Capítulo 23

O líder lunar dormia tranquilamente sobre os lençóis macios do quarto que Kiran tinha reservado no palácio. A luz suave do sol filtrava pelas cortinas, criando uma atmosfera serena no ambiente. O príncipe observava-o de longe, encostado na parede, vestindo sua blusa de couro para se proteger do frio que se intensificava com a chegada da noite que parecia não tardar no Velho Oeste. Ele sentiu um arrepio percorrer sua espinha quando uma brisa gélida adentrou o quarto. E o fato de Munihir conseguir dormir, tranquilamente, em meio a queda de temperatura brusca, o deixava incomodado.

"Será que lunares realmente não sentem frio?" Kiran se perguntou em silêncio, embora soubesse que eles estavam acostumados com o frio da terra dos mortos. No entanto, essa observação despertou questões inusitadas em sua mente. "Será que ele está morto?"

Com esses pensamentos inquietantes, o príncipe murmurou para si mesmo:

— Você só me dá trabalho.

Embora fosse difícil admitir, Kiran se via inexplicavelmente atraído pela beleza radiante de Munihr. Cada traço de seu rosto parecia esculpido com perfeição divina, uma combinação harmoniosa de linhas suaves e ângulos precisos. Seus cabelos celestes, como fios de prata, pareciam cintilar à luz ambiente, conferindo-lhe um ar etéreo e misterioso. Seus lábios, entreabertos, exerciam um fascínio magnético sobre Kiran, que não conseguia desviar o olhar.

No entanto, sentia um conflito interno em relação a esses sentimentos. Afinal, Munihr era um lunar, um membro de um povo ancestralmente inimigo dos solarianos. Essa atração proibida parecia desafiar as normas e as expectativas que o cercavam, criando um turbilhão de emoções contraditórias em seu coração. E um senso de culpa e inadequação o assombrava, lembrando-o de que tais sentimentos eram impróprios e perigosos.

Ele sabia que deveria resistir a essas emoções proibidas, enterrar esses desejos inconvenientes e manter uma postura distante e impenetrável. No entanto, era difícil de não pensar na beleza que o líder dos lunares possuía.

Enquanto Kiran continuava admirando o rosto adormecido do lunar, o tempo parecia escorregar por seus dedos. Quando finalmente despertou de seu devaneio, percebeu que o sol já havia se posto lá fora e a noite avançava sorrateiramente sobre Solaria. Uma brisa gélida e penetrante se infiltrou pelo quarto, fazendo o príncipe estremecer e abraçar o próprio corpo em busca de calor. Por outro lado, Munihr parecia invulnerável a qualquer anormalidade, como se estivesse acostumado com as intempéries do mundo.

No entanto, a chegada da noite e a brisa fria eram um aviso claro de que era hora de acordar. Lentamente, como se estivesse emergindo de um feitiço, Munihr abriu os olhos, revelando a intensidade de seu olhar lunar.

— Ah, você acordou? — Kiran disse, com uma pitada de desdém em sua voz.

O homem lunar se sentou na cama e passou as mãos pelos olhos, piscando várias vezes para se acostumar com a claridade do ambiente. Seu olhar curioso percorreu o quarto, tentando entender onde estava. Era um espaço amplo, decorado com detalhes exuberantes que indicavam que não era um simples dormitório. Ele deduziu que estivesse em uma das instalações dos guardiões no palácio. No entanto, sua atenção logo se voltou para Kiran, que o observava de braços cruzados, com uma expressão desinteressada.

— Onde estamos? — perguntou, ainda um pouco sonolento.

Kiran deu de ombros, mantendo sua postura despojada.

— No meu quarto no palácio. Eu te trouxe aqui quando desmaiou. — Ele respondeu casualmente, como se não fosse um grande problema.

Uma ruga de confusão se formou na testa de Munihr.

— Por que você me trouxe para cá?

Kiran deu de ombros novamente, tentando esconder a inquietação que surgia em seu interior.

— Onde mais eu te colocaria? Não podia deixar você desmaiado no corredor.

O lunar ficou em silêncio por um momento, processando as palavras do ruivo. Ainda não estava acostumado com as maneiras dos solarianos, suas preocupações e suas estranhas formas de agir. E Kiran, em particular, era um enigma para ele.

Finalmente, Munihr encontrou as palavras para expressar sua gratidão.

— Obrigado por cuidar de mim.

Kiran olhou para Munihr, surpreso com a genuinidade de suas palavras. Ele não esperava que um lunar fosse capaz de expressar gratidão, mas Munihir sempre surpreendia com sua sinceridade e indiferença.

— Não foi nada. — respondeu, tentando parecer indiferente.

Munihr esticou seu corpo com uma lenta e profunda respiração, sentindo cada músculo rígido se alongar suavemente. Ele se ergueu da cama com um movimento fluido e gracioso, como se estivesse emergindo de um estado de tranquilidade. Uma sensação agradável de leveza e frescor percorreu seu corpo, enquanto os efeitos reparadores das poucas horas de sono se manifestavam.

— Mas então, o que aconteceu? —Kiran quis saber, curioso por respostas que já tinha.

—Já se passaram alguns dias desde a última vez que dormi. Eu estava realmente exausto. — contou, relembrando os eventos recentes.

Kiran fixou seu olhar em Munihir, surpreso com a revelação.

— "Como assim você não dormiu por dias?" — perguntou, buscando entender a situação.

Desde a chegada do lunar a Solaria, Kiran nunca o tinha visto dormir nem por um momento sequer, e já haviam se passado dois longos dias desde então. Além disso, nunca o viu comer, considerando que Munihr ficara aprisionado na delegacia de Solaria durante esse período.

Munihr ergueu uma sobrancelha, aparentemente surpreso com a pergunta.

— Ah, então você notou isso? — respondeu com um sorriso enigmático nos lábios.

A resposta evasiva de Munihr deixou o príncipe ainda mais confuso, com uma sensação de inquietação.

— Claro que sim, eu percebi. É estranho. As pessoas precisam dormir e comer para sobreviver. Você não é uma exceção.

Munihr aproximou-se do ruivo, com uma expressão calma e uma paz pertubadora.

— Você está correto, meu sol. As pessoas comuns precisam dormir e se alimentar para sobreviver. Mas eu não sou uma pessoa comum.

Kiran cruzou os braços, mantendo seu olhar fixo no lunar.

— O que você quer dizer com isso? Você não é humano...?

Munihr sorriu de forma travessa.

— Não sei, você me diz, senhor Deus do Sol.

Kiran franziu a testa. Odiava ser chamado dessa forma, mesmo sendo um deus.

— Nossas necessidades são diferentes das suas. Enquanto o sono e a comida são essenciais para vocês, nós, lunares, temos uma conexão mais profunda com o silêncio e não precisamos nos alimentar ou dormir com a mesma frequência. — explicou Munihr.

Kiran ficou atônito, enquanto a incredulidade estampava em seu rosto lutando para assimilar a nova informação revelada. Ele havia encontrado muitas espécies ao longo de sua vida, cada uma com seus próprios costumes e necessidades, mas nunca tinha ouvido falar de algo tão singular.

Mesmo os demônios, que despertavam em Kiran um profundo ódio e repulsa, não compartilhavam desse estranho hábito. A idéia de que os lunares não precisavam se alimentar ou dormir com a mesma frequência era completamente alienígena para ele. Como poderiam existir seres que se desvencilhavam das necessidades básicas que ele considerava tão essenciais?

— Então você pode ficar acordado indefinidamente? — de repente, Kiran se viu como uma criança curiosa por respostas .

Munihr assentiu com serenidade.

— Sim e não. Posso ficar acordado por longos períodos de tempo sem sentir fadiga. No entanto, isso não significa que eu não precise de descanso.

O solariano processou a informação, tentando compreender a existência de um ser com necessidades tão diferentes das suas.

— Então, você... não precisa dormir?

O homem lunar sorriu, revelando um brilho misterioso em seus olhos.

— Não da mesma forma que você. Mas isso não significa que eu não possa apreciar momentos de descanso. E, para ser sincero, eu adoro dormir. — soltou uma risada logo em seguida.

Kiran balançou a cabeça, ainda perplexo. Em seguida, levantou-se e pegou uma fruta de uma cesta em uma mesa próxima, colocando-a nas mãos de Munihr com um olhar sério, como se o repreendesse. O lunar olhou para a fruta, confuso com a atitude do guardião.

— Aqui, pegue isso e pare de falar besteiras. Além disso, não quero correr o risco de vê-lo desmaiar novamente, e definitivamente não quero carregar um cara pesado como você. — disse Kiran.

Munihir riu, enquanto o ruivo resmungava, como sempre.

— Seu jeito de ser me irrita... —murmurou Kiran, sentando-se em uma cadeira vaga próxima. — Ainda há tanto sobre você que permanece um mistério para mim.

Munihr pareceu absorver suas palavras por um momento, e com um movimento, se aproximou com cuidado. Com um gesto suave, ele estendeu a mão, apoiando-a delicadamente sobre a cadeira em que Kiran estava sentado. No entanto, mesmo com essa proximidade, uma distância palpável persistia entre eles, como se existisse uma barreira invisível que era ao mesmo tempo perigosa.

Um arrepio percorreu a espinha de Kiran quando o lunar se aproximou. Ele engoliu em seco, incapaz de desviar sua atenção de seus olhos intensos. A proximidade criou uma pulsação acelerada em seu peito, enquanto a respiração morna de Munihr roçava delicadamente seu rosto, envolvendo-o em uma aura magnética. O príncipe permaneceu imóvel, temendo qualquer movimento que pudesse romper aquele momento delicado.

O olhar penetrante de Munihr parecia mergulhar nas profundezas da alma do guardião, revelando uma mistura intrigante de curiosidade e, talvez, um leve anseio. Era como se Munihr estivesse lutando contra suas próprias emoções, mantendo uma distância segura, mas ao mesmo tempo criando uma tensão palpável entre eles. Essa tensão que pairava no ar, quase tangível, envolveu Kiran em um enigma emocional do qual ele não podia escapar.

A presença imponente do líder dos lunares e a proximidade desconcertante desencadeavam uma tempestade de emoções em Kiran. Que se questionava o significado desse ato repentino e o que poderia estar oculto nas suas reais intenções.

— Você, meu sol, também é um mistério para mim. — disse com um sussuro.

Kiran sentiu uma mistura estranha de curiosidade e cautela em relação a ao lunar, juntamente com uma pontada de fascínio. Munihr lançou um último sorriso enigmático para o príncipe antes de se dirigir à janela aberta, parecendo desafiar a gravidade em sua ascensão.

Com os olhos arregalados de horror, Kiran observou Munihr subindo pelo parapeito da janela. Seu coração disparou enquanto ele tentava compreender o que o lunar estava prestes a fazer.

— Até breve, meu sol. — disse Munihr com palavras que ecoaram no ar antes dele saltar.

O ruivo correu desesperadamente em direção à janela, chegando a tempo de ver a escuridão lá fora, sem nenhum sinal do lunar. Ele tinha simplesmente desaparecido, como se fosse parte da própria noite. Kiran lembrou-se então das habilidades extraordinárias que Munihr possuía e sentiu uma onda de calma percorrer seu corpo.

— Aquele desgraçado, sempre me assustando. — Kiran suspirou aliviado, deixando escapar um sorriso de alívio.

...

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