Capítulo 17 O Eterno

Na noite de quarta-feira, Marta chegou em casa irritada. Ela havia perdido uma tarde de trabalho por ter ido na escola falar com a vice diretora.

— Aquela mulher disse que eu deveria te educar melhor, pois você não respeitou a escola — disse irritada na sala de casa.

— Ela é uma grande mentirosa! — falei escandalizada. — Eu beijei Kety na escola, sim. Não vou mentir. Mas não foi na frente de todos, muito menos algo depravado. Os beijos que Kety e eu trocamos não foi nada parecido com o que muita gente faz na escola e ninguém faz nada! — disse furiosa.

— Acho melhor você ficar longe dessa menina — disse ela, sentando-se no sofá.

— Não vou fazer isso porque uma mulher preconceituosa encheu sua cabeça de besteiras — falei com autoridade.

— Você vai fazer o que estou mandando — disse furiosa. — Você sempre foi uma boa garota. Nunca fui chamada na escola para resolver problemas seus. Essa garota é quem está enchendo sua cabeça de besteiras.

— Talvez essa seja quem eu sou de verdade — falei seriamente. — Estou cansada de viver para agradar aos outros. Eu nunca fui aceita em lugar algum, as pessoas sempre me olharam com desprezo e eu nunca entendi o porquê. Mas agora é diferente. Eu sou diferente, finalmente me encontrei e o amor dela me fez perceber que não tem nada de errado em ser eu mesma.

— O que você está querendo insinuar?

— Que finalmente eu me sinto feliz. Não só pela Kety, mas também pelos amigos que fiz neste fim de mundo. Finalmente não me sinto uma estranha, e Kety se tornou um pedaço de mim. Então, mãe. — Me sentei ao lado dela, peguei em suas mãos e olhei em seus olhos. — Não me faça ser infeliz novamente. Eu sei que você me ama e quer o melhor para mim e quem além de mim mesma pode julgar o que é o melhor?

— Eu te amo tanto, filha — disse emocionada. — Tudo que eu não quero é te ver sofrer.

— Kety é a minha felicidade agora. Eu escolhi isso — afirmei. — E não se preocupe com o mundo, eu sei bem como lidar com ele.

Marta assentiu enquanto lágrimas escorriam de seu rosto, ela me abraçou fortemente.

— Vou sempre apoiar a sua felicidade e te proteger — disse ela, ainda me abraçando.

— Obrigada, mãe.

— Ela disse isso mesmo? Não acredito! — disse Kety, furiosa enquanto estávamos só nós duas no recreio.

— Sim, ela encheu a cabeça da minha mãe — respondi. — Marta chegou em casa furiosa, querendo que eu rompesse com você. Mas eu convenci ela que isso não era a melhor opção.

— Então ficou tudo bem com a sua mãe?

— Pelo visto sim — respondi simplesmente.

— Bom saber que os esforços daquela vaca para nos separar não funcionaram — disse Kety, sorrindo.

— Sei lá. Eu ainda sinto que vamos continuar a sofrer com coisas assim por aqui. Se tratando dos alunos estamos tranquilas. Ninguém se mete no nosso relacionamento, já os professores...

— Não é a primeira vez que eu vejo algo assim acontecer por aqui — disse se afastando pensativa. — Ano passado eu tinha um amigo que começou a namorar aqui na escola com outro garoto. E o mesmo que a vise diretora fez para nós, fez para os dois. Ligou para os pais e arrumou guerra entre famílias. E o pior aconteceu.

— Como assim? — perguntei assustada.

— Os pais do namorado do meu amigo não sabiam que ele era gay. E digamos que ele era de uma família conservadora que fez ele sofrer muito. A ponto de se suicidar.

— Meu Deus! Que coisa horrível, Kety! — exclamei.

— Pois é — disse ela, tristemente.

— E ninguém fez nada?

— Depois que isso aconteceu todos ficamos muito abalados e sofremos em silêncio. Depois que o Samuel morreu todos ficamos muito abalados, principalmente o namorado dele que não suportou e foi morar com a tia em outra cidade. Essa semana quando a escola ligou para o meu pai, era como se tudo estivesse se repetindo desta vez comigo. Por isso fiquei com tanto medo da reação da sua mãe e da sua.

— Pode ficar tranquila que nada de mal vai acontecer com nós duas — disse a abraçando. — Nada nem ninguém vai nos separar, nunca!

— Eu sei que não, nosso amor é mais forte do que qualquer preconceito — disse Kety me abraçando fortemente.

— Saber disso me deixou ainda mais revoltada — falei.

— Me deixou também. Mas não podemos fazer nada.

— Claro que podemos — disse determinada. — O que essa mulher fez ano passado custou a vida de um menino e ninguém fez nada. Isso é um absurdo! E como se não bastasse ela continua. Isso tem que parar, já chega desta homofobia.

— Fala baixo, Paloma — pediu nervosa.

— Viu? Esse é o maior erro que cometeram ano passado. Ficaram em silêncio. Isso tem que parar.

— Eu sei — disse sem jeito. — Mas como você pensa em fazer isso.

— Ainda não sei. Mas você vai me ajudar. Você e quem não suporta mais injustiças por aqui.

Na sexta-feira, novamente estavam todos animados para ir na minha casa durante a tarde. Rafael assim como eu, estava entusiasmado para ver a reação de Kety. Já que era a primeira vez que ela veria uma sessão de regressão. Para Rafael era fácil, afinal, não era a namorada dele que ouviria uma história de amor sobre os dois em um tempo antigo. Eu só torcia que desta vez não fosse algo trágico, não queria que ela tivesse uma má impressão da regressão. Mas o verdadeiro motivo de eu estar servindo de cobaia de Vitória mais uma vez, era novamente a busca de ajuda para a vida presente. Queria buscar um exemplo que me ajudasse a enfrentar o preconceito que Kety e eu estávamos sofrendo.

Logo depois que minha mãe saiu para trabalhar, organizei tudo rapidamente e quando eu estava terminando ouvi alguém no portão de casa. Estavam todos de bicicleta.

— Oi, gente — disse abrindo o portão.

— Oi, amiga — disse Vitória entrando.

— E aí — disse Rafael.

— Oi, benzinho — disse Kety entrando por último e me beijando rapidamente.

— Não tive tempo de preparar nada — avisei. — Não quis levantar suspeitas para a dona Marta.

— Tudo bem — disse Vitória, deixando sua bicicleta ao lado da porta. — Viemos aqui mais para te ver e ajudar a sentir melhor. Sabemos que está difícil para você passar por tudo isso — disse carinhosa como sempre.

— Vitória acredita que fazer uma regressão te deixa mais calma. Como se fosse uma terapia — disse Rafael.

— E é uma terapia — afirmou ela, um pouco irritada.

— Eu só estou curiosa — disse Kety.

— E eu assustada — admiti.

— Por que? — perguntou Kety.

— Conhecer sua vida passada as vezes é bem chocante — disse Rafael. — Eu é o que diga.

— Não vamos perder tempo — sugeriu Vitória. — Tenho certeza que depois disso, Paloma vai se sentir melhor.

— Ou cheia de ideias — completei.

— Esse é o plano — disse divertida.

Entramos e nos acomodamos na sala. Me sentei no sofá de sempre e Kety ao meu lado.

— O que acontece, é tipo uma sessão espírita? Ela evoca, ou sei lá? — perguntou Kety.

Rafael e Vitória se olharam e gargalharam.

— Não, Kety. E bem mais parecido com uma sessão com um psicólogo. Aprendi com a minha mãe, lembra? — disse Vitória. — E vem sentar do meu lado, a Paloma precisa se deitar aí — chamou ela.

— Vai lá — falei empurrando as costas de Kety até ela ir se sentar ao lado de Vitória.

— E se for uma vida triste e ela começar a chorar ou gritar, o que a gente faz? — Kety perguntou.

— É melhor não mexer nela — avisou Rafael. — Ela tem que se concentrar muito para isso, melhor não interromper.

— Verdade — concordou Vitória.

— Podemos começar? — perguntei me deitando no sofá.

— Podemos — disse Vitória prontamente.

Me deitei e fechei os olhos.

— Respire fundo, se concentre, Paloma — pediu Vitória, e em seguida ouvi o som das águas da queda de uma cachoeira. — Relaxe e sinta paz, pois você vai voltar para aquele lugar de sempre. No momento você vê uma luz branca tomar seu corpo e quando se der conta, estará de volta ao corredor e de lá seguirá seu destino.

Respirei fundo mais uma vez e em minha mente vi meu corpo ser coberto mais uma vez por uma luz branca muito intensa, que me cegou por um tempo. Quando a luminosidade baixou. Me vi novamente andando pelo corredor branco repleto de portas. Pensei em abrir uma delas, aleatoriamente, diferente do que sempre fazia de abrir sempre a mesma última porta. Afinal, desta vez eu queria fazer diferente, queria ajuda para lidar com meus problemas, com minha mãe e com a escola. Não faria mal algum mudar um pouco. Sendo assim, corri até a primeira porta que vi e girei a maçaneta, puxei e puxei. Estava emperrada.

— Que merda — disse puxado com mais força.

— Não lute contra o destino.

Ouvi uma voz passar como o vento sobre o corredor.

— Deveria avisar que são cenográficas — resmunguei.

Foi então que todas as portas se abriram de uma vez só. Assustada recuei um passo para trás, olhei para o final do corredor e a última porta brilhava como nunca.

— Já que é assim.

Dei de ombros e andei até a porta. No caminho as portas abertas me mostravam cenas aleatórias de vidas passadas, via pessoas felizes, pessoas tristes, entediadas, campos floridos, cidades, praias e florestas. Fiquei curiosa a cada passo, a cada imagem que via. Em pensar que tudo aquilo um dia foi meu, um dia, no passado eu havia vivido tudo aquilo. E agora estava procurando meu rumo em experiências passadas. Tentando buscar a sabedoria que já tive, e que perdi ao renascer.

Quando cheguei próximo à última porta, a luz cegante cessou. Pela primeira vez ela estava aberta e em meio à nuvens eu podia ver o que se passava sem entrar. Então aproveitei para espiar lá dentro.

Era uma paisagem muito bela. Havia um rio de águas cristalinas, em sua margem uma vegetação nativa que esbanjava flores amarelas nas árvores.

Na margem havia uma jovem garota, estava sentada e olhava seu reflexo no rio. Era bonita, seus cabelos cacheados eram negros como a noite e sua pele branca como o leite. Seu vestido vermelho era o que a fazia se destacar. Ela parecia impaciente, de volta em meia olhava preocupada para os lados. Esperava por alguém, mas quem?

Percebi que não precisava ficar espiando para ter respostas, era só entrar pela porta. Sendo assim, estiquei minha mão direita e troquei lentamente as nuvens. Rapidamente fui puxada para dentro e ouvi o estrondo de todas as portas se fechando com violência.

Quando abri meus olhos novamente, estava sentada sobre a margem de um rio e olhava meu reflexo. Estava no corpo de Paula, revivendo suas memórias. Ela era ainda mais bonita de perto, seu resto era jovem e inocente. “Quantos anos temos?” perguntei inconscientemente... “Quatorze.” respondeu ela. “Em que ano estamos?” perguntei. “1631” respondeu ainda impaciente pela espera. “Em que pais estamos?” perguntei. “ Brasil, no estado de São Paulo.” respondeu ela.

Fiquei surpresa por estar no Brasil. Na verdade no Brasil Colônia. Eu sempre gostei de história, e me lembro muito bem de como era meu país naquela época, e não sei se suportaria presenciar a escravidão. Não sei se eu, Paloma seria capaz de ver alguém apanhado no tronco e agir naturalmente. Pensei que isso pudesse atrapalhar a vida daquela menina que era inocente de mais para ter o senso crítico que eu tinha. Ela era uma garota rica, era visível. Um vestido como o que ela usava não era algo para qualquer uma naquela época.

“Quem estamos esperando?” perguntei pois a cada segundo ela ficava mais nervosa com a espera.

“Khalid”

“Quem é?”

“Meu maior segredo. Meu amor” disse ela.

Olhei para meu reflexo na água e Paula sorria só em pensar nele.

Ouvi um barulho vindo da vegetação, fiquei assustada, mas Paula não. Ela sabia bem quem estava chegando. Se levantou em um pulo e esperou animada seu provável namorado se aproximar.

Foi então que um garoto alto e negro saiu de meio as árvores. Ele era lindo, sem dúvidas. Suas roupas eram simples e se resumiam a somente um calção. Seu peito desnudo exibia músculos que nunca pensei que um adolescente poderia ter, sua pele negra brilhava a medida que o sol o tocava. Seu rosto era gentil e seu sorriso era lindo. Eu Paloma fiquei derretida por ele, Paula nem se fala. Ela pulou nos braços nele e ambos ficaram se olhando por um tempo. Olhei nos olhos de Khalid e não fiquei surpresa em ver os mesmos olhos verdes de sempre. Ele possuía a mesma alma de Kety, assim como eu a de Paula.

Pude sentir todo o calor do corpo dele e toda a paixão dela até que os dois se beijaram. Durante o beijo muita informação me foi dada.

Paula era filha única de um coronel paulista. Ele era um respeitado fazendeiro na região, além de um viúvo mau humorado. Sua única família era Paula, a quem ele travava como se fosse uma princesa. Sua mãe morreu durante o parto e depois disso o coronel nunca mais voltou a se apaixonar. Somente focou em seu trabalho na fazenda deixando assim a filha de lado. Mesmo tendo tudo que uma moça pudesse querer, Paula sempre sentiu muito a indiferença do pai. Só não sofria de solidão pois de alguma forma teve uma mãe. Uma escrava que lhe alimentou e cuidou com todo amor. Ela se chamava Ana, e era a única mãe que Paloma conheceu.

Quando sua mulher faleceu, o fazendeiro se viu desamparado com uma criança faminta. Então no mesmo dia, mandou comprar uma ama de leite da fazenda vizinha. Mas por acaso, a fazenda vizinha não possuía nenhuma escrava que estivesse amamentando. Havia somente uma escrava prestes a dar a luz. Essa serviria.

Ana chegou no dia seguinte na fazenda e em poucos dias deu a luz a um menino no qual o fazendeiro chamou de José. Mas para Ana aquele não seria seu nome. Aquele menino era tudo para ela, assim como seu avô foi. Por isso, ele levaria o nome de um grande homem. Não o nome que os brancos deram assim que chegaram na América, seu verdadeiro nome seria Khalid.

Assim que Ana conheceu a menina que amamentaria. Seu coração se encheu ainda mais de amor e no momento que alimentou aquele criança faminta ela sabia que amaria aquela menina como se fosse sua própria filha.

Paula sabia disso tudo porque ela e Ana eram muito próximas e a mulher sempre a contava essa história.

— No momento que peguei a sinhazinha em meus braços já sabia que amaria como se eu mesma tivesse parido — dizia ela enquanto Paula a ajudava na cozinha.

Paula e Khalid cresceram juntos, ele como escravo doméstico na infância a pedido de sua mãe, tinha muito tempo para brincar com a menina. Já que o patrão não ficava muito em casa.

Na infância eram como irmãos, o menino de estranhos olhos verdades era o melhor amigo de Paula. Corriam juntos pelas plantações de café, andavam a cavalo e nadavam no rio. Paula havia tido uma excelente infância. Sábia que quando chegasse em casa, Ana a ajudaria a ficar apresentável para jantar com o pai. E no dia seguinte, faria tudo outra vez.

Porém, o tempo passou. E para Paula foi rápido de mais. Logo ela se tornou uma moça e Khalid deixou de ser escravo doméstico para trabalhar nas plantações de café.

Ela o via menos, o que a deixa triste. Mas não significava que não fossem mais amigos. Todos os dias no fim de tarde eles se encontravam escondidos na margem do rio. E com o passar do tempo, um sentimento além da amizade nasceu entre eles. Paula e Khalid se amavam, e ela sabia que aquele era um amor impossível, mas ela não dava a mínima para o mundo quando estava nos braços de seu amado Khalid.

Toda essa história passou como um filme em minha cabeça. E quando voltei a mim, me distanciei dos lábios do garoto. Porém, quando olhei novamente para Khalid, ele estava diferente, mas velho, mais forte, mais bonito.

— Não me olhe assim, querida — disse ele sorrindo amavelmente. — Hoje a noite invadirei seus aposentos como fiz a semana passada. Prometo ser cuidadoso — disse ele beijando o peito da minha mão.

— Estarei lhe aguardando, meu querido — falei bobamente.

Ele sorriu e em seguida desapareceu entre a vegetação.

O sol ainda não havia se posto, poucos raios solares ainda iluminavam a fazenda. Olhei meu reflexo no rio, Paula também possuía a beleza da maturidade, anos haviam se passado e ela tinha feito recentemente seu décimo nono aniversário. O que a deixava preocupada, pois estava na idade de se casar e seu pai já estava procurando pretendentes dignos para sua única filha.

Quando o sol se pôs, Paula tornou a ter total controle sobre seus pensamentos e eu me tornei a ser mera expectadora.

Quando anoiteceu meu peito se encheu de alegria, durante mais uma noite eu receberia a visita noturna de meu amado Khalid, mais uma noite eu seria sua mulher e ele meu homem. Meu único amor. Eu tinha a plena consciência de que ninguém neste mundo aceitaria a união de uma garota rica com um simples escravo. Entretanto, eu não dava a mínima importância para o que as pessoas julgam ser o certo e o errado. O que me importava era minha felicidade e a de Khalid.

Durante o jantar, papai estava mais quieto do que o normal. Ele nunca foi muito comunicativo comigo, mas sempre conversamos um pouco durante o jantar. Aquela noite ele estava estranho, algo em seu olhar estava mais distante do que nunca, parecia aborrecido. Pensei que talvez ele houvesse descoberto algo em relação ao meu caso com o escravo que ele conhecia como José, que para mim era meu adorável Khalid.

— Como foi seu dia, querido pai? — perguntei.

Ele continuou com o olhar distante.

— Foi como todos os outros — respondeu de forma ríspida.

— Alguma novidade? — insisti.

— Nós precisamos conversar — disse enquanto se levantava. — Termine de jantar e me encontre no meu escritório.

E se retirou.

Ana estava próxima a porta da sala de jantar, provavelmente havia escutado tudo.

— Você sabe o que ele tem para me dizer? — perguntei preocupada.

— Não faço a mínima ideia — respondeu ela. — Tome cuidado, minha querida. Segredos são difíceis de se manter.

Me levantei e andei até Ana.

— Eu sei — afirmei. — Mas não me arrependo dos segredos que possuo. O amor que sinto por seu filho é maior que tudo isso.

— Não quero que nenhum dos meus filhos sofra — disse ela se referindo a nós dois. — Se acontecer algo com vósmice e meu fio, não sei o se sou capaz de vive.

— Não se preocupe, minha mãe. Nós estamos tomando cuidado. E eu prometo que um dia nós três seremos livres. Um dia essa fazenda será minha e muita coisa vai mudar — disse determinada.

— Vósmice tem o coração muito bom, fia. Espero que o destino esteja ao seu lado.

— Eu faço meu próprio destino — disse amavelmente. — Boa noite, minha mãe.

Beijei a testa dela e me retirei.

Entrei um pouco ecoada no escritório, papai não estava com a cara muito boa. O que me deixava apreensiva para o que viria. Entrei e fechei a porta. Papai levantou os olhos de seus papéis e sorriu de forma forçada.

— Sente-se, querida — pediu ele.

Me sentei a sua frente e fiquei o olhado.

— Por que me chamou aqui? O que aconteceu? — perguntei.

— As vezes você parece tanto com sua mãe, sempre preocupada — disse ele nostálgico. — Você deve ter alguma ideia do que seja.

— Juro que não — afirmei.

— Ora, minha querida, não jure em vão. Você sabe que não tive herdeiros homens e meus parentes são distantes. Você é tudo que tenho.

— Sei. Mas o que está tentando insinuar? — perguntei preocupada.

— Você já tem idade para casar. Por isso estou em busca de bons pretendes.

— Não deveria ser eu a escolher com pretendo me casar? — retorqui.

— Claro que você poderá escolher. Porém, eu os selecionarei antes.

— Quanta liberdade — ironizei.

— As vezes sua mãe me faz tanta falta — murmurou ele. — Ela saberia melhor te dar essa notícia.

Notei que papai ficou tristonho.

— Sei que você encontrará ótimos pretendentes — disse pegando nas mãos dele. — Não se preocupe com isso.

Por fora eu agia como se aceitasse tudo aquilo, mas por dentro. Meu mundo estava desmoronado. Papai só queria o melhor para mim, sabia disso. Ele não era um homem mau. Sábia que não seria cortejada por velhos asquerosos assim como acontecia com diversas moças. Porém, sabia que nenhum pretendente me causaria interesse pois meu coração já tinha um dono. E ter que me aproximar de outro homem seria um martírio.

— Posso ir para o meu quarto? — perguntei.

— Vá, querida. Boa noite — disse ele.

Assenti e me retirei. Fechei a porta e respirei fundo quando me encontrei no corredor, lágrimas deslizaram do meu rosto. Sábia que depois daquela conversa minha vida jamais seria a mesma. Um dia eu teria que me casar com um homem da mesma classe social que a minha. O que significava que meu maior pesadelo estava prestes a se concretizar. Meu romance com Khalid estava prestes a passar pela fase que eu mais temia, o dia que eu pertenceria à um homem que não me causava interesse.

Andei lentamente até meu quarto, pensando na melhor maneira de dar a notícia à Khalid, sabia que ele não iria gostar da ideia de eu pertencer à outro homem. Mas isso não significava que eu deixaria de vê-lo.

Entrei no quarto e chaveei a porta. Senti uma brisa fria vindo da janela do quarto, sabia que Khalid já estava me esperando. Foi quando olhei para minha cama que um lampião acendeu.

— Você demorou. Aconteceu alguma coisa? — perguntou ele, deitado na minha cama.

— Papai queria falar comigo — disse desabotoando meu vestido pesado.

— Você parece chateada, foi algo sério?

— Posso te dizer tudo amanhã? Estou estressada, tudo que eu preciso é de seu carinho — choraminguei.

— Claro que pode. Como a sinhazinha preferir. Venha se deitar — convidou ele.

Terminei de me despir e deitei ao seu lado. Naquela noite fizemos amor e depois enquanto repousava em seus braços, tentava esquecer o inferno que estava por vir.

No dia seguinte, acordei cedo e corri até o rio, logo pela manhã o sol pairava sobre a terra a aquecendo sem piedade.

Me sentei e fiquei olhando para o rio. Queria chorar, me entregar aos prantos. Porém, nem mesmo lágrimas me restaram, pois depois que Khalid me deixou sozinha no quarto, chorei o resto da noite.

— O que faz sozinha aqui?

Ouvi uma voz atrás de mim.

Me virei e fiquei aliviada em ver Khalid.

— Queria pensar — respondi.

Ele se aproximou e sentou ao meu lado.

— Quer me dizer sobre o que você e o padrão falaram ontem?

— Sim, uma hora você vai ter que saber — disse constrangida. — Meu pai decidiu procurar por pretendentes para mim. E eu estou com medo — admiti.

— Sabia que logo esse dia chegaria — disse ele irritado. — Mas não vou desistir de você.

— E eu não vou desistir de você — afirmei. — Para onde eu for você vai junto.

— E se fugirmos juntos? — sugeriu ele.

— Meu pai nos encontraria, te mataria e me casaria com o primeiro velho que veria.

— Isso eu sei que é verdade — observou ele. — Isso é tão injusto conosco.

— Quem dera o amor fosse suficiente para duas pessoas ficarem juntas — falei.

— Nós ficaremos juntos para sempre — disse ele beijando o dorso de minha mão. — Nem que eu tenha que ser seu amante a vida inteira.

— Não espero menos que isso — disse eu. — Perante a sociedade eu pertencerei a outro homem, mas meu coração sempre será seu, minha felicidade será sua e o homem que me possuir por mero contrato nunca poderá ser feliz. Você será meu eterno amor, assim como o significado do seu nome. Khalid o eterno.

Khalid sorriu e nos beijamos apaixonadamente. Não importava o que estava por vir. Eu sabia que Khalid e eu não iríamos desistir um do outro.

Na semana seguinte, o primeiro pretendente escolhido por meu pai, veio fazer o cortejo. Era um homem mais velho do que eu alguns anos, e era o único herdeiro de uma grande fazenda que fazia divisa com a de meu pai. Que segundo ele, seria um casamento vantajoso para ambas as famílias.

O cavaleiro chegou por volta do meio dia. Ana estava com o almoço quase pronto, quando gritou para que eu fosse receber o rapaz ao lado de meu pai.

— Ande logo, sinhá! E não amasse a barra do vestido — alertou ela.

— Está bem — disse eufórica passando as mãos sobre o tecido azul do vestido. — Estou bonita?

— É a menina mais linda do mundo — disse Ana.

— E este é meu martírio — choraminguei.

— Eu sei que é difícil — disse ela tampando suas panelas. — Mas é assim que funciona a vida. Cada um vem pra esse mundo para um propósito. E ser mulher é o que de mais difícil pode existir. Eu como muitas escravas vivo uma vida que não pude escolher, o que não é diferente com as mulheres brancas também.

— Seria possível um dia podermos escolher nosso próprio futuro? — indaguei.

— Isso vai ser uma coisa muito difícil de acontecer. Todas nós somos escravas. Mas tenho fé que um dia Deus irá de nos abençoar.

— E o que fizemos até lá?

Ana veio até mim, passou a mão em meu rosto e sorriu.

— Tentamos ser felizes mesmo com as dificuldades. Agora vai logo para a sala. Porque o rapaz já deve estar esperando pela sinhá — disse ela, me apressando para sair da cozinha.

— Vou fazer ele me odiar, você verá. Serei a mais rica solteirona de São Paulo — falei aos risos.

— Isso se o patrão deixar — disse ela. — Boa sorte.

— Preciso de azar — disse enquanto me retirava da cozinha.

Cheguei na sala de jantar e me sentei à mesa sem cumprimentar ninguém. Do outro lado estava nosso vizinho. Um rapaz jovem, bem afeiçoado, vestido elegantemente e com seus cabelos loiros bem penteados para trás. Que olhou para mim e sorriu durante todo o almoço.

Não dirigi à ele nenhuma palavras durante o almoço. Enquanto meu pai, não deixava o pobre rapaz apreciar o almoço maravilhoso que Ana havia preparado, pois ele não deixa de falar um minuto sequer da prosperidade que estava passando com a plantação de café.

Depois do almoço, me retirei para o meu quarto e deixei os dois conversarem. Me sentei na janela e fiquei olhando os escravos indo para a plantação. Khalid estava entre eles. Quando passou acenou para mim, que fiz o mesmo. Foi então que a porta do meu quarto se abriu.

— Ah, então você está aí — disse papai. — O Senhor Vicente está esperando por você. Disse a ele que vocês poderiam ir conversar nos campos.

— Pensei que ele já havia ido embora.

— Se você pensa que sua indiferença atrapalhou em algo, está muito enganada — disse seriamente. — Sua timidez prova que lhe dei boa educação.

— Não gostei dele, por isso não lhe dirigi a palavra — respondi.

— Bem, então vá ao encontro dele e depois que tirar uma conclusão me diga. Que rapidamente encontrarei outro rapaz — disse ele.

— O senhor não entendeu? Eu não quero ninguém.

— Ora, que bobagem. Todas as moças querem se casar. E eu estou sendo de verás muito bom em lhe deixar escolher. Você deveria me agradecer — disse irritado.

— Sei que está fazendo o seu melhor — disse tristemente.

— Então chega de se lamentar e cumpra o que eu prometi — disse ele apontando para fora. — Ele lhe espera na varanda.

— Sim, papai — disse me retirando do quarto.

Passei o resto da minha tarde conversando com um rapaz cheio de planos ambiciosos para as terras que herdaria de seu pai e como seria vantajoso para nós dois se eu aceitasse ser sua esposa. Ele me prometeu que seria atencioso com uma moça com a minha beleza e que juntos prosperíamos.

Quando ele finalmente foi embora, papai me perguntou se eu havia gostado dele. E como a minha resposta foi um não, na semana seguinte eu conheceria outro bom pretendente.

E assim prosseguiu, na semana seguinte outro pretendente e outro não e assim ocorreu nas cinco semanas seguintes. As opções estavam ficando escassas a meu pai, que estava começando a ficar irritado comigo.

— Por que você despreza todos eles? — perguntou ele enquanto jantávamos. — Está tentando me tirar do sério? Se é isso está conseguindo. Eu juro, minha filha que estou tentado agir da melhor forma possível com você. Mas se continuar assim, eu mesmo terei que escolher quem será seu marido.

— Não tenho culpa se nenhum me agradou. São todos mesquinhos e só querem casar comigo por ganância, não por amor — respondi simplesmente.

— Amor é algo que ocorre com o tempo. Sua mãe e eu mal nós conhecíamos quando nos casamos. E mesmo assim, ela me fez o homem mais feliz do mundo.

— E se eu não tiver a mesma sorte? E se eu for condenada a uma vida infeliz ao lado de um homem que me vê como um mero troféu enfeitando sua linda casa de campo. Penso que mereço ser amada.

Papai se levantou, andou até mim e tocou meu ombro.

— Contos de fadas não fazem parte da vida real, minha querida. A vida costuma a não ser nada comparado ao que almejamos dela. E o mínimo que podemos fazer é aceitar e tentar viver da melhor forma possível — disse com a voz cansada.

— Se você diz — respondi em voz baixa.

— Boa noite — disse ele.

— Boa noite, papai.

Fui para o quarto aos prantos. Era tudo muito injusto, minhas vontades não importavam, meu destino não estava ao meu controle, minha vida não estava seguindo o rumo que almejava. Eu amava um homem que jamais poderia ser meu formalmente. Tudo era tão injusto naquela fazenda, me chamavam de sinhazinha, filha do patrão. Mas assim como ele vendida seus escravos para os fazendeiros vizinhos, ele estava me vendendo. E eu não era nada mais do que uma moeda de troca, um mero troféu à leilão. Um objeto sem vontade própria. Queria tanto que fosse diferente, queria poder ser livre para escolher que vida gostaria de levar.

Entrei no quarto e bati a porta. Me joguei na cama e desabei a chorar. Viver a minha vida era a certeza do que é não viver. Apenas seguir o que planejaram e seguir sem contestar. Não suportava mais aquilo.

Enquanto chorava baixinho, ouvi a janela do meu quarto se abrir, sabia que era Khalid, por isso nem me mexi.

— O que aconteceu? — Ouvi sua voz preocupada se aproximar.

Levantei o rosto encharcado de lágrimas e o olhei.

— Papai não me deu escolha. Ou eu decido logo com qual dos imbecis me caso. Ou ele escolhe — respondi irritada.

— Já pensou na minha proposta? — perguntou ele.

— Nossa morte não é uma opção. E uma fuga só resultaria nisso.

— E o que você pretende fazer?

— Não sei — respondi.

Khalid sentou-se ao meu lado e pegou em minhas mãos.

— Fiquei sabendo que um desses pretendentes é herdeiro da fazenda que faz divisa com a do patrão. E que o pai desse homem já está com o pé na cova.

— O que você está insinuando?

— Se você casar com ele, pelo menos não vai para longe e ainda vamos poder nos ver.

— Eu não suportaria viver longe de você — disse desesperada, pulando em seus braços.

— Se mesmo pertencendo a outro homem você ainda me amar. Não há nada no mundo que valha mais para mim — disse ele.

— Te prometo que sempre farei o possível para que possamos ficar juntos — disse eu.

— Eu sou capaz de tudo por vósmice. Até mata se for preciso — disse seriamente.

— Não seja tão dramático — falei enquanto aproximava meu rosto do seu. — Se fizermos tudo do modo certo, ficaremos assim para sempre.

— E se o para sempre não ser como queremos?

— Então faremos ser, ou então prefiro a morte.

Khalid assentiu.

— Durma ao meu lado está noite? Preciso de você mais do que nunca — implorei.

— Como a sinhá quiser — respondeu Khalid, com um sorriso encantador nos lábios.

Minha escolha foi tomada no dia seguinte, logo pela manhã informei meu pai que minha escolha havia sido Vicente, nosso vizinho.

Papai vibrou com a notícia, pois segundo ele seria o casamento mais vantajoso para a fazenda e para ele. Que teria sua filha por perto.

O casamento aconteceu no mês seguinte, meu vestido de noiva era pesado e quente demais para suportar em um casamento que eu não almejava. Naquela tarde todos os amigos do meu pai estavam na fazenda. Não podia envergonha-lo. Ana me ajudou a me vestir, ela chorava muito.

— Sempre que puder venho visita-la — falei enquanto ela dava alguns pontos no vestido.

— Sinto como se estivesse arrancando um pedaço do meu velho coração. Você é minha menina — disse ela.

Através do espelho pude a ver enxugando as lágrimas nas mangas de seu vestido enquanto costurava o meu. Aquilo partia meu coração, eu era a única companhia que Ana tinha naquela casa, além de eu saber que como eu a amava como mãe, ela me tinha como filha. Quando notei que ela terminou de ajustar minha cintura, desci e a abracei.

— Será um martírio para mim ficar longe de você e de Khalid.

— Não minta para mim — disse Ana. — Sei que ambos são capazes de tudo para se ver na calada da noite.

— Está certa, isso é algo que não irá mudar.

— Então por favor, minha filha. Tome cuidado, por você e por meu Khalid. E o chame de José perto dos outros. Senão o patrão pode perceber que vocês são amigos.

— Queria que fosse ele me esperando no altar lá na igreja.

— Infelizmente a vida é injusta e nossas angústias são ouvidas só por Deus — disse ela, ajustando meu penteado.

Depois da cerimônia na igreja, papai fez uma festa na fazenda. Estavam todos se divertindo, exceto eu.

Naquela mesma noite fui levada para a casa do meu marido, que ao menos foi gentil comigo na noite de núpcias.

Os dias passaram lentamente nos meses seguintes. Meu sogro era um homem calado, que passava a maior parte do tempo na varanda, olhando pensativo para os campos à sua frente. Inúmeras vezes tentei conversar com ele, porém, naquela casa eu era apenas uma intrusa. Meu marido passava a maior parte do tempo fora de casa e quando chegava, jantava e ia dormir. E tudo o que me restava o dia inteiro e a tardinha era a solidão naquela casa enorme. As escravas não me tratavam como Ana, para elas eu era a patroa, não uma amiga, uma mulher que também sofria. Não tanto quanto elas, mas sofria.

Minha única felicidade era quando o crepúsculo chegava, e eu ouvia batidas na janela do meu quarto. Já que meu marido aceitará que dormíssemos separados devido aos meus péssimos hábitos noturnos que não o deixavam dormir. Admito que não se passou de um truque.

Com isso, encontrei a brecha perfeita para que Khalid entrasse na casa algumas noites na semana. Ele havia feito acordos com os escravos da fazenda de meu marido e por isso tinha passe livre para me ver.

Khalid era minha única felicidade.

Os meses se passaram e em um dia de inverno meu sogro faleceu. O médico nos disse que era tuberculose e não poderia fazer nada. Meu marido ficou atrasado e ainda mais distante. Eu não o odiava, ele era gentil comigo do seu modo. Não o amava como amava Khalid, mas também o estimava como um amigo. Um amigo distante. Me deixava triste o ver sucumbido a tristeza e não poder fazer nada, pois só o que ele fazia era me afastar. Talvez aquele casamento não foi um sacrifício somente para mim. Ele também casou sem me amar, éramos ambos vítimas da ganância, confinados a uma vida sem amor. As vezes eu torcia para que ele tivesse uma amante, assim não me sentiria culpada por sua infelicidade.

Pensei que com o tempo meu marido fosse superar aos poucos a morte de seu pai e melhorasse seus ânimos. Porém, não tinha ideia do quanto ele sofria. Um ano se passou depois da morte de meu sogro e Vicente ficou muito doente. Fiquei desesperada, não sabia o que seria de mim caso ele morresse. Mas o pior aconteceu, depois de meses de angústias, fiquei viúva.

A porteira estava aberta para meu pai tomar as terras de meu falecido marido. Porém, ninguém esperava que Vicente deixasse um testamento, no qual deixava todas as propriedades e escravos em meu nome, e ainda enfatizava que meu pai não me tomasse nada.

Papai ficou furioso, tentou me convencer a deixar ele ampliar sua fazenda. Mas pela primeira vez na vida, senti que realmente poderia ser livre. Dei um terço das terras em troca de alguns escravos. E já que meu pai não poderia agir contra a lei, aceitou o acordo.

Entre os escravos veio Ana e Khalid. Senti meu coração arder em felicidade quando os vi cruzarem a fronteira entre as fazendas. Finalmente eu era livre para amar e fazer o que quiser. Eu era a patroa, eram minhas terras, meus escravos, minha plantação, minha herança e eu poderia fazer o que quisesse com elas.

Sendo assim, decidi naquele mesmo dia, revelar a todos as mudanças que faria na fazenda. Pedi ao responsável pelos escravos que reunisse a todos na varanda, pois a patroa daria um comunicado importante.

Khalid não se importou em invadir o casarão na frente de todos. Eu estava na sala quando ele me encontrou.

— Agora sinhazinha é patroa — disse ele, se aproximando de mim.

Sentia através de seus olhos verdes que ele estava feliz por mim.

— É diferente de tudo que já sonhei, é melhor do que qualquer coisa que já imaginei. Sou dona de tudo, mas principalmente de mim mesma, além de poder fazer o que quiser com a fazenda — falei me aproximando de seus braços.

— Tenho certeza que será a melhor fazenda da região, aqui escravos não serão mais maltratados — disse ele, me abraçando.

— Na verdade, tenho planos melhores do que este — falei sorrindo convencida.

Khalid sorriu, acariciou meu rosto e me beijou na frente de todos.

Quando estavam todos reunidos, sai para a varanda ao lado de Khalid.

Os olhos cansados dos escravos não me olhavam com a esperança que eu esperava que tivessem. Talvez já estivessem cansados de ser comprados e vendidos, de terem suas famílias separadas. Mas o que eles não sabiam, era que depois daquele fim de tarde, as vidas de ninguém ali presente seria a mesma.

Fiquei os olhando por alguns segundos, não pensei que seria tão difícil, era como se as palavras fossem mais difíceis de serem ditas enquanto todos aqueles olhares caíam sobre mim.

— Quando você quiser — incentivou Khalid, sorrindo para mim.

— Sei que para todos, inclusive para mim. Uma viúva ser dona de uma fazenda é algo novo — disse um pouco insegura. — Porém, meu falecido marido me deixou como herança tudo que um dia foi seu. Sendo assim, sou a nova patroa. — Assim que disse essas palavras alguns dos homens que normalmente eu via chicotear escravos começaram a conversar entre sí. — E como patroa minha primeira exigência é o total respeito de meus empregados, a partir de agora, minha vontade será algo incontestável. Nisso me refiro a mudanças que pretendo fazer, e aquele que não concordar será convidado a se retirar das minhas terras. Algumas dessas mudanças ocorrerá na forma como meus escravos serão tratados — falei seriamente. — Cresci vendo crueldades que nenhum ser humano deveria passar, e, nunca as aprovei. Podem me julgar o quanto quiser, mas em minhas terras o tronco e o chicote serão algo proibido. Ainda se tratando dos escravos, sempre pensei que merecessem casas dignas, e já que meu marido me deixou uma quantia considerável, penso em reaproveitar as terras inférteis próximo ao arvoredo e construir casas para as famílias.

— Vai liberta-los? — gritou o capataz. — Se ninguém trabalhar essa fazenda irá a ruína!

— Não serei carrasco de ninguém, dormirei com a consciência tranquila pela primeira vez na vida. E o empregado que não concordar com minhas regras, está convidado a aceitar as contas comigo e se retirar de meu engenho. Já o escravo que não se sentir satisfeito terei o prazer em lhes dar a Carta de Alforria. Por outro lado, quem permanecer aqui, terá a minha proteção, um lar, não sofrerá torturas além de ganhar um pequeno salário por seus serviços. Não posso oferecer mais do que isso. Mas imagino que já será muito para quem sofreu a vida inteira.

— Eu não irei, nem minha família — gritou um dos escravos.

— Obrigada — falei em voz baixa.

— Nem eu.

— Nem eu.

E assim os escravos começaram a comemorar.

— Você não pensa, mulher! — gritou o capataz. — Já havia de ter percebido isso antes quando você trocou um terço da fazenda por dez escravos — bradou ele.

— Esses dez escravos são minha família! — gritei. — E falando nisso — continuei. — O escravo que vocês conhecem como José, a partir de agora será Khalid, meu companheiro. — Peguei na mão de Khalid e olhei seriamente para todos. — E aquele que não concorda. — Olhei para o capataz. — Que se retire agora mesmo de minhas terras. Tenho certeza que minha fazenda irá prosperar, assim como tudo próspera muito mais sem o ódio que um homem pode carregar no peito.

O capataz cuspiu no chão e outros homens fizeram o mesmo.

— Fique na sua fazenda depravada, mulher. Será um prazer presenciar sua ruína. Sua bondade não resultará em nada além disso — disse o capataz indiferente. — Vamos, companheiros! Estas terras não são mais dignas de bons homens como nós.

Seus olhos carregados de ódio caíram sobre mim antes que o mesmo virasse as costas e saísse andando até a porteira.

Meus escravos permaneceram em silêncio até que todos despertassem atrás do pôr do sol.

Quando os perdi de vista. Todos os homens e mulheres que agora estavam sobre minha proteção, comemoraram o que eles chamaram de boa sorte. Dançaram e cantaram sobre o pôr do sol.

— Você nos deu uma nova esperança — disse Khalid, me trazendo para mais perto de sí.

— É o mínimo que posso fazer por eles e por você — disse olhado em seus olhos que brilhavam como esmeraldas.

— Não será uma tarefa fácil manter a fazenda, minha filha — alertou Ana. — Os homens brancos não facilitaram a venda de seu café, além das fofocas que irão se espalhar. Ninguém quer ver uma mulher no lugar de um homem, ninguém quer ver um escravo longe do tronco.

— Em minhas terras, minha vontade é lei.

E assim prosseguiu, no dia seguinte. Minha fazenda havia se tornado um lugar totalmente diferente, não havia medo e sofrimento. Khalid se promoveu a chefe da mão de obra nas plantações e todos trabalham com dedicação, tanto no cafezal quanto com os animais. No casarão, as mulheres me tratavam com respeito e eu a elas. Novamente eu tinha minha ama comigo. E meu coração estava cheio de alegria. A noite jantávamos todos juntos na senzala, eu não tinha ideia de como a comida deles poderia ser deliciosa.

Uma semana depois, começamos a montar as casas para as famílias. Eram simplórias, mas ainda sim, melhor do que a senzala. Senzala na qual, decidi aproveitar para torna-la um galpão para que pudéssemos jantar e para que eles pudessem festejar como seus antepassados. E como boa amiga, eu sempre participava.

No meu ponto de vista, eu era amada e respeitada por eles. E pela primeira vez pude ver o que era a verdadeira felicidade.

Khalid se tornou meu companheiro oficial e praticamente o patrão na fazenda, compartilhávamos o mesmo quarto e a tarefa de gerenciar a fazenda.

Todo final de tarde cavalgávamos até o lago que passava por minhas terras para olharmos o pôr do sol atrás da colina. Podia ver em seus olhos que Khalid estava feliz e realizado assim como eu estava.

Assim que chegou a hora de vender minha safra de café, tive dificuldades, pois todos os antigos compradores se recusaram a aceitar o café de minha fazenda. Sábia que algo assim poderia acontecer. Por isso, peguei um trem para São Paulo, lá poderia encontrar novos compradores.

Fui sozinha, já que a fazenda não poderia ficar sem um patrão.

Chegando na capital paulista. Tive dificuldades com os importadores de início. O fato de eu ser mulher de alguma forma demostrava que eu não teria talento para negociar. Oh, não imaginavam o quão uma mulher pode ser astuta.

Consegui vender toda a safra, voltaria para minha fazenda uma mulher ainda mais realizada.

Depois de pegar o trem de volta para casa, contratei uma carruagem para me levar para a fazenda.

Dormi um pouco até que o coche me acordou.

— A senhora poderia me informar se estamos perto de sua fazenda — pediu ele.

Dentro da carruagem acordei assustada e olhei para a janela. A diante uma nuvem escura de fumaça cobria o horizonte.

— Algo grande está queimado — comentou ele.

Olhei melhor para a direção em que a fumaça parecia se formar.

— Khalid — disse aterrorizada, levando a mão até a boca.

— O que a senhora disse? — indagou o coche.

— O senhor poderia ir mais rápido na direção da fumaça. Penso ser possível estar vindo da minha fazenda — disse em choque.

— Claro, senhora — disse ele, prontamente içando as rédeas nos cavalos.

A medida que a carruagem se aproximava da fumaça, mais minhas esperanças morriam. Não era possível que aquilo estivesse acontecendo.

— Os cavalos só aguentam até aqui — disse o homem, parando a carruagem um pouco antes da fazenda.

— Tudo bem — disse abrindo a porta para mim mesma. — Mesmo assim obrigada.

— A senhora quer ajuda para ir até lá? — perguntou ele.

— Não, obrigada.

Ele assentiu e deu meia volta com a carruagem.

— Boa sorte, adeus — disse ele.

— Adeus — falei enquanto lágrimas escorriam de meu rosto ao pensar no pior.

Nada seria resolvido se eu ficasse olhado de longe tudo o que eu amava queimar.

Respirei o ar puro que ainda era possível e adentrei correndo minhas terras.

Gritos chamado por seus entes queridos eram ensurdecedores. Pensei em meus pobres amigos sofrendo depois de eu os ter prometido uma vida sem dor.

Felizmente logo os encontrei, seus alojamentos estavam intactos.

— O que aconteceu aqui? — perguntei desesperada para a primeira mulher que encontrei.

— Que bom que a senhora está bem — disse ela, aliviada em me ver. — Alguém colocou fogo no casarão, eu lamento muito, senhora — disse ela sinceramente.

— Alguém está lá dentro? — perguntei desesperada, olhando na direção de casa.

— Acho que saíram todos — respondeu ela.

— E o Khalid, você o viu? E a minha ama?

— Não vi seu home, não. Nem a mãe dele — respondeu ela, seus olhos desolados me deixaram ainda mais preocupa.

— Khalid!

Gritei, corri e chorei.

Quando cheguei próximo a casa. Vi que as chamadas haviam a consumido totalmente, a porta da frente que já não exista mais me permitiu ver a situação do interior da casa. Khalid e Ana estavam lá dentro, as pessoas que eu mais amava estavam em perigo, minha vida estava lá dentro prestes a ser consumida pelas chamas. Não me importava mais se alguém ateou fogo, o que me importava era a possibilidade de os encontrar vivos.

Assim que entrei, senti o calor insuportável e falta de ar devido a fumaça. Mas não recuei, ainda mais depois de ouvir uma voz apavorada, parecia Ana.

Saí correndo casa a dentro, cobrindo meu rosto com uma mão e com a outra afastando a fumaça de meus olhos. O calor era insuportável, mas algo me mantia com coragem para enfrentar as chamas, se o fogo me queimasse, não seria pior do que perder aqueles que amava.

— Ana! — gritei pigarreando. — Ana! Você está aqui?! — gritei mais alto.

— Paula.

Ouvi uma voz fraca me chamando. Estava perto, senti isso.

— Quem está aí? Khalid, é você? — indaguei, afastando mais uma vez a fumaça da minha visão, enquanto procurava por alguém nos poucos cantos da casa que ainda não estavam em chamas.

— Paula, me desculpe.

Ouvi a voz fraca mais uma vez, e parecia estar mais perto.

— Pai?

Fiquei surpresa em vê-lo encolhido em um canto, seu rosto estava sujo de brasas e suas roupas queimadas assim como seu corpo.

— Meu Deus, papai! O que você faz aqui? — perguntei desesperada, me aproximando dele para ajudar.

— Me desculpe, filha. Por favor — disse ele, chorando.

— Desculpar por o quê? — perguntei, tentando o puxar para fora daquele inferno.

— Você me fez perder o controle, não deveria ter envergonhado nossa família — disse parecendo arrependido, apesar de suas palavras mostrem o contrário.

Então entendi tudo o que havia acontecido na minha ausência.

— Não acredito que você foi capaz de atear fogo em minha casa — disse chocada, o deixando no chão.

— Me desculpe — chorou ele.

— Onde está o Khalid e minha mãe Ana? O que você fez com eles? — gritei desesperada.

Papai chorou mais uma vez e se deitou no chão.

— Não! Não, não! — gritei e sai andando pelas chamas. — Khalid! Meu amor!

Consegui passar para o outro lado do casarão antes da parte superior desmoronar. E assim cheguei na cozinha. As chamas haviam queimado meu vestido vermelho e minha pele, porém o desespero me mantia viva.

— Khalid! Ana! — gritei com toda força que ainda estava em meus pulmões antes de cair de joelhos no chão.

Houve um silêncio interminável até que ouvi uma voz fraca, parecia um suspiro.

— Paula, é você mesmo?

Era Khalid, mas não tinha certeza se ouvia sua voz.

Juntando toda a força que me restava, rastejei até o local de onde a voz havia vindo.

Faltava pouco para chegar na cozinha quando vi Khalid sentado no chão, com nossa mãe morta em seus braços.

Os olhos de meu amado estavam cansados e desolados sua pele ferida e seu corpo sujo de sangue.

— Meu pai fez isso? — perguntei assim que me aproximei dele.

— Ela tomou o tiro por mim — respondeu chorando.

O abracei e choramos juntos até que por impulso nossos lábios se tocaram. Quando nos separamos, percebemos que as chamadas haviam nos cercado.

— Eu te amo — disse ele, assim que nossos olhares se encontram.

— Não diga isso, meu amado — disse tocando seu rosto. — Isso não é um fim, nunca é um fim.

— É apenas um novo começo de um ciclo eterno. E eu te amarei novamente quando nos reencontramos — disse emocionado.

— Tenho certeza que tudo será melhor — afirmei e em seguida o beijei.

Enquanto dávamos nosso último beijo o teto em chamas do casarão caiu sobre nós.

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Jérsica Santos

Jérsica Santos

minha nossa que tristeza

2024-04-30

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