— Tem certeza que ficará tudo bem? —
pergunto, observando o sorriso do meu amigo, possivelmente aliviado.
— Absoluta — responde
David, de forma convicta, no entanto.
— Tem algo que eu poderia
fazer por você? Precisa de roupas novas? Se quiser podemos sair essa semana,
assim você escolhe o que precisa comprar. Acha que eu devo me comportar
diferente? Já tem um namorado?
— Caio. Não. — David
continua sorrindo. — Está tudo bem. É sério. Na verdade tudo vai ser como
sempre esteve.
— Então sem namorado?
— Caio... Meu Deus —
David fecha os olhos por um rápido momento, como se estivesse constrangido por
minhas palavras. — Eu entendo. É um choque. Mas não se preocupe, nada vai
mudar. E se eu tiver um namorado um dia, por algum milagre que seja, você será o
primeiro a saber. Tudo bem?
Observo meu amigo nos
olhos antes de poder dizer algo. Nunca o vi tão calmo antes. Sinto que seu
humor está elevado; confiante, eu diria. Não sei por quanto tempo ele precisou
manter esse segredo. Desde sempre? Gostaria de saber.
— Como vai ser, idiota? —
grita Helena, esperando-me, do outro lado da rua. — Vai ficar conversando ou
vamos voltar para casa ainda hoje?
— Fico feliz que tenha me
contado isso — digo, ignorando Helena, sentindo meus lábios secos. — Bem, não
foi você quem me contou, mas agradeço assim mesmo. Seria errado perguntar se
você sempre... Você sabe...
— Sim, sempre — responde
ele, antes mesmo que eu possa completar minha pergunta. Minha boca se abre, mas
ele logo faz questão de falar, interrompendo-me: — E não se preocupe com isso.
Eu sempre estive bem com isso e estarei bem futuramente.
— Desculpe — peço
timidamente. — Não sei como eu devo falar agora que eu sei que você é... —
Sinto algo em minha garganta, como um nó formado, impossibilitando que eu
termine minhas frases.
— Que sou gay? — David
faz questão de olhar dentro dos meus olhos. Então sorri. — Está tudo bem. Mesmo.
E não precisa mudar por isso, muito menos ficar sem jeito como está agora. Só
quero que continue o mesmo. Tudo bem? Pode fazer isso? Por mim?
Escuto um dos seus irmãos
gritar, no lado de dentro da casa. Fora dela, na rua, tudo está quieto. Apenas
Helena está presente, impaciente e visivelmente com raiva. O céu já não está
mais o mesmo, apresentando nuvens escuras, diferente do sol que tomava conta
mais cedo. Tudo indica que uma chuva caíra sobre essa cidade.
— Vamos logo, Caio! —
Helena parece mesmo incomodada com minha conversa.
David estende o braço em
minha direção, esperando que eu possa apertar sua mão.
— Tudo bem. Serei o mesmo
com você — dou um ligeiro sorriso, pegando-o pela mão e puxando-o para
abraçá-lo. — Se cuida. Pode fazer isso? Por mim? — digo em seu ouvido, rindo.
— Muito engraçado —
ironiza David. — Agora precisa ir, ou Helena acabará com você. — Faz um alerta.
Eu o solto, e concordo
com um leve aceno de cabeça, ajeitando a roupa em meu corpo.
— Anda! — diz ele, em uma
tentativa de me apressar. — Não quero te vê no caixão.
Sorrio.
Consigo escutar Helena
bufar, inquieta. Desço os poucos degraus da entrada da casa de David e caminho
até o outro lado da rua, exatamente onde está Helena, batendo os pés no chão. Não
gostaria de afirmar isso, e muito menos diria para ela, mas fica uma graça
quando está com raiva. Suas bochechas se incham e seus lábios apresentam um
leve biquinho, quase como um peixinho.
Viro-me para encarar
David outra vez, do outro lado, mas a porta já está fechada.
— O que está esperando,
idiota? Anda logo! — Helena eleva seu tom de voz, mesmo comigo do seu lado.
Agradeço por ninguém poder
ouvi-la agora.
Sinto um forte vento
acertar meu corpo, enquanto nossos passos seguem de forma tranquila e sem desafio
pela calçada da rua. Gosto dessa sensação. Liberdade. Por muitas vezes, perdido
em devaneios fantasiosos e improváveis, me imagino voando pelos céus, como um
pássaro sem destino. Poder seguir para qualquer lugar do mundo, sem medo de
cair. O vento, o frio na barriga, os olhos atentos e o entusiasmo percorrer
cada veia do meu corpo. Fugir de toda realidade que me cerca. Esquecer-me de
todos os problemas e viajar o mundo, sem me preocupar com o que de ruim poderia
me acontecer.
Mas sei que não será
possível. É cansativo ser apenas um ser humano frágil e indefeso.
Percebo que estou tempo
demais em silêncio.
— Desde quando você
sabia? — pergunto, limpando minha garganta. Não tenho certeza se comecei com pé
direito essa conversa.
Escuto a respiração
pesada de Helena.
— Não muito tempo. David
não é muito de contar sobre ele mesmo, como você bem sabe.
— Sim. Agora eu sei —
respiro fundo. — Sentiu que deveria ser diferente com ele?
— Por quê? — Helena
pergunta, mas logo faz questão de completar: — Ele gostar de garotos não faz
dele uma pessoa diferente. Ainda é o mesmo idiota que gosta de peixes gigantes.
Não respondo. Algo dentro
de mim, medo ou complexidade do assunto, diz que eu deveria ser uma pessoa
melhor com meu amigo agora. Mas Helena está mesmo certa. David gostar de
garotos não faz dele uma pessoa diferente. Além do mais, ele me pediu para que
eu não mudasse com ele. Acho que eu deveria seguir seu desejo.
— David ficará feliz se
você tentar não agradá-lo — diz Helena, enquanto caminhamos pela rua vazia e
silenciosa. — E acho que é melhor assim. Não tente se mostrar bom, tudo bem?
David não está com uma doença terminal para receber tratamento de luxo.
Consigo sorrir com seu
humor, embora eu saiba que ela não teve pretensão de soar engraçado.
— Espero que eu possa
conseguir — digo. — E sim, você está certa.
— Estou sempre certa — diz
ela, me arrancando uma ligeira gargalhada.
Voltar para casa andando talvez
não tenha sido uma boa opção. Alguns pingos de chuva começam a acertar minha
cabeça. Minha mãe não pôde me buscar, o que sobrou para os meus pés e minhas
pernas me levarem de volta. Helena acompanha meus passos, sem se preocupar com
o cabelo ou maquiagem em seu rosto.
— Maia irá mesmo nesse
casamento? — pergunta ela, passado algum tempo em silêncio.
— Sim — digo, afastando
meus pensamentos. — É, ela vai. Espero, na verdade.
Helena não responde de
volta, mas escuto um som vindo de sua garganta. Não entendo porque todo esse
silêncio. Costumávamos conversar por horas e horas, como se nunca faltasse
assunto. Agora, porém, tudo parece diferente. Sinto como se Helena — ou talvez
eu — fosse apenas um estranho que acabei de conhecer, temendo tocar em um ponto
frágil.
— Por que está usando
maquiagem hoje? — pergunto, virando-me para encará-la, em uma tentativa de
diminuir toda tensão no ar.
— Como assim?
— Você não usa
maquiagens, ou usa? Não era assim que eu me lembrava...
— Claro que eu uso — seus
olhos me encaram, franzidos.
— Não são apenas sombras?
Quero dizer, nunca te vi com tons rosados e claros. Aderiu ao programa de
proteção à princesa, foi?
— O que? Não. — um curto
sorriso se faz presente. — Acho que foi idiotice, na verdade. Não deveria ter
feito.
— Não diga isso. Eu
gostei. Achei que ficou diferente.
— Diferente?
— É, sabe? Como se uma
vampira virasse uma princesa.
Seu sorriso se abre ainda
mais.
— Não pareço uma princesa
— diz.
— Não digo uma princesa
de filmes infantis, como clássicos da Disney.
É diferente. Acho que está mais para princesa maléfica, sabe? Como se pudesse
salvar o mundo e depois escravizar toda humanidade. Eu gostei. Isso serve?
Ela concorda com a
cabeça, achando graça em meu comentário.
— Acho que sim — diz,
ainda sorrindo.
Nossos passos são calmos,
mesmo depois de sentir pingos maiores e mais velozes. Helena parece tão
despreocupada quanto eu. O clima tenso já não paira no ar, porém, algo não sai
da minha mente. Ainda não consigo acreditar em minha falta de atenção, sem
notar que David pudesse gostar de garotos. Tudo bem que ele nunca se interessou
por uma garota antes e nunca o vi saindo com uma garota, mas nunca passou pela
minha cabeça que ele pudesse ser gay.
— Maia quer que eu finja
ser um falso namorado na escola segunda-feira — digo, enquanto minha mente
tenta processar informações que recebi recentemente.
— Namorado?
— Mãos dadas, eu acho.
Como se... De fato fossemos namorados, para falar a verdade.
— Por quê? — ela
pergunta.
— Bem... Não sei. Ela
disse que seria bom para intimidade, se não me engano.
— Não seria mais fácil
conversar e saber o interesse um do outro?
— Bem... — caminho por
mais alguns metros antes de responder. Minha mente não trabalha tão bem assim.
— Sim, eu acho. Ela também falou sobre testemunhas, que assim meu primo não irá
desconfiar que não somos namorados de verdade.
— E precisa ser namorada
para ir ao casamento?
Não respondo de imediato.
Minha mãe também me fez pensar por algum tempo, e, ainda assim, não obtive
respostas.
— Confesso que estou tão
perdido quanto você. Mas não acho que seria ruim. Pela primeira vez eu poderei
saber como é namorar alguém, não é? — sorrio, virando em sua direção.
Mas Helena não responde.
***
Segunda-feira. Medo e
ansiedade tomam conta de mim. Maia surge em minha mente, sendo meu primeiro
pensamento do dia. Ontem recebi um telefone, dizendo para esperá-la na porta da
escola, que assim iria me encontrar. Não posso afirmar que estou tranquilo com
essa situação. Nunca tive uma namorada antes. Nunca nem sequer andei de mão
dada com alguém antes.
Não
tenha medo de julgamentos, idiota.
Casa vazia. Me olho no
espelho do quarto antes de poder seguir para o ponto de ônibus. Pareço uma
lombriga que tomou forma humana. Não posso dizer que estou confiante para
encontrar com Maia hoje. E se ela reparar em mim e perceber que não sou bom o
suficiente? Ou atraente o suficiente? Esse reflexo no espelho não está nada
agradável de enxergar. Não quero parecer um idiota desesperado e sem confiança
para andar com alguém na escola.
Com muito custo, tomado pelo
medo e insegurança, saio de casa. Meu coração bate forte no peito. Suor escorre
em minha testa. Troquei de camisa três vezes antes de aceitar que não adiantaria,
pois irei molhá-la da mesma forma. Encontro Helena e David sentados,
conversando. Aproximo-me.
— Parece que está indo
para uma guerra. Aconteceu alguma coisa? — pergunta David, assim que me sento
do seu lado.
— Sim. Aconteceu alguma
coisa — digo, extremamente tenso.
David ergue uma das
sobrancelhas em minha direção. Porém, não consigo respondê-lo.
— Caio vai se passar por
um falso namorado hoje — responde Helena, evitando que outros alunos possam
escutá-la.
— Como assim? — David
abre a boca, como se não acreditasse.
— Maia quer fingir ser
uma namorada. Então hoje será o dia que eles andarão de mão dadas na escola —
termina em um sussurro.
Só de escutar sinto um
calafrio percorrer minhas espinhas. Eu realmente não estou pronto para esse
longo passo em minha vida.
— Meu amigo está
namorando? — David exagera no tom e permite que algumas pessoas em volta possam
se virar em minha direção, deixando-me ainda mais desconfortável.
Abaixo minha cabeça
rapidamente, afundando-a entre os joelhos.
Respire
fundo. Não será nada de mais. Ninguém escutou.
— Aí, Forrest Gump!
Encontrou um parceiro ideal, foi? — grita Mike, sentando no fundo do ônibus.
Isso
não está acontecendo. Apenas uma ilusão da minha mente.
Conto até três, ainda que
não faça diferença. Suor pinga no chão do ônibus. O que está acontecendo
comigo? Por que todo esse trabalho para sair com alguém?
Escuto alguém se
aproximar. Passos pesados como chumbo.
— Sai daqui, idiota! —
Helena xinga.
Idiota?
Quem está aí?
Respiro fundo.
Um.
Dois.
Três.
Inspiro e expiro.
Sinto uma mão em minhas
costas. Minha barriga é tomada pela sensação de frio. Uma risada ecoa no ar.
Aperto meus olhos fechados, desejando que ninguém possa estar presente.
— Caio? — David me chama.
— Está tudo bem?
Não
está tudo bem. Sinto vontade em dizer, mas não consigo.
Solto o ar mais uma vez, lentamente. Penso em Maia, e não gosto do que vejo.
Não quero andar de mão dada com ela pela escola. Seria constrangedor. Não
estamos namorando de verdade. Não quero ser um fantoche. Não estou pronto para
sair com alguém, ainda que seja de mentira. Pessoas olharão meu rosto e meu
corpo, principalmente por estar acompanhando de uma garota. Uma garota bonita.
— Caio? — David chama meu
nome novamente.
Será
que estou pensando demais? Por que seria um problema andar com Maia pelos
corredores da escola?
Dois amigos. Apenas dois
amigos. Não tem porque eu temer.
Inspiro e expiro.
Calma,
idiota. Não será nada de mais.
— Caio? Está tudo bem? —
Dessa vez é Helena. — Não vai descer?
Descer?
Lentamente, abrindo meus
olhos, ergo minha cabeça. Ninguém está presente. Apenas David e Helena, de pé,
esperando-me.
— Tudo bem? — pergunta
David, abaixando-se para poder me encarar nos olhos. — Eles já foram embora. —
Um sorriso se faz presente.
Engulo em seco. Ainda
estou movido pela sensação ruim. Pelo frio ruim. Coloco-me de pé, segurando
minha mochila.
— Ela já está te
esperando — diz ele, levantando-se e apontando com a cabeça, para o lado de
fora do ônibus. Maia está com o celular na mão, na porta da escola, sorrindo.
— Então. Preparado? —
pergunta David.
Helena ergue uma das
sobrancelhas, esperando uma resposta.
— Acha que eu deveria
fazer isso? — pergunto.
— Você quer fazer isso? —
Helena se aproxima.
— Não sei se quero. Eu
quero. Mas não tenho certeza absoluta. Estou com medo.
— Caio. Respira, tudo
bem? Medo não mostra quem você é. Sabe disso. É uma sensação. Não adianta
pensar, pensar e pensar. Realidade não condiz com pensamentos. Só vai saber se
você sair por aquela porta e encontrar com aquela bela garota que está te
esperando. O que me diz? — David tenta me ajudar com suas palavras. Sempre
parece pronto para consolar ou aconselhar alguém.
Concordo com a cabeça,
engolindo em seco.
— Eu posso fazer isso,
não posso? — pergunto, tendo uma leve chama acesa em meu peito. Esperança.
— Sim, meu amigo. Você
pode. E deve fazer.
Helena está de pé, e eu
encaro seus olhos. Parece tão tranquila. Gostaria de ser como ela.
— Então. Pronto? —
pergunta David. — Uma garota precisa de você. — Sorri.
Uma
garota precisa de mim.
— Certo — respondo.
Afastando todo tipo de
pensamento importuno, caminho para fora do ônibus. Sou tomado pela luz solar,
deixando-me momentaneamente cego. Meus passos, embora trêmulos, seguem em
direção à garota de tênis escuro e cabelo solto. Retiro o suor do rosto, usando
a manga da camisa para isso. Não posso vacilar agora.
Eu
consigo. Eu consigo.
Menos de um metro de
distancia. Minha boca se abre.
— Maia. Oi — digo,
sorrindo. Muitos alunos estão em volta. Isso pouco importa.
Ela se vira em minha
direção.
— Oi — sorri.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 31
Comments