Capítulo 3 O Sonho

Na noite de sexta-feira para sábado, tive novamente um sonho vívido e igualmente estranho.

Eu estava em uma pequena casa escura, as paredes pareciam ser de madeira e eu sentia que tinha que me esconder de algo que estivesse do lado de fora. Olhei por uma pequena janela e uma linda floresta cercava a cabana.

— Acho melhor sairmos logo daqui. — Ouvi uma voz, que parecia ser masculina pronunciar estas palavras.

— Você pode ter razão — Me ouvi pronunciando palavras que nem eu mesma sabia porquê.

— Eu não suportaria perder você — disse ele.

Então desviei meu olhar da janela e olhei para o homem que estava sentado ao meu lado.

Ele estava vestindo pelo que parecia ser uma farda de soldado, mas não era como os de hoje, era como os soldados antigos. Porém, sua farda estava suja e rasgada. Mesmo assim, ele sorria. Eu não conseguia ver muito bem seu rosto, mas via que era bonito. Seus cabelos castanhos e barba estavam por fazer e sua expressão estava cansada. Mas mesmo assim ele sorria. Senti um imenso aperto no meu peito, não era dor, era um sentimento forte. Foi quando eu falei involuntariamente, como se não fosse eu mesma naquele momento.

— Eu amo você.

Ele sorriu mais uma vez e eu acordei em súbito.

Acordei confusa, pois normalmente eu sequer me lembrava dos meus sonhos quando acordava porque sabia que tantas cenas confusas e sem sentido nem eram dignas de serem levadas a sério. Para ser sincera, somente alguns sonhos eu era capaz de recordar e estes em questão eram vívidos e normalmente me faziam pensar o dia todo, assim como o que havia acabado de ter.

Era sábado de manhã, por volta das 7:16, eu poderia estar dormindo, mas não. Eu queria saber mais daquele sonho, lamentei ter acordado e não consegui saber o que aconteceu com o homem que eu disse que amava. Sabia que dormir novamente não resolveria o problema e rolar na cama estava me deixando mal humorada.

Então peguei o celular, e vi que Vitória havia respondido as mensagens que havia mandando sexta-feira à tarde, já que pela manhã ela não havia me respondido.

Ela me disse que não tinha me respondido, porque estava no consultório com a mãe e que desliga os dados do celular quando está lá.

Pelo visto, Vitória gostava mesmo do trabalho de sua mãe.

Pensei em falar que havia passado o recreio com Rafael, mas pensei que seria algo desnecessário, que poderia causar um pouco de ciúmes e desconfiança na única amiga que tinha. Se até mesmo uma garota que eu mal conhecia ficou enciumada, imagina Vitória.

Já que não queria falar sobre algo que poderia comprometer nossa amizade, contei sobre meu sonho.

Não demorou muito para Vitória me responder. O que me surpreendeu, ela estar acordada naquela hora da manhã em um sábado.

“Paloma do céu! Isso só pode ser uma lembrança de outra vida!”

Lá vem ela com essa de novo. Pensei.

“Como assim?” Enviei.

“Deixa que eu te conto mais tarde, quando eu chegar na sua casa. Você não esqueceu, né?”

Ainda era tão cedo que eu realmente havia me esquecido que sábado ela viria me visitar.

“Claro que não esqueci. Que horas você chega aqui?”

“As três horas.”

“Vou ficar esperando. Beijos.” Enviei.

Quando me dei conta que não havia contado sobre a visita de Vitória para a minha mãe. Não que eu tivesse medo de receber um não. Muito pelo contrário, minha mãe ficaria feliz por saber que eu havia feito uma amiga. Por outro lado, minha casa estava uma bagunça e minha mãe era muito neurótica em relação ao que os outros pensavam.

— Mãe. — Cheguei na cozinha e a encontrei na mesa, bebendo café tranquilamente enquanto olhava pela janela.

— O que foi? — perguntou.

— Eu esqueci de te contar — hesitei. — Sabe aquela minha amiga que mora aqui perto, a Vitória, lembra?

— O que tem?

— Nós combinamos dela vir aqui... hoje. Tudo bem?

Pensei que levaria uma bronca. Porém, o contrário aconteceu. Minha mãe sorriu.

— Claro, vai ser um prazer recebê-la aqui em casa. E que bom que você está se enturmando, filha.

— Nem me fale. — Sorri discretamente. — Até mesmo eu me surpreendi.

— Isso é um bom sinal — comentou, bebendo um gole de café. — Estamos no lugar certo agora.

Me sentei ao lado da minha mãe e tomamos café juntas. Um tempo depois Amanda acordou. Apareceu na cozinha toda descabelada e sonolenta.

— Estou com fome — disse Amanda, passando a mão nos olhos.

— E quando não está? — falei.

Amanda me mostrou a língua e foi para o banheiro. Minha mãe sorriu e me mandou fazer uma torrada para a nanica esfomeada.

Depois do almoço, lavei a louça o mais rápido possível. Ainda eram uma e meia, mas mesmo assim me sentei na varanda e fiquei esperando por Vitória.

Fiquei lendo o Morro dos Ventos Uivantes enquanto ela não chegava. Enquanto lia percebi que Kety estava certa, O decorrer da história dava um pouco de raiva, pois os personagens eram rudes e mau educados, mas mesmo assim eu torcia que eles ficassem juntos, pois eles eram iguais ambos tinham a personalidade igualmente forte e só sabiam brigar. Na verdade, só a narradora me parecia ser uma pessoa sensata. O restante me dava nos nervos. Mas eu não podia negar, era um livro muito bom.

Apenas olhar e folhear aquele livro, me lembrava de Kety. Do modo como tudo parou quando a vi pela primeira vez, esqueci como era respirar quando ela me surpreendeu na biblioteca. “Ela é lésbica, sabia?” Lembrei das palavras de Rafael. O que não me fez pensar em me afastar dela, muito pelo contrário, Kety se mostrou tão legal quando nos conhecemos e na biblioteca disse que me cobraria a leitura do livro. E então, do nada, ela não fala mais comigo. Queria apenas entender o que eu tinha feito de errado.

Na verdade, nem sabia porque estava me preocupando com aquilo. Eu mal conhecia aquela garota, a amizade dela não significava tudo para mim. Não deveria significar.

Continuei lendo por mais um tempo, até que ouvi um som vindo do portão de casa. Levantei meus olhos do livro e vi Vitória de pé e ao seu lado a bicicleta que havia acabado de descer.

Corri para abrir o portão para ela e minha mãe saiu para cumprimenta-la.

— Oi, amiga. Temos muito o que conversar — disse Vitória, empurrando a bicicleta para dentro.

— Eu sei — concordei enquanto fechava o portão.

— Oi, então você é a Vitória? — disse minha mãe indo cumprimenta-la com um beijo no rosto. — Que bonita que você é.

— Obrigada — disse Vitória.

— Você quer um café? — ofereceu Marta.

— Claro — aceitou Vitória.

Marta se retirou para a cozinha para preparar o café, enquanto Vitória e eu nos sentamos nas cadeiras da varanda.

— E então, como foi passar um dia sem mim? — indagou Vitória, ajeitando-se na cadeira.

— Foi estranho — admiti. — Só não fiquei sozinha porque Rafael veio até mim. Perguntando sobre você, claro.

— Ele me ama, só não admite — disse sorrindo satisfeita.

— Eu percebi. — Gargalhei.

Minha mãe chegou e nos entregou as xícaras de café.

— Podem ficar à vontade, vou ficar lá dentro — disse Marta, sorrindo gentilmente e se retirou.

— Ela vai ficar ouvindo nossa conversa — falei em voz baixa.

— Também pensei nisso — disse Vitória.

— O que você acha de dar uma volta no sítio depois de tomarmos o café? — sugeri.

— Pode ser, aqui me parece ser bem bonito — suspirou ela.

Foi quando me lembrei que seria a minha primeira volta pelas terras do sítio. Amanda adorava fugir para lá, e dizia que era muito bonito. Então seria uma surpresa para nós duas.

Bebemos o café e saímos andando. Não avisei Marta, pois tinha certeza que ela havia ouvido tudo.

Vitória e eu nos surpreendemos com a vista. Amanda tinha razão, aquele lugar era lindo. A grama possuía um tom verde vívido, que fazia contraste com pequenas flores silvestres. O campo aberto era emoldurado por árvores na maioria frutíferas ou de largos galhos. Imaginei os antigos moradores, a tia Lúcia na infância, correndo por aquele campo, com seus cabelos castanhos esvoaçantes como a barra do seu vestido. Com certeza amava aquele lugar, como eu amaria.

— Que lugar lindo! — disse Vitória. — Essa grama é daquelas boas para sentar, não dá coceira. Por que não me disse que morava no paraíso, amiga?

Simplesmente dei de ombros e me sentei na grama. Vitória estava certa, era como sentar em um tapete. Era uma sensação muito boa, talvez fosse o ar puro e a brisa fresca.

Vitória se sentou na minha frente e sorriu.

— Então — disse finalmente. — Me conte mais sobre a sexta-feira sem Vitória.

— Você quer saber sobre a aula ou sobre o Rafael?

— Quero saber sobre você. Sei lá, vejo algo diferente em seus olhos.

— É que não estou usando rímel — afirmei.

— Não é isso, boba — disse aos risos. — Você está diferente, é como se estivesse no mundo da lua. Tem a ver com alguém.

Pensei que ela pudesse estar insinuando que eu sentia algo por Rafael, ele era lindo, isso eu não podia negar. Mas depois que Vitória admitiu que ele era praticamente o amor da sua vida, passei a enxergá-lo de uma maneira diferente, sabia que entre nós só existiria amizade e afinal, ele me tratava só como uma amiga.

— A única coisa que me deixou pensativa foi o meu sonho de hoje, e a única pessoa foi a Kety.

— Ah, você a conheceu — disse Vitória, parecendo aliviada. — Ela falou com você?

— Sim.

— Que estranho, normalmente ela não fala com as pessoas, principalmente as novatas. Ela vive em seu círculo recluso de amigos.

— É, eu achei isso estranho — comentei. — Quando ela falou comigo pela primeira vez foi tão simpática, chegou na sala, sorriu, foi super simpática. Depois no recreio nos encontramos na biblioteca e a gente conversou sobre O Morro dos Ventos Uivantes. E então, quando voltamos para a sala, do nada ela não falou mais comigo, ficou com a cara fechada. Não sei o que aconteceu.

— Você estava com o Rafael, né?

— Sim, mas o que isso tem a ver?

— A Ketlyn odeia ele. Digamos que seja uma briga antiga. Na quinta série, nós estudávamos todos juntos e o Rafael era louco por ela. Eu a odiava por isso, ela era a menina mais bonita e eu uma magricela descabelada. Enfim, Rafael vivia dando em cima dela, e a Kety só o ignorava. Até que chegou um dia que ele foi até a mesa dela e a pediu em namoro. E digamos que ela falou algo que ninguém esperava. — Vitória arregalou os olhos.

— Eu sei, o Rafael me falou sobre isso. Disse também que ficou bem mal. Só não imaginei que vocês fossem crianças na época.

— Ele te contou o que fez depois?

— Não.

— Rafael é a pessoa mais vingativa que eu conheço. Acho que é o único defeito dele.

— Meu Deus! O que ele fez?

— Uma coisa horrível — disse ela seriamente. — Eu não gostava dela, mas mesmo assim achei muito cruel. Ele fez questão de contar para cada menino da escola que a Kety gostava de meninas. Então em um dia todos eles se juntaram e foram para cima dela no recreio. Foi horrível, eles a humilharam na frente de todo mundo. Não gosto nem de me lembrar. Quando descobri que foi tudo culpa do Rafael, passei o resto do ano sem falar com ele.

— Nossa! Isso deve ter sido bem traumatizante, eu diria — falei desconcertada.

Fiquei imaginando a pobre Kety, uma linda menina, que por ser diferente teve que passar por aquilo. Tudo porque disse um não para um garoto idiota.

— Kety mudou muito depois daquele dia, coitadinha. Nós até ficamos amigas na época, porque eu fiquei do lado dela. Eu também já sofri muito preconceito e meio que eu senti a dor dela na época. Por isso hoje em dia nós ainda conversamos às vezes.

— Vocês duas são mulheres fortes, disso não tenho dúvidas.

— A dor nos torna mais fortes — Vitória afirmou.

— Então ela parou de falar comigo por que me viu com o Rafael? — pensei em voz alta.

— Sobre isso pode ficar tranquila. Eu falo com ela. Se ela fala comigo que vive pendurada no pescoço dele, Kety fala com você também.

— Não sei... tenho vergonha — admiti.

— Por que? Por acaso você está gostando dela? — perguntou sorrindo.

— Não — respondi envergonhada e engoli em seco. — Só não quero que haja um mau entendido.

— Hum, ok — ironizou. — Mas se você também gostar de meninas pode me contar. De verdade, tudo bem, isso não é algo que deva se envergonhar. Nós somos amigas, sempre vou ficar do seu lado.

— Eu não sou lésbica — falei seriamente.

— Tá bom, não está mais aqui quem falou. — Vitória ergueu seus braços como se estivesse se rendendo e em seguida sorriu.

— Mas fico feliz por ser tão legal comigo — falei.

— Obrigada. — Vitória disse jogando seus cabelos para trás como se eu tivesse os elogiado. — Agora conte sobre seu sonho. Vamos ver como posso ajudar.

— Bem, ele foi esquisito. Foi tão real que nem parecia um sonho.

— Porque não era um sonho, era uma lembrança.

— Sei lá, não acredito muito nessas coisas. Foi um sonho lúcido, isso é normal. Eu acho.

— Era um soldado, certo? — perguntou pensativa. — Você conseguiu ver o rosto dele?

— Não. Eu me sentia nervosa, então não olhava fixamente para ele. Parecia que estávamos nos escondendo de algo.

— É uma pena que você não tenha olhado nos olhos, pois isso pode revelar muito. Mas enfim, isso é algo que pode ser mais bem resolvido com uma sessão de regressão. Assim você poderia ver mais daquela vida e de outras.

— Você está querendo mesmo me usar de cobaia, né?

— Ah, por favor. Você não vai se arrepender — implorou ela.

— Não é melhor sua mãe fazer?

— Se você tiver trezentos reais para pagar por hora? — disse fazendo um biquinho enquanto olhava para as unhas pintadas de vermelho.

— Ok, já que você insiste, eu aceito. Porém não agora. Eu acabei de chegar na cidade, quero me entender e adaptar aqui. E sinto que não estou pronta para conhecer minhas vidas passadas. Ainda não — admiti.

— Como você quiser — disse Vitória, um pouco decepcionada, mas ainda sorrindo. — Vai por mim, será uma das melhores experiências da sua vida.

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Comments

Maria Do Carmo Andrade

Maria Do Carmo Andrade

a história e bem cativante

2024-04-30

2

Celinne Luize

Celinne Luize

tô amando🙏

2024-04-29

1

Ana Faneco

Ana Faneco

já gostando 😌

2024-04-28

1

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