No dia seguinte ao embate com Clarice, Morrígan continuou suas atividades rotineiras. O pai havia disponibilizado um professor de harpa, onde ensinaria as bases fundamentais do instrumento para a garota. O rei Alistair achava o instrumento fascinante, e gostaria de um dia ver a filha dedilhar as cordas de uma harpa em seus festivais, enfeitiçando todos os convidados.
No primeiro horário da lição, a garotinha dedilhava as cordas, sem presunção alguma. O professor dizia que, primeiro, ela deveria criar uma conexão com o instrumento. Mas Morrígan não sentia nada além dos dedos doerem, e calos se formarem.
No entanto, apesar da falta de afinidade imediata com a harpa, Morrígan persistia diligentemente. Ela se esforçava para seguir as instruções do professor, mesmo que seus dedos doídos protestassem a cada nota errada. A determinação em seus olhos contrastava com a aparente frustração em seu rosto.
Enquanto tentava reproduzir uma melodia simples, seus pensamentos vagueavam para além das paredes da sala de aula. Sua alma visitou Gaelen, o jovem nobre, cujos olhos a viam com uma mistura de ternura e desapontamento. Morrígan se perguntava como ele estava agora.
Será que sentia saudades suas? A incerteza pairava no ar, pesada como a névoa da manhã. Ela sabia que suas palavras tinham ferido profundamente Gaelen.
Morrígan suspirou, os dedos passando pelo instrumento, criando notas melancólicas que pareciam ecoar a dor de seu coração. As cordas da harpa vibravam em harmonia com seus sentimentos tumultuados, uma expressão sonora de sua própria angústia e confusão.
— Ótimo! — o professor elogiou — Como você fez isso, senhorita Morrígan? Ficou incrível!
A menina levantou uma sobrancelha intrigada.
— Eu só dedilhei algumas notas aleatórias, enquanto pensava em outra coisa.
— Pois então continue! Soou excelente, e parece que você tem o dom com as cordas, Morrígan.
Mais tarde, o homem introduziu Morrígan aos fundamentos da teoria musical das harpas. O professor explicou como as cordas da harpa estão afinadas em fileiras, cada uma representando uma oitava diferente, e como as cordas mais curtas produzem notas agudas, enquanto as mais longas produzem notas graves.
Ele introduziu Morrígan aos conceitos de tom e semitom, essenciais para entender escalas musicais, e mostrou como os acordes são formados a partir das notas das escalas. Além disso, ele abordou o ritmo e a notação musical, ensinando Morrígan sobre os diferentes valores de nota e como ler partituras musicais. Com esses fundamentos, Morrígan começou a compreender melhor a estrutura da música e a aplicar esse conhecimento em sua prática com a harpa.
A lição estava começando a ficar interessante quando alguém interrompeu aquele momento sagrado para Morrígan.
Ela levantou os olhos, e sua alma quase saiu do corpo quando viu a rainha na porta. Deveria ter vindo para puni-la pelos últimos acontecimentos. A sua sobrinha deveria ter criado uma história mentirosa da noite anterior, e a mulher estava ali para acabar com ela.
O coração de Morrígan martelava no peito enquanto a rainha se aproximava com uma expressão séria. Ela segurou a respiração, preparada para o pior. Sua mente estava em turbilhão, repleta de pensamentos sobre possíveis punições e consequências terríveis. Cada batida do coração ecoava como um tambor ensurdecedor em seus ouvidos, enquanto sua ansiedade aumentava a cada segundo que passava.
Mas, para sua surpresa, a rainha não estava ali para repreendê-la. Ao contrário, tinha um olhar penetrante e uma voz gélida que pareciam penetrar fundo na alma de Morrígan, aumentando ainda mais sua ansiedade.
— Morrígan — começou a rainha, sua voz cortante como a lâmina de uma espada — Eu ouvi sua música e parece que você tem algum talento com essa harpa. Talvez você possa ser útil para mim.
As palavras da rainha caíram como uma avalanche sobre Morrígan, fazendo-a sentir-se como se estivesse prestes a desmoronar a qualquer momento. A sugestão de que seu valor estava condicionado à sua utilidade para a monarca atiçou ainda mais suas preocupações e medos.
— Se você estiver disposta a tocar para mim novamente, em um momento mais apropriado — continuou a rainha, seu sorriso cruel apenas acentuando o tom de desdém em suas palavras — Talvez eu possa encontrar alguma utilidade para seus talentos. Pelo menos uma vez na vida, você me seria útil.
Morrígan engoliu em seco, sentindo-se como uma presa diante de um predador astuto e cruel. Seus dedos tremiam levemente, incapazes de controlar o nervosismo que a consumia por dentro. Ela estava mergulhada em uma espiral de ansiedade, sem saber o que o futuro reservava e temendo o pior. A rainha nunca dava um ponto sem nó.
O professor assentiu, ainda mais ansioso que a aluna. Ele pegou uma flauta, e dirigiu uma partitura para Morrígan. Ela pegou o papel velho, e logo viu o título da música: "Uma Rosa para Gwavänir".
Apesar de sua inexperiência em ler partituras, Morrígan compreendeu que naquele momento não havia espaço para hesitação. Ela sentia o peso da responsabilidade sobre seus ombros: era crucial que interpretasse a partitura com precisão. Um erro, e sua credibilidade com a rainha, se é que havia alguma, iria por água abaixo.
Pegou o instrumento, e começou a dedilhar.
As notas fluíam, tristes e melódicas, como uma oração em meio à escuridão da noite. Cada acorde parecia um lamento, ecoando as angústias e os medos de Morrígan. Ela se concentrou intensamente na partitura diante dela, seus olhos percorrendo as linhas e espaços com determinação.
Enquanto Morrígan tocava, o professor acompanhou com sua flauta, harmonizando-se com a aluna de maneira perfeita. A música encheu a sala, envolvendo os presentes em sua melancolia profunda. Era como se cada nota contasse uma história de tristeza e esperança perdida, tocando os corações dos ouvintes de maneira inegável.
Mesmo com todo o nervosismo e ansiedade, Morrígan sentiu uma estranha sensação de alívio ao tocar aquela música. Era como se sua própria angústia encontrasse uma forma de expressão, liberando-se através das cordas da harpa. E, por um breve momento, ela esqueceu-se das pressões e dos perigos que a cercavam, perdendo-se na beleza dolorosa da música que criara.
Mais tarde, o professor explicou para a jovem que a música era uma oração antiga, cuja letra original estava escrita em uma língua esquecida há muito tempo. Com sorte, mesmo com a degradação da linguagem ao longo dos séculos, ele havia conseguido eternizar o som através da harmonia da harpa e da flauta.
Mas no momento em que terminaram de tocar, os olhos da rainha se encheram de lágrimas. Aquela máscara fria havia caído, e Lyssandra exibia emoção em suas feições. Era uma raridade ver tal expressão de vulnerabilidade na rainha, o que tornava o momento ainda mais marcante.
Morrígan olhou confusa para o professor, cujo sorriso irradiava satisfação. Seus olhos brilhavam com uma chama interior, refletindo a profunda conexão que ele havia buscado instigar por meio da música.
Ele se aproximou de Morrígan, seu semblante transbordando sabedoria e compaixão.
— Você vê, Morrígan — começou ele, sua voz suave ecoando pela sala — A música é uma linguagem universal. Ela tem o poder de transcender barreiras e tocar os corações das pessoas em um nível fundamental.
Ele explicou como cada nota, cada acorde, era uma expressão de emoção, uma narrativa que se desenrolava diante dos ouvintes.
—O verdadeiro propósito da música — continuou ele — Não é apenas entreter, mas sim evocar uma resposta emocional. É criar uma ponte entre o artista e o público, permitindo que compartilhem experiências, memórias e sentimentos.
Morrígan absorveu cada palavra do professor, seu entendimento se aprofundando à medida que ele desvendava os mistérios por trás da música. Ela começou a perceber que não se tratava apenas de tocar notas em uma harpa, mas sim de transmitir uma história, uma jornada emocional que ecoava através do tempo e do espaço.
E naquele momento, ao testemunhar as lágrimas nos olhos da rainha, Morrígan compreendeu plenamente o poder da música. Era mais do que apenas uma série de sons; era uma forma de comunicação, uma expressão pura da alma que podia penetrar nas defesas mais rígidas e despertar emoções profundas.
Percebendo o impacto de sua música sobre a rainha, Morrígan sentiu um calor reconfortante se espalhar por seu peito. Ela nunca imaginara que suas habilidades na harpa pudessem evocar tal resposta emocional em alguém tão importante e aparentemente inacessível como a Lyssandra.
A rainha Lyssandra soltou um suspiro profundo, enquanto uma sombra de tristeza atravessava seu olhar.
—Bravo, professor... Bravo… —Sua voz era um sussurro carregado de emoção contida, as palavras vacilando em sua boca antes de emergirem — E essa música... me lembrou de quando tive meu primeiro filho. Ele era tão real, tão belo... Tinha os cabelos loiros do pai, e seu rosto era perfeitamente desenhado…
Suas palavras foram interrompidas por um soluço silencioso, as lembranças dolorosas do passado invadindo sua mente. A dor da perda de seu filho, um lindo bebê que ela nunca teve a chance de ver crescer, pesava em seu coração como uma âncora, arrastando-a para um abismo de tristeza e saudade.
— Você capturou... a essência de sua inocência, de sua beleza… — A voz da rainha vacilou, suas palavras mal conseguindo atravessar o nó em sua garganta. — Essa música... me lembra do que poderia ter sido... do que foi tirado de mim…
Lembrando da presença de Morrígan no local, ela dirigiu seus olhos castanhos para a menina, e seu rosto se endureceu num olhar frio.
— Mas o passado é passado, e não devemos lamentar por aquilo que foi perdido. Sua habilidade com a harpa é notória, Morrígan. Fico feliz que você não seja um completo estorvo neste castelo, e que existe algo bom dentro dessa sua alma sombria.
Ela fez uma pausa, seus olhos fixos nos de Morrígan com uma intensidade penetrante.
— Espero que você fique realmente boa nisso, talvez assim as pessoas se esqueçam de quem você é.
Com um gesto polido para o professor, a rainha se virou e saiu da sala, sua postura real e imponente não revelando nada das emoções conflitantes que ela acabara de expressar.
Morrígan não podia deixar de pensar que aquela mulher era completamente louca. Enquanto observava a rainha se afastar, uma mistura de emoções tumultuava seu interior. Por um lado, estava a surpresa de ter despertado tal reação na rainha, uma figura tão distante e impenetrável. Mas, ao mesmo tempo, havia um sentimento de desconforto diante das palavras cruéis e do olhar gélido que Lyssandra lhe lançara.
Uma sensação de confusão e desamparo a invadiu enquanto tentava processar tudo o que acabara de acontecer. Ela não podia negar que uma parte dela ansiava por aprovação, por ser reconhecida e valorizada, especialmente por alguém tão poderoso quanto a rainha. No entanto, a frieza e a indiferença que emanavam daquela mulher a deixavam perturbada, fazendo-a questionar se algum gesto de bondade poderia realmente vir dela.
Por que Lyssandra a odiava tanto? Que mal havia feito?
Essas eram respostas inacessíveis de se ter. O coração da rainha era uma terra inóspita e fria, que talvez nem o próprio rei Alistair tivesse acesso. E Morrígan sabia que tentar entender os motivos por trás da animosidade da rainha seria como buscar respostas em um labirinto sem fim, onde cada esquina era obscurecida pela sombra de segredos obscuros e intrigas palacianas.
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Atualizado até capítulo 27
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