos — mandou.

Assim que fechei os olhos comecei a ouvir um som estranho, porém familiar, era como uma televisão antiga fora do ar ou quando o rádio não está sintonizado.

— O que é isso? — perguntei de olhos abertos.

— Este som ajuda na concentração — explicou.

— Eu acho irritante — falei.

— Posso colocar o som das ondas do mar ou uma cachoeira se quiser — sugeriu.

Lembrei da última vez que ouvi um daqueles sons. Era o da cachoeira da cidade e sem dúvidas aquele som era relaxante. Ao menos tempo que me lembrava do beijo de Kety. E já que minha finalidade ali era entender meus sentimentos confusos. Achei melhor apelar.

— Pode ser o som de cachoeira — respondi.

— Como você quiser — disse ela, enquanto colocava o som para tocar no celular. — Agora feche os olhos, relaxe, respire fundo e tente se sentir mais leve.

— Isso vai mesmo funcionar? Quer dizer, não tem chance de eu imaginar e acabar criando algo nada a ver? — indaguei com um olhar aberto.

Vitória cruzou as pernas e me olhou seriamente.

— É só fazer exatamente o que eu mandar e a hipótese vai funcionar. E além do mais, as memórias que você verá são suas, só vamos liberar elas da sua consciência — afirmou.

— Está bem. — Fechei os olhos.

— Então vamos continuar. Está relaxada?

— Sim.

— Ótimo, agora respire fundo cinco vezes, lentamente — mandou Vitória.

Fiz o que ela pediu. Continuei de olhos fechados e respirei fundo.

— Agora, Paloma. Vamos imaginar — disse por fim. — Você está em um longo corredor branco, existem portas para todos os lados e o final parece muito distante. Mas você quer chegar lá. Existe algo incrível naquela última porta. Consegue ver?

— Consigo — respondi.

— Enquanto você anda até lá seu corpo começa a ser coberto por uma luz branca. Que começa pela cabeça e logo se espalha por todo seu corpo. Olhe para sua mão e me diga como ela está.

Eu realmente estava me vendo em um extenso corredor branco e muito iluminado e enquanto eu andava sentia uma energia passando por meu corpo. Olhei para minhas mãos e elas brilhavam.

— Sim, eu vejo — respondi.

— Ótimo! Está luz é a sua proteção e se seu corpo está coberto por ela. Você está pronta para passar pela última porta.

No meu sonho cheguei até a última porta mais rápido do que imaginava. Peguei na maçaneta e a abri lentamente. Quando de repente a porta sumiu em meio à uma luz forte e eu me via em outro lugar.

— O que você está vendo? — Eu ainda ouvia a voz de Vitória.

Senti um vento quente soprar no meu rosto, o que fez tudo parecer mais nítido. Olhei para os lados e vi uma praia muito bonita. No horizonte um lindo pôr do sol. O que me fez sentir o impulso de andar pela areia branca e molhada. Meus pés afundaram na areia, minhas pernas eram mais finas e bronzeadas e o tecido macio do meu vestido laranja era levado pelo vento.

— Estou andando pela praia — respondi.

— Perfeito! — Ouvi ela dizer animada. — É dia ou noite?

— Fim de tarde, estou vendo o pôr do sol.

— Você é homem ou mulher?

— Mulher.

— Quantos anos ela tem?

— Como eu vou saber?

— São suas lembranças, pergunte a si mesma. Que está pessoa irá responder — disse Vitória.

Enquanto caminhava pela praia me concentrei mais naquele corpo que estava. Foi quando comecei a pensar diferente, era como se eu tivesse outra vida totalmente diferente da minha, era repleta de angústias e medos. Quantos anos eu tenho?

— Dezessete — respondeu a outra consciência.

— E como você se chama?

Continuei andando pela praia e fiquei olhando para o pôr do sol. Era como se eu fosse mesmo aquela pessoa.

— Piper — respondeu rapidamente e com muita convicção.

— E em que ano estamos, Piper? E o país ou reino — perguntou Vitória, como se sua voz fizesse parte da minha consciência naquele momento.

— Estamos em 1972 e estamos nos Estados Unidos — respondi com a mesma convicção.

— Perfeito, Piper. Agora reviva suas memórias, assim conduzido Paloma de 2017 à suas memórias mais importantes. Logo voltarei para te buscar — disse ela, e tudo ficou em silêncio.

Concordei com a voz e continuei meu caminho. Não como Paloma e sim como Piper. Era como se eu fosse um pequeno intruso na consciência daquela garota. Ela respondia minhas perguntas, mas parecia não notar minha presença. Continuava agindo normalmente. Ela estava nervosa, e eu sentia que estava esperando alguém.

Meu nervosismo fazia com que o tempo parecesse passar mais lentamente enquanto o aperto no meu peito só aumentava.

Meu temor apenas se esvaiu quando ouvi um som vindo do mar. Me virei e me deparei com um surfista surgindo do pôr do sol. Ele vinha correndo, trazendo sua prancha por debaixo do braço. Eu não via muito bem seu rosto, mas notei que era muito bonito. Os cabelos loiros e longos ainda molhados dançavam à medida que ele corria. E ele estava sem camisa, o que deixava seus músculos à mostra. Eu como Paloma fiquei impressionada, pois na minha vida de 2017 nunca havia visto um homem daqueles pessoalmente.

Já eu como Piper me senti aliviada ao vê-lo chegando.

De longe ele vinha falando algo, porém eu não entendia nada porque ele falava inglês. Então pensei rápido em uma solução. Eu, Paloma, era mera expectadora naquele momento, então deixaria Piper no controle.

— Oi, minha linda — disse ele, vindo sorridente até mim.

Eu o reconheci no mesmo instante e tudo ficou mais claro. Era como se a própria Piper tivesse me dito tudo sobre eles.

— Pensei que você não fosse mais sair da água, Kannon — resmunguei.

— Você fica linda mal humorada — comentou ele.

Senti um aperto no meu peito e entendi o porquê. Piper e Kannon eram namorados e ela o amava mais do que tudo. Porém...

— Você sabe que não posso ficar muito tempo por aqui — falei preocupada.

— Seu pai não vai nos encontrar aqui — afirmou ele.

— Eu só queria que ele aceitasse que nos amamos muito — choraminguei.

Rapidamente, me senti envolta pelos braços fortes de Kannon e meu coração acelerou.

— Eu também, meu amor — concordou ele, dando um beijo na minha testa. — Um dia vamos ficar juntos e será para sempre. Ninguém jamais irá nos separar.

Me senti extremamente feliz em ouvir aquelas palavras e involuntariamente levantei meu rosto para olhar para ele. Seu rosto era lindo, os lábios carnudos, a barba loira fazia contorno no queixo quadrado. Os cabelos loiros mais longos que os meus. E seus olhos verdes... Espera... eu os conheço.

Quando encarei os olhos de Kannon, rapidamente minha consciência de Paloma voltou à tona. Seus olhos verdes me eram familiares. Me lembravam muito de alguém. Disfarcei meu espanto para não assustar o rapaz, respirei fundo e olhei em seus olhos mais uma vez.

Ficamos ambos nos encarando e abraçados. Kannon sorria enquanto eu procurava algo em seus olhos.

Fiquei olhando diretamente para seus olhos, quando de repente seu rosto mudou rapidamente. Foi como se seus olhos fossem um retrato e o rosto da moldura. E a moldura, ou melhor dizendo, o rosto que eu vi naquele momento foi o de Kety. Eu não podia acreditar. Kannon de certa forma era a vida passada de Kety assim como Piper era a minha. Porém, tudo era diferente naquele tempo.

Pisquei meus olhos rapidamente e Kannon voltou a aparecer na minha frente. E sem saber o que fazer o abracei e afundei meu rosto em seu peito. Em seus braços eu me sentia segura. Ou melhor, Piper sentia.

Fechei meus olhos lentamente e quando voltei a abrir me encontrei em um lugar diferente. Me perguntei se havia pulando para outra reencarnação. Perguntei para a pessoa e a própria consciência me respondeu que ainda éramos a Piper.

Eu estava em um quarto muito bonito e luxuoso. Era visível que a decoração era de um tempo antigo. E me lembrava dos filmes antigos dos anos 70. O que era normal para o tempo onde eu me encontrava.

Não estava sozinha. No mesmo quarto havia outra garota, ela falava sem parar e para saber quem ela era, deixei Piper no comando mais uma vez.

Me levantei da cama onde antes estava sentada e andei até a garota. Ela era a irmã mais nova de Piper. Era muito bonita, loira e magra assim como ela.

Lembrei que quando olhei nos olhos de Kannon aquilo me mostrou quem ele era em 2017. Sendo assim, pensei em fazer o mesmo com a irmã de Piper.

Me aproximei e olhei no fundo de seus olhos. Eles eram azuis, mas tinham algo diferente e familiar. Continuei os observando por mais alguns segundos até que os identifiquei.

Os olhos da irmã de Piper trocaram de rosto e de cor, porém a forma de olhar continuou a mesma. Era Vitória, eu conhecia muito bem aquele olhar, mesmo que os olhos de Vitória fossem castanhos em 2017. Eu tinha certeza que era ela. E fiquei feliz em saber que éramos irmãs na vida passada. Isso explicava porque ficamos amigas logo de cara.

— Vocês se encontram hoje? — perguntou a garota.

— Sim — respondi me sentando ao lado dela.

— Tenho medo que o papai descubra e te mande para longe — disse nervosa.

— Isso não vai acontecer — falei, beijando as mãos dela. — Se você me ajudar está noite vai dar tudo certo.

— Você promete se cuidar? — perguntou chorosa.

— Prometo.

— Promete um dia vir me ver e ligar toda semana?

— Prometo, Virgínia — falei. — Quando tudo se acalmar por aqui vou voltar para visitar.

— Vou pensar em você todos os dias — disse ela.

— E como vou me esquecer da minha melhor amiga — disse eu docemente.

Virgínia continuou no meu quarto, eu sabia que ela queria aproveitar o máximo de tempo ao meu lado, pois o dia seguinte seria completamente diferente.

Me sentei em uma cadeira próxima a janela e fiquei olhando para as casas lá fora. Foi então que Piper começou a ficar pensativa e eu comecei a receber as respostas para o que estava acontecendo e a angustiada.

Piper era uma garota de alta classe na cidade, seu pai era um viúvo muito rico e importante. E também era muito superprotetor com as filhas, principalmente com Piper.

Naquele verão Piper havia se apaixonado pelo surfista mais bonito da região. E seu amor por Kannon a fazia sentir coragem para tudo, até mesmo confrontar seu pai. Que para a surpresa de ninguém não aceitou que a filha, herdeira de um império, se relacionasse com um simples surfista.

Porém Piper não ligava para tudo aquilo, sentia que seu amor por Kannon era tão forte quanto sua determinação. E que para ser feliz de verdade ela não precisava de nenhuma fortuna. Só o amor de Kannon bastava.

Ela sabia que o amor que sentia por ele era correspondido uma mesma intensidade. Kannon fazia tudo por ela, até mesmo ter confrontado seu pai duas vezes.

Mas era impossível convencer o pai de Piper que o amor deles, embora proibido, não seria algo que deixaria se abalar por um simples não.

O pai de Piper estava completamente enganado sobre Kannon, ele não estava apenas brincando com uma patricinha. Era amor, amor de verdade. E o velho não entendia isso.

Não entendia à ponto de apelar para ameaças de morte para separar a filha do surfista.

O que fez os jovens entrarem em desespero. Piper não conseguiria viver longe de Kannon e o mesmo acontecia com o jovem surfista. E por isso, eles decidiram por um fim em tudo aquilo. Eles tinham um plano para que pudessem ser felizes longe de todo aquele caos.

Naquela noite, eles fugiram juntos para o litoral leste. E lá conseguiriam ser felizes sem o julgamento de ninguém.

Piper estava na janela esperando Kannon aparecer para levá-la. E aos poucos a garota voltou a comandar a consciência.

Virgínia não estava mais no quarto. E eu estava sozinha. Minhas coisas estavam na mochila nas minhas costas, e o que eu mais levava eram as minhas joias, que me garantiram uma boa vida com Kannon até que pudéssemos nos estabilizar na nova cidade.

Meu coração estava imerso em felicidade. Estava eufórica e ansiosa para a chegada dele. Tudo seria diferente, eu estava cheia de esperanças.

Já estava começando a me sentir sonolenta quando ouvi um barulho na janela. Me levantei e olhei para fora.

Era uma noite quente de lua cheia e lá fora, no gramado da minha casa estava um vulto que eu conhecia muito bem.

Kannon havia jogado uma pedra próximo a janela do meu quarto, aquele era o sinal que essa a hora de pôr o plano em ação. Ajustei a mochila nas costas e rumei até a janela. Quando passei a primeira perna para o lado de fora. Olhei para dentro do meu quarto e senti uma tristeza. Eu amava minha casa, amava Virgínia e meu pai, amava as lembranças da minha mãe. Mas também amava Kannon. E era ao lado dele que eu me via realmente feliz. Aquela não era a hora para fraquejar, já estava decidido. Eu iria embora com o amor da minha vida. As vezes na vida é essencial mudar. Só assim podemos descobrir quem somos de verdade — me peguei pensando nisso.

Do lado de fora havia uma escada esperando. E assim que a desci, cai nos braços de Kannon.

Sorrimos e nos beijamos apaixonadamente, seus lábios me lembraram algo que eu não sabia explicar. Eram tão familiares. Parecíamos ter sido feitos para me beijar.

Quando nos separamos, Kannon fez sinal de silêncio e pegou na minha mão. Andamos na ponta dos pés até o outro lado da rua. Onde seu carro, um Chevette, nos esperava.

Kannon abriu a porta para que eu entrasse e a fechou lentamente para não fazer barulho.

Enquanto Kannon passava pela frente do carro, notei que ele olhava atentamente na direção da minha casa. Parecia preocupado que alguém descobrisse minha fuga e eu tentava manter a calma.

— Está pronta? — perguntou, depois de ter entrado no carro.

Kannon estava com as mãos no volante e sorria para mim. Seus olhos brilhavam e eu sentia um nervosismo estranho.

— Eu vou até o fim do mundo com você — afirmei colocando minha mão sobre a dele.

Kannon pegou minha mão e a beijou.

— Eu amo você, jamais se esqueça disso — disse ele, olhando em meus olhos.

— Vamos sair logo daqui — falei.

Rapidamente Kannon deu a partida no carro e em minutos estávamos bem longe da minha casa.

Quando saímos da cidade ainda era madrugada e a rodovia interestadual estava com pouco movimento. Kannon e eu não tínhamos sono devido à adrenalina. Talvez fosse a felicidade por finalmente termos liberdade para amar.

Eu ainda não conseguia acreditar que estava livre, minha vida seria totalmente diferente. Eu seria feliz com o homem que amava. Viveríamos na praia, onde poderíamos criar nossos filhos longe de qualquer maldade. Tudo seria perfeito.

Já estávamos duas horas viajando e o som da rodovia estava me deixando entediada.

Liguei o rádio e começou a tocar uma música do Elvis que Kannon e eu adorávamos. Não demorou muito para que começássemos a cantar juntos. Aquele estava sendo o momento mais feliz da minha vida. Até que...

Enquanto cantávamos, eu ouvi um som de sirene e Kannon também ouviu. Olhei para trás e havia duas viaturas nos perseguindo, e para minha surpresa o carro do meu pai também estava na rodovia.

— Eu não acredito! — exclamei. — Como ele descobriu? — disse angustiada.

— Será que não foi a sua irmã a dedo duro? — perguntou Kannon, olhando seriamente para a estrada a frente e acelerando o carro.

— Ela nunca faria isso! — argumentei. — Meu pai deve ter ido ao meu quarto, não me encontrando e na maior das hipóteses obrigado Virgínia a dizer onde eu estava.

— Pode até ser — concordou ele, virando o rosto como se fosse estalar o pescoço. Seus olhos furiosos olhavam para frente enquanto uma mão segurava o votante e a outra a marcha. — Se segura firme, meu amor. Porque se depender de mim ninguém vai nos separar. Não é tão fácil.

Senti meu corpo ser jogado para trás no banco quando o carro acelerou.

Estamos à cento e dez por hora. Toda aquela velocidade me deixava assustada. Mas nem se comparava a olhar para trás. Onde os carros de polícia e meu pai insistiam em nos seguir.

— Não acredito que ainda estão atrás de nós! — disse Kannon irritado.

— É tão difícil entender que só queremos ser felizes? — indaguei tristemente.

Kannon tirou uma das mãos do volante e colocou sobre a minha perna.

— Nós seremos felizes — afirmou ele, desviando o olhar da estrada por um segundo.

Estávamos passando por uma estrada à beira mar. Kannon voltou a acelerar e eu comecei a ver o sol nascer. Por um momento senti que tudo daria certo, tinha que dar. Meu pai deveria entender que eu já havia escolhido meu destino. E caso ele não entendesse, torcia que Kannon os despistasse logo.

Quando me dei conta da realidade novamente, estamos passando ainda em alta velocidade por uma estrada encostada em uma montanha.

Olhei para trás e vi que as viaturas estavam cada vez mais próximas.

— Não tem como ir mais rápido? — perguntei nervosa.

— Eu posso tentar — disse ele.

Assenti e trocamos olhares. Senti falta de ar e um nervosismo sem igual.

Kannon pisou no acelerador, mas à frente havia algo que não contávamos. Uma curva.

Não houve tentativa, não havia tempo. Os segundos passaram lentamente para mim. Kannon estava assustado e eu também. Meu peito doía e ardia em desespero. Não por mim e sim por ele. Não podemos evitar. O carro seguiu seu caminho, Kannon tentou virar o volante, mas foi uma tentativa inútil. O velho Chevette foi arremessado contra o acostamento e caímos no mar.

A água foi entrando devagar. Olhei para o lado preocupada com Kannon. Foi quando o vi deitado sobre o volante, com a testa sangrando.

— Kannon! Kannon! Meu amor, por favor, me responda! — gritei chorando desesperada enquanto sacudia o corpo dele.

— Piper — respondeu ele com a voz baixa, finalmente abrindo os olhos. — Eles foram embora?

Comecei a chorar, Kannon não estava bem. Enquanto ele falava sangue saia da sua boca. E cada vez que o carro onde estávamos afundava mais e eu sentia que a água já cobria metade do meu corpo. Não havia dúvidas, aquele era o nosso fim.

— Sim, meu amor. Eles foram embora — respondi chorando. — Agora podemos ficar juntos para sempre.

Kannon ainda estava com o rosto encostado no volante, sem dúvidas se sentia fraco demais para levantar a cabeça. Sangue ainda saia da sua boca e sujava seus cabelos loiros. A única coisa que continuava a mesma era o seu olhar. Foi onde me prendi.

A água foi subindo mais e mais. Já estava começando a sentir falta de ar. Não tínhamos muito tempo de vida. Então me agarrei no que realmente me importava.

Kannon estava muito fraco e eu também possuía hematomas por meu corpo. Mesmo assim, me abracei nele e comecei a fazer carinho em seu rosto. Já que iríamos morrer, queria que segundos antes estaríamos juntos de corpo e alma.

— Eu te amo — disse ele com a voz fraca.

Seu rosto estava a sentimentos do meu e eu só conseguia olhar em seus olhos.

— Eu te amo com todas as minhas forças — falei tocando seu rosto.

E então, senti frio, a água subiu em uma velocidade maior do que antes e logo nos cobriu por inteiro. Me agarrei ainda mais em Kannon que já estava inconsciente.

Senti um desespero de início, que se deve a falta de ar e ver meu amado já morto em meus braços. Mas logo isso passou, tudo ficou silencioso e calmo. Senti meu corpo mais leve e relaxado até que lentamente meu olhos se fecharam.

Paloma... Paloma...

Ouvi alguém me chamando, rompendo assim o silêncio que me encontrava. Logo reconheci a voz de Vitória e ouvi uns estalos.

Abri os olhos e me vi novamente na sala de casa. Olhei para o teto e fiquei aliviada por não estar mais naquele carro, sentido toda aquela angústia. Respirei fundo e fiquei mais tranquila.

— Paloma? Você está bem? — perguntou Vitória.

Me sentei no sofá e passei a mão nos olhos. Eu ainda estava muito abalada.

— Como foi? — perguntou ela.

— O quê?

— Você conseguiu ver sua vida passada? — perguntou sorridente e ao mesmo tempo preocupada.

— Sim, eu acho. Foi muito louco. Parece que realmente eu vivi tudo aquilo. Mesmo que ela estivesse no controle, eu só estava lá para assistir — disse seriamente.

— Eu nem acredito que funcionou! — exclamou Vitória, pulando do sofá e dançando pela sala.

— Pois é, você conseguiu. Eu realmente vi minha vida passada — falei ainda séria.

— E como foi? — perguntou ela, sentando-se ao meu lado.

— Foi incrível ver tudo aquilo. Sem dúvidas é uma experiência incrível... Mas foi muito triste, coitados dos dois só queriam ficar juntos.

— Eu imaginei. Te chamei de volta porque você parecia inquieta — admitiu ela.

— Realmente, a Piper e o Kannon tiveram um final bem trágico. E morreram muito cedo — falei tristemente.

— Quero que você me conte tudo — disse eufórica.

— Eu acho que você estava lá. Quando eu olhei nos olhos da irmã da Piper eu vi seu rosto por alguns segundos na menina.

— Isso é normal, amiga — disse sorridente. — Os olhos são como um espelho da alma e você fez certo. Na regressão está é a forma de reconhecer as pessoas da sua vida atual nas vidas passadas.

— Eu vi outra pessoa também — disse um pouco envergonhada.

— Quem?

— Kannon, o namorado da Piper.

— E quem ele é nesta reencarnação?

— Quando olhei nos olhos do Kannon, uma coisa estranha aconteceu. Foi como se por um segundo ele fosse a Kety. Os olhos e a maneira de olhar eram exatamente iguais aos dela.

— Agora faz sentido você ter ficado tão confusa depois de ter a beijado. Porque se Kety foi uma pessoa que você amou muito na sua vida passada é normal você sentir algo por ela agora — argumentou ela.

— Isso não tem nada a ver — disse seriamente. — Kety e eu não temos nada a ver com Kannon e Piper.

— Suas almas são as mesmas — observou ela.

— Mas as vidas não. E além do mais, eu vi e senti todo o sofrimento da Piper e tudo por amar o surfista bonitão. E se for esse o destino? E se eu ficasse com a Kety e nós também tivéssemos que viver um romance proibido? Isso não me parece um sonho de consumo — reclamei.

— Você pode me contar tudo o que você viu? — perguntou Vitória, se levantando e pegando seu caderno e caneta novamente.

— Claro — respondi.

— Eu nem acredito que deu certo! — disse eufórica. — Não vejo a hora de contar tudo para a minha mãe.

— Tenho certeza que ela vai ficar orgulhosa — falei.

— E você gostou? Vai querer fazer mais vezes? — perguntou ela.

— Não sei — respondi sinceramente. — Fizemos isso para eu tentar entender porque me sinto estranha perto de Kety. E tudo que ganhei foi saber que na vida passada ela era um lindo surfista que eu amava mais do que tudo. Acho que isso não me ajudou muito. Na verdade, só me deixou mais confusa.

— Já pensou na hipótese que você esteja apaixonada pela Kety? — perguntou seriamente. — Isso não é um problema, Paloma. A gente não escolhe por quem se apaixona. Você acha que se a Piper pudesse escolher um amor normal ou um proibido, ela teria escolhido o proibido. Claro que não! Nós sempre buscamos facilidade na vida. E as escolhas relacionadas ao amor nem sempre são tão simples.

— Eu não estou apaixonada pela Kety — afirmei.

— Já te falei que isso não é um problema. Ainda mais no tempo em que vivemos, Paloma. Se você gosta dela, e daí? Isso só interessa a vocês duas.

— Eu não sei o que sinto por ela. Estou confusa — resmunguei.

— Você só está tentando mentir para você mesma. É diferente — disse sorrindo convencida. — Sabe o que eu acho que pode te ajudar?

— O quê?

— Outra sessão de regressão. Talvez outra versão de você possa te ajudar melhor do que a Piper. E aliás, não vou embora daqui sem saber que final trágico é este — disse Vitória.

— Está bem. — Me dei por vencida. — Mas essa sessão pode ser outro dia, já estou cansada disso por hoje.

— Claro, agora não me enrole. Conta tudo, amiga — disse se deitando no sofá, pendendo toda a formalidade de antes.

Passamos o restante da tarde falando sobre minha experiência como Piper. E Vitória como de costume, ficou impressionada e orgulhosa de si mesma.

Quando Vitória foi embora, me tranquei no quarto e comecei a pesquisar no Google algo sobre o acidente que havia presenciado. Precisava saber se aquilo não foi apenas uma ilusão da hipótese. Comecei a chorar quando finalmente encontrei a reportagem que falava do acidente em 1974, onde dois jovens morreram em um acidente de carro na madrugada de vinte e três de fevereiro, quando passaram o acostamento de uma rodovia na Califórnia. Fiquei chocada quando li os nomes: Piper e Kannon.

Mais populares

Comments

Jérsica Santos

Jérsica Santos

nossa /Sob//Sob//Sob/ que esse capítulo foi lindo.
uma história de amor trágico.

2024-04-30

4

Maria Do Carmo Andrade

Maria Do Carmo Andrade

eu estou êxtase com essa história, eu amo história desse gênero parabéns autora

2024-05-01

1

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!