Capítulo 19 Fim do Medo

A notícia da nossa manifestação finalmente haviam se espalhando por toda a escola. Muitas pessoas não sabiam quais foram as causas da morte de Samuel no ano anterior e assim que souberam a verdade, ficaram tão revoltadas quanto eu.

Logo começaram a se reunir cada vez mais alunos no nosso Qg atrás das árvores, após a semana toda de conversa, na sexta-feira Rafael contou cinquenta alunos na reunião, sendo que muitos eram apenas representantes de suas turmas. Todos traziam ideias e mostravam sua insatisfação com a vice diretora e queriam justiça.

— Ela é um ser sem coração, que deve ter se esquecido como é ser gente. Minha amiga ficou doente uma vez, vomitou e a vice não autorizou que ela fosse para casa pois segundo ela, minha amiga queria ir em um festival na cidade vizinha — disse uma garota bastante revoltada.

Não sabia, mas tinha quase certeza que aquela amiga era ela mesma. Mas apenas ouvi e a entendi. Aquela mulher era mesmo muito invencível. E assim como a garota, muitos outros estavam revoltados.

— Eu tenho dezoito anos, posso sair quando quiser. Ainda mais em emergências. Minha mãe é uma pessoa doente — reclamou um garoto do terceiro ano.

E assim foi, cada um tinha uma reclamação diferente. Mas todos aceitaram lutar pela mesma causa, a LGBT.

— E o que o movimento vai exigir da escola além de respeito e igualdade aos LGBT? — perguntou uma garota ruiva no fundo.

E Kety respondeu.

— Nós queremos que o que aconteceu com o Samuca, comigo e com a Paloma e com muitos outros alunos não aconteça nunca mais nesta escola. Por isso, vamos encher tanto a paciência da direção à ponto da vice diretora ser afastada — disse Kety, olhando para todos.

Todos bateram palmas e gritaram. Kety sorriu para mim, e me puxou para mais perto. Eu estava orgulhosa do que estávamos fazendo.

— E quando vamos começar a espalhar cartazes por tudo? — perguntou um garoto na frente.

— Segunda-feira — respondeu Kety.

— Vamos todos trazer o material de casa e quando chegarmos pela manhã colaremos nas paredes. E no recreio vamos fazer barulho. Chega de silêncio! — gritei.

E todos gritaram comigo.

Até que Vitória chegou correndo agitando seus braços.

— A demônia está vindo aí! Todo mundo disfarça! — implorou Vitória que estava na função de vigiar a reunião.

No mesmo instante alguns correram mata a dentro para dar a volta no arvoredo e outros se sentaram na grama para fingir que estavam de bobeira naquela manhã ensolarada. Um garoto que sempre andava com um violão começou a tocar e cantar. E quando Vitória espiou e fez um sinal indicando que a bruxa estava perto, me sentei no chão ao lado de Kety e começamos a cantar também uma música do Charlie Brown Jr.

— O que está acontecendo aqui? — perguntou a vice diretora, olhando para nós com sua cara carrancuda como se fôssemos marginais.

— Só estamos cantando — respondeu Kety, de forma debochada.

— Hum — resmungou ela. — Sem safadeza, em. Já está na hora de cortar essas árvores — disse seriamente e se retirou.

— Que mulher mais nojenta — comentou Felipe.

— Acha que manda na escola — acrescentou Eduarda.

— Os dias dela estão contados — disse Leandro escorando-se em uma árvore.

— Espero mesmo que isso de certo e não se torne um problema para todos — disse Felipe.

— Não tem como ela expulsar a escola inteira — afirmou Eduarda.

— Mas ela pode ir atrás dos responsáveis — retorquiu Felipe.

— Ela que tente — disse Kety seriamente. — Não vou abaixar minha cabeça para pessoas como ela e muito menos desistir do que acredito.

Kety disse aquelas palavras com tanta convicção, que todos ficamos em silêncio e olhamos para o garoto que tocava violão. E ainda sentadas no chão, Kety pegou em minha mão e a apertou. De alguma forma eu sabia que os motivos da coragem dela eram os mesmos que os meus.

Sábado de manhã sai de casa de bicicleta e fui para o centro da cidade atrás de uma papelaria. Falei para Marta que eu precisava de material para um trabalho de escola, o que me livrou de muitas perguntas chatas. Bastava eu chegar com tinta e cartolina em casa e estava tudo bem.

Quando finalmente cheguei na papelaria, me deparei com muitos alunos da minha escola. Estavam todos comprando material para seus cartazes assim como eu.

Quando me viram todos os dez que eu pude contar vieram me cumprimentar e falar que estavam animados para a Revolução Silenciosa.

— Vai ser um dia memorável. Não vejo a hora — disse uma menina baixinha. — Vou fazer um cartas bem bonito apoiando a causa LGBT a justiça pelo Samuca. Sabe — continuou ela. — Ele era primo do meu namorado e a gente se dava muito bem. Quando ele morreu, eu não entendi muito bem o que aconteceu. Por isso eu acho tão bonito o que você e a sua namorada estão fazendo. Mostrando a verdade para todos.

Fiquei sem palavras e ela ficou me olhando. Era melhor eu dizer algo.

— Muito obrigada pelo apoio — disse docemente. — Tenho certeza que com o que vamos fazer, muitas verdades ainda vão surgir.

— Isso sim. Vai ser um movimento lindo — disse animada. — Bem, tenho que ir para casa agora. Foi um prazer te conhecer.

Apenas sorri para ela, que pegou suas sacolas no caixa e se retirou da loja. Eu não sabia o nome dela, nem de que turma pertencia. Mas de alguma forma senti que a causa estava unindo as pessoas. E assim que mais pessoas vieram falar comigo dentro daquela papelaria, mas me convenci disso.

Cheguei em casa e deixei o material no meu quarto. Depois do almoço, me tranquei no quarto e comecei minha arte. Passei a tarde toda pintando arco íris e escrevendo frases como: Somos todos iguais independente do gênero!, Só querermos respeito!, e Justiça por Samuel!

Quando terminei me senti a pior e mais sem criatividade artista do mundo. Não sabia o que era pior, minha pintura ou minhas frases sem criatividade.

Eu sabia que meninas como a que eu encontrei na papelaria dariam o melhor de sí. Por isso não me preocupei tanto com a beleza do meus cartaz, pois eles serviriam.

Sábado à noite passei horas conversando com o pessoal no grupo de Whatsapp que Kety havia feito para a Revolução Silenciosa. E assim, planejamos mais algumas coisas e as pessoas ficaram me perguntando sobre a qualidade de seus cartazes que sem dúvida, estavam melhores do que os meus.

Domingo consegui fugir de casa, minha mãe ainda não estava muito feliz em saber que eu estava namorando uma garota, mas ela percebeu que depois de muito tempo finalmente eu estava feliz. O divórcio e as inúmeras mudanças não me fizeram bem e minha mãe sabia disso. Eu sei que ela me amava, e por isso estava permitindo que eu fosse ver Kety. Mesmo que ela torcesse o lábio, ela sabia que era o melhor para mim.

Passei a tarde de domingo com Kety na casa do pai dela. Comemos pizza como sempre e depois conversamos com seu pai sobre o que faríamos na escola. Fiquei surpresa em ver como ele apoiava Kety.

Aquela segunda-feira tinha tudo para ser mais um dia normal de aula. Porém, era óbvio que não seria.

Assim que cheguei na escola, Vitória correu até mim, me pegou pela mão e corremos para dentro.

Fiquei surpresa em ver como as pessoas estavam empenhadas na causa, eram pouco os alunos que não estavam colando cartazes ou falando sobre o assunto. Ainda era muito cedo e poucos professores já estavam no colégio e esses pareciam não se importar com o que estava acontecendo.

Assim que me viram, muitas pessoas vieram falar comigo sobre o plano.

— Vocês sabem — falei. — Silêncio absoluto.

— Olha só quem chegou! — gritou Kety descendo as escadas e andando até mim.

Quando ela se aproximou, me abraçou e me beijou na frente de todos. Não havia motivos para sentir vergonha, não há o que se envergonhar em amar.

— Todos sabem o que fazer? — Kety perguntou para o pessoal.

— Sim — responderam em uníssono.

— Beleza! E a propósito, esses cartazes ficaram mais lindos do que eu imaginei, não é, amor? — perguntou fascinada.

— Ficam lindos — respondi.

— Então, gente. Logo a bruxa está aí. Vamos todos aos seus postos.

Os grupos assentiram e começaram a se sentar no chão do saguão da escola e ergueram alguns cartazes.

— Já vai começar? — Eduarda entrou correndo dentro da escola, sua respiração estava ofegante e sua testa suada.

— Sim, amiga. Senta do nosso lado — disse Kety, que ainda segurava minha mão.

— E onde está a Vitória e os meninos? — perguntei, quando nos sentamos perto do portão do prédio.

Olhei para trás e a escola toda estava como nós.

— Estão vindo — respondeu Eduarda. — O Felipe esqueceu os cartazes em casa e eles foram correndo buscar.

— Tinha que ser — suspirou Kety.

E quando ela revirava os olhos eles entraram correndo e se sentaram ao nosso lado.

— Até que enfim! — exclamou Kety, impaciente.

— Rafael e eu tivemos que ir encontrar os meninos no caminho — explicou Vitória.

— Pelo menos todos chegaram antes da bruxa — comentei.

— Pelo menos — disse Kety seriamente, olhando para os portões da escola. Sentia sua tenção, como uma leoa ela esperava sua presa se aproximar.

Foi então que um carro chegou, estacionou e passos de salto alto ecoaram do lado de fora da escola. Todos estávamos em silêncio e os professores que já haviam chegado estavam nos olhando para descobrir o motivo de tudo aquilo.

— O que está acontecendo aqui? Já vai dar o sinal, todos paras as salas de aula! — gritou a vice diretora, vestida de preto, olhando para todos como se fosse superior.

Ficamos em silêncio e sentados no chão, esse era o nosso plano.

— Eles estão fazendo um espécie de greve — disse a professora de artes, tentando acalmar a bruxa.

— Eles não podem fazer greve — rebateu ela. — Todos para as salas! Agora! — gritou ela.

— Você não está curiosa para saber o motivo deles estarem assim? — perguntou a professora de artes.

— Não me importo — disse a vice diretora.

— De uma chance a eles. Assim todos poderão voltar para as salas logo — disse a professora, com toda a sua meiguice e depois piscou para Kety.

Ela era uma cúmplice.

— Você se lembra do Samuel? — gritou uma garota em meio a multidão, que rapidamente se levantou e voltou a se sentar no chão.

— Como posso me lembrar? Tantos de vocês têm o mesmo nome — explicou ela.

— Foi a um ano atrás — disse um garoto de pé. — Ele era como muitos de nós, jovem, cheio de planos, sonhos e paixão. Paixão essa na qual não foi bem vista nesta escola.

O garoto voltou a se sentar e ela ficou em silêncio.

— Samuel só queria amar e ser amado — disse muito emocionada, a amiga de Samuel e quando se sentou, uma garota a abraçou. — Ele sempre foi uma pessoa divertida e cheio de amigos, mas algo estava faltando em sua vida. Porém quando ele finalmente encontrou, seu amor se tornou sua ruína.

— Do que vocês estão falando? — perguntou a vice diretora, começando a ficar nervosa.

— Você não sabe? — Kety perguntou.

— Você não sabe? — Vitória repetiu.

— Você não sabe? — Eduarda continuou.

— Você não sabe?... Você não sabe?... Você não sabe? — continuaram todos os alunos, até que aquele se tornou o grito do protesto.

Que só terminou quando Kety levantou sua mão e andou até a vice diretora.

— A um ano atrás — Kety disse em voz alta. — Samuel começou a namorar com um garoto aqui na escola. Eles eram discretos em seus carinhos, diferentemente do que a gente costuma ver pela escola no horário do intervalo. Mas diferente dos outros casais, algo estava errado com eles, não estava? Os abraços deles eram ofensivos, um se sentar ao lado do outro era imoral e serem diferentes era um pecado. E pecados precisam ser sentenciados, não é mesmo?

— Onde você está querendo chegar? — perguntou ela seriamente.

— Você não sabe? Deixa eu explicar melhor então. Quando a escola procurou os pais de Samuel só pelo simples fato dele estar tendo um relacionamento com outro garoto. Quero enfatizar que eles nem se beijavam na escola. Enfim, quando a escola fez isso, acabou ocasionando algo terrível na vida daqueles garotos, os pais do Samuel o condenaram por estar se expondo daquela forma em público e o garoto não queria que eles ficassem sabendo do seu relacionamento daquela forma. E o que toda essa dor fez foi desencadear o suicídio daquele garoto. É por isso que estamos aqui hoje! — gritou ela.

E todos gritaram, só ficaram em silêncio quando Kety levantou o braço mais uma vez.

— Eu lamento pelo o que aconteceu com o garoto, mas a escola não teve culpa do que aconteceu com ele — explicou ela.

— Não teve culpa? — perguntei em voz alta. — Então por que a “escola” continua tratando as pessoas como Samuel da mesma forma preconceituosa? Todos aqui sabem que à pouco tempo a senhora chamou minha mãe e o pai de Kety na escola pelo fato de estarmos juntas, sendo que não faz o mesmo quando outros alunos namoram. Por que isso acontece só com pessoas como eu e o Samuel? O que nós fizemos de tão errado para ofender essa escola? Pois afinal, não fizemos nada que todos já não façam. Isso não é preconceito?

Ela não respondeu, apenas olhou de uma forma tenebrosa para Kety e eu e depois andou rapidamente até a sala dos professores. Quando a porta abriu os professores ficaram nos olhando quando gritamos e comemoramos. E enquanto gritávamos o sinal tocou.

A professora de Artes que eu nem sabia que era cúmplice veio falar com a gente.

— É melhor todos irem para a sala! — gritou ela. — Assim evitaram problemas.

— Já fizemos o que tínhamos que fazer! — gritou Kety.

E assim o pessoal começou a subir as escadas rumo as suas salas.

— Vocês duas, tenho que contar uma coisa — chamou a professora.

— A gente já vai — disse Vitória para mim e eu assenti.

— Vocês estão com sorte — disse a professora amavelmente. — Hoje a diretora estará na escola e toda essa bagunça que vocês fizeram vai ser o assunto entre os professores. E faz um tempo que não suportávamos a vise diretora. Tenho certeza que a diretora vai entender os a denúncia que os alunos fizeram hoje e uma providência vai ser tomada.

— Obrigada — falei.

— Vocês fizeram o certo em não se calar. Isso é admirável — disse ela. — Agora vão logo para a aula — disse brincalhona.

Enquanto subíamos as escadas, Kety digitava freneticamente no seu celular.

— O que você está fazendo? — indaguei.

— Estou falando no grupo que a Revolução Silenciosa vai ter resultados — respondeu sorrindo para mim.

— Estou orgulhosa de você — falei.

— E eu de você. Te amo — disse ela, beijando meus lábios rapidamente.

— Eu também te amo — respondi quando ela se afastou.

— Agora nada vai ficar entre nós — disse Kety sorrindo satisfeita.

Naquela manhã e até mesmo a tarde. Os professores juntamente com a diretora conversam por horas até decidir que era melhor para a escola que uma nova vice diretora fosse eleita, pois a tempos eles estavam percebendo os abusos da vice, só não tinham um bom motivo para demiti-la. A manifestação dos alunos a acusando de homofobia foi um estopim.

Foi isso o que a professora de artes nos disse no dia seguinte na aula dela.

Na escola finalmente estava tudo bem, as pessoas viam Kety e eu como heroínas. Kety já era querida por muitas pessoas, mas eu não estava muito acostumada com isso. Mas pelo menos estava tudo bem.

Já em casa... Quando cheguei dizendo para minha mãe o que havíamos feito, ela ficou muito brava comigo.

— Só o que falta você ser expulsa por uma bobagem dessa! — disse Marta. — Eu já não deixei você namorar com essa garota? Pensei que já tínhamos resolvido isso.

— Eu não poderia deixar aquela mulher continuar a tratar os gays daquela escola como se fôssemos vermes — argumentei.

— E pelo menos essa manifestação deu resultado ou eu vou ter que ir na escola semana que vem?

— Ela foi demitida — respondi.

— Menos mal. — Marta suspirou aliviada por eu não ter lhe causado problemas. — Eu te entendo, filha. Preconceito é algo que temos que denunciar.

— Aprendi isso com você — disse me sentando ao seu lado no sofá.

— Eu ouvi bem? — Amanda entrou na sala saltitante e animada como sempre.

— O que, peste? — perguntei à pegando no colo.

— Você está namorando, como uma menina?

— Sim — respondi um pouco receosa, não sabia como ela iria reagir.

— E ela é bonita? — perguntou sorrindo amavelmente.

— É linda.

— E quando vamos conhecer ela?

Olhei para Marta.

— Pode trazer ela aqui no sábado. Também quero conhece-la melhor — disse ela.

E eu sorri e abracei fortemente minha pequena.

Naquela noite dei a notícia para Kety, que ficou extremamente feliz por eu ter tido a aceitação da minha mãe.

“Sábado de manhã já vou estar aí, meu amor.” respondeu Kety.

E não foi diferente. Sábado de manhã, mais cedo do que eu imaginava. Kety apareceu com sua bicicleta no meu portão. Minha mãe e irmã a receberam muito bem, tomamos café da manhã juntas e Marta conversou tanto com Kety que eu até pensei que tinha perdido o cargo de filha. Almoçamos juntas e depois assistimos filmes a tarde toda. Até que o sol se pôs e Kety teve que ir para casa e já que estava escuro, minha mãe a deu uma carona e eu e Amanda fomos juntas. O que resultou em um convite do meu sogro para comermos pizza. Amanda implorando, Marta não teve como negar.

— Está bem, hoje vamos comer pizza!

Amanda ficou tão feliz em ver Kety, que até parecia que ela a conhecia a vida toda.

— Acho que ela gostou de mim — disse Kety com Amanda no colo.

— E quem não gosta? — falei.

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Comments

Maria Do Carmo Andrade

Maria Do Carmo Andrade

que história linda 😍

2024-05-07

1

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