Capítulo 19

— Tem certeza que ficará tudo bem? —

pergunto, observando o sorriso do meu amigo, possivelmente aliviado.

— Absoluta — responde

David, de forma convicta, no entanto.

— Tem algo que eu poderia

fazer por você? Precisa de roupas novas? Se quiser podemos sair essa semana,

assim você escolhe o que precisa comprar. Acha que eu devo me comportar

diferente? Já tem um namorado?

— Caio. Não. — David

continua sorrindo. — Está tudo bem. É sério. Na verdade tudo vai ser como

sempre esteve.

— Então sem namorado?

— Caio... Meu Deus —

David fecha os olhos por um rápido momento, como se estivesse constrangido por

minhas palavras. — Eu entendo. É um choque. Mas não se preocupe, nada vai

mudar. E se eu tiver um namorado um dia, por algum milagre que seja, você será o

primeiro a saber. Tudo bem?

Observo meu amigo nos

olhos antes de poder dizer algo. Nunca o vi tão calmo antes. Sinto que seu

humor está elevado; confiante, eu diria. Não sei por quanto tempo ele precisou

manter esse segredo. Desde sempre? Gostaria de saber.

— Como vai ser, idiota? —

grita Helena, esperando-me, do outro lado da rua. — Vai ficar conversando ou

vamos voltar para casa ainda hoje?

— Fico feliz que tenha me

contado isso — digo, ignorando Helena, sentindo meus lábios secos. — Bem, não

foi você quem me contou, mas agradeço assim mesmo. Seria errado perguntar se

você sempre... Você sabe...

— Sim, sempre — responde

ele, antes mesmo que eu possa completar minha pergunta. Minha boca se abre, mas

ele logo faz questão de falar, interrompendo-me: — E não se preocupe com isso.

Eu sempre estive bem com isso e estarei bem futuramente.

— Desculpe — peço

timidamente. — Não sei como eu devo falar agora que eu sei que você é... —

Sinto algo em minha garganta, como um nó formado, impossibilitando que eu

termine minhas frases.

— Que sou gay? — David

faz questão de olhar dentro dos meus olhos. Então sorri. — Está tudo bem. Mesmo.

E não precisa mudar por isso, muito menos ficar sem jeito como está agora. Só

quero que continue o mesmo. Tudo bem? Pode fazer isso? Por mim?

Escuto um dos seus irmãos

gritar, no lado de dentro da casa. Fora dela, na rua, tudo está quieto. Apenas

Helena está presente, impaciente e visivelmente com raiva. O céu já não está

mais o mesmo, apresentando nuvens escuras, diferente do sol que tomava conta

mais cedo. Tudo indica que uma chuva caíra sobre essa cidade.

— Vamos logo, Caio! —

Helena parece mesmo incomodada com minha conversa.

David estende o braço em

minha direção, esperando que eu possa apertar sua mão.

— Tudo bem. Serei o mesmo

com você — dou um ligeiro sorriso, pegando-o pela mão e puxando-o para

abraçá-lo. — Se cuida. Pode fazer isso? Por mim? — digo em seu ouvido, rindo.

— Muito engraçado —

ironiza David. — Agora precisa ir, ou Helena acabará com você. — Faz um alerta.

Eu o solto, e concordo

com um leve aceno de cabeça, ajeitando a roupa em meu corpo.

— Anda! — diz ele, em uma

tentativa de me apressar. — Não quero te vê no caixão.

Sorrio.

Consigo escutar Helena

bufar, inquieta. Desço os poucos degraus da entrada da casa de David e caminho

até o outro lado da rua, exatamente onde está Helena, batendo os pés no chão. Não

gostaria de afirmar isso, e muito menos diria para ela, mas fica uma graça

quando está com raiva. Suas bochechas se incham e seus lábios apresentam um

leve biquinho, quase como um peixinho.

Viro-me para encarar

David outra vez, do outro lado, mas a porta já está fechada.

— O que está esperando,

idiota? Anda logo! — Helena eleva seu tom de voz, mesmo comigo do seu lado.

Agradeço por ninguém poder

ouvi-la agora.

Sinto um forte vento

acertar meu corpo, enquanto nossos passos seguem de forma tranquila e sem desafio

pela calçada da rua. Gosto dessa sensação. Liberdade. Por muitas vezes, perdido

em devaneios fantasiosos e improváveis, me imagino voando pelos céus, como um

pássaro sem destino. Poder seguir para qualquer lugar do mundo, sem medo de

cair. O vento, o frio na barriga, os olhos atentos e o entusiasmo percorrer

cada veia do meu corpo. Fugir de toda realidade que me cerca. Esquecer-me de

todos os problemas e viajar o mundo, sem me preocupar com o que de ruim poderia

me acontecer.

Mas sei que não será

possível. É cansativo ser apenas um ser humano frágil e indefeso.

Percebo que estou tempo

demais em silêncio.

— Desde quando você

sabia? — pergunto, limpando minha garganta. Não tenho certeza se comecei com pé

direito essa conversa.

Escuto a respiração

pesada de Helena.

— Não muito tempo. David

não é muito de contar sobre ele mesmo, como você bem sabe.

— Sim. Agora eu sei —

respiro fundo. — Sentiu que deveria ser diferente com ele?

— Por quê? — Helena

pergunta, mas logo faz questão de completar: — Ele gostar de garotos não faz

dele uma pessoa diferente. Ainda é o mesmo idiota que gosta de peixes gigantes.

Não respondo. Algo dentro

de mim, medo ou complexidade do assunto, diz que eu deveria ser uma pessoa

melhor com meu amigo agora. Mas Helena está mesmo certa. David gostar de

garotos não faz dele uma pessoa diferente. Além do mais, ele me pediu para que

eu não mudasse com ele. Acho que eu deveria seguir seu desejo.

— David ficará feliz se

você tentar não agradá-lo — diz Helena, enquanto caminhamos pela rua vazia e

silenciosa. — E acho que é melhor assim. Não tente se mostrar bom, tudo bem?

David não está com uma doença terminal para receber tratamento de luxo.

Consigo sorrir com seu

humor, embora eu saiba que ela não teve pretensão de soar engraçado.

— Espero que eu possa

conseguir — digo. — E sim, você está certa.

— Estou sempre certa — diz

ela, me arrancando uma ligeira gargalhada.

Voltar para casa andando talvez

não tenha sido uma boa opção. Alguns pingos de chuva começam a acertar minha

cabeça. Minha mãe não pôde me buscar, o que sobrou para os meus pés e minhas

pernas me levarem de volta. Helena acompanha meus passos, sem se preocupar com

o cabelo ou maquiagem em seu rosto.

— Maia irá mesmo nesse

casamento? — pergunta ela, passado algum tempo em silêncio.

— Sim — digo, afastando

meus pensamentos. — É, ela vai. Espero, na verdade.

Helena não responde de

volta, mas escuto um som vindo de sua garganta. Não entendo porque todo esse

silêncio. Costumávamos conversar por horas e horas, como se nunca faltasse

assunto. Agora, porém, tudo parece diferente. Sinto como se Helena — ou talvez

eu — fosse apenas um estranho que acabei de conhecer, temendo tocar em um ponto

frágil.

— Por que está usando

maquiagem hoje? — pergunto, virando-me para encará-la, em uma tentativa de

diminuir toda tensão no ar.

— Como assim?

— Você não usa

maquiagens, ou usa? Não era assim que eu me lembrava...

— Claro que eu uso — seus

olhos me encaram, franzidos.

— Não são apenas sombras?

Quero dizer, nunca te vi com tons rosados e claros. Aderiu ao programa de

proteção à princesa, foi?

— O que? Não. — um curto

sorriso se faz presente. — Acho que foi idiotice, na verdade. Não deveria ter

feito.

— Não diga isso. Eu

gostei. Achei que ficou diferente.

— Diferente?

— É, sabe? Como se uma

vampira virasse uma princesa.

Seu sorriso se abre ainda

mais.

— Não pareço uma princesa

— diz.

— Não digo uma princesa

de filmes infantis, como clássicos da Disney.

É diferente. Acho que está mais para princesa maléfica, sabe? Como se pudesse

salvar o mundo e depois escravizar toda humanidade. Eu gostei. Isso serve?

Ela concorda com a

cabeça, achando graça em meu comentário.

— Acho que sim — diz,

ainda sorrindo.

Nossos passos são calmos,

mesmo depois de sentir pingos maiores e mais velozes. Helena parece tão

despreocupada quanto eu. O clima tenso já não paira no ar, porém, algo não sai

da minha mente. Ainda não consigo acreditar em minha falta de atenção, sem

notar que David pudesse gostar de garotos. Tudo bem que ele nunca se interessou

por uma garota antes e nunca o vi saindo com uma garota, mas nunca passou pela

minha cabeça que ele pudesse ser gay.

— Maia quer que eu finja

ser um falso namorado na escola segunda-feira — digo, enquanto minha mente

tenta processar informações que recebi recentemente.

— Namorado?

— Mãos dadas, eu acho.

Como se... De fato fossemos namorados, para falar a verdade.

— Por quê? — ela

pergunta.

— Bem... Não sei. Ela

disse que seria bom para intimidade, se não me engano.

— Não seria mais fácil

conversar e saber o interesse um do outro?

— Bem... — caminho por

mais alguns metros antes de responder. Minha mente não trabalha tão bem assim.

— Sim, eu acho. Ela também falou sobre testemunhas, que assim meu primo não irá

desconfiar que não somos namorados de verdade.

— E precisa ser namorada

para ir ao casamento?

Não respondo de imediato.

Minha mãe também me fez pensar por algum tempo, e, ainda assim, não obtive

respostas.

— Confesso que estou tão

perdido quanto você. Mas não acho que seria ruim. Pela primeira vez eu poderei

saber como é namorar alguém, não é? — sorrio, virando em sua direção.

Mas Helena não responde.

***

Segunda-feira. Medo e

ansiedade tomam conta de mim. Maia surge em minha mente, sendo meu primeiro

pensamento do dia. Ontem recebi um telefone, dizendo para esperá-la na porta da

escola, que assim iria me encontrar. Não posso afirmar que estou tranquilo com

essa situação. Nunca tive uma namorada antes. Nunca nem sequer andei de mão

dada com alguém antes.

Não

tenha medo de julgamentos, idiota.

Casa vazia. Me olho no

espelho do quarto antes de poder seguir para o ponto de ônibus. Pareço uma

lombriga que tomou forma humana. Não posso dizer que estou confiante para

encontrar com Maia hoje. E se ela reparar em mim e perceber que não sou bom o

suficiente? Ou atraente o suficiente? Esse reflexo no espelho não está nada

agradável de enxergar. Não quero parecer um idiota desesperado e sem confiança

para andar com alguém na escola.

Com muito custo, tomado pelo

medo e insegurança, saio de casa. Meu coração bate forte no peito. Suor escorre

em minha testa. Troquei de camisa três vezes antes de aceitar que não adiantaria,

pois irei molhá-la da mesma forma. Encontro Helena e David sentados,

conversando. Aproximo-me.

— Parece que está indo

para uma guerra. Aconteceu alguma coisa? — pergunta David, assim que me sento

do seu lado.

— Sim. Aconteceu alguma

coisa — digo, extremamente tenso.

David ergue uma das

sobrancelhas em minha direção. Porém, não consigo respondê-lo.

— Caio vai se passar por

um falso namorado hoje — responde Helena, evitando que outros alunos possam

escutá-la.

— Como assim? — David

abre a boca, como se não acreditasse.

— Maia quer fingir ser

uma namorada. Então hoje será o dia que eles andarão de mão dadas na escola —

termina em um sussurro.

Só de escutar sinto um

calafrio percorrer minhas espinhas. Eu realmente não estou pronto para esse

longo passo em minha vida.

— Meu amigo está

namorando? — David exagera no tom e permite que algumas pessoas em volta possam

se virar em minha direção, deixando-me ainda mais desconfortável.

Abaixo minha cabeça

rapidamente, afundando-a entre os joelhos.

Respire

fundo. Não será nada de mais. Ninguém escutou.

— Aí, Forrest Gump!

Encontrou um parceiro ideal, foi? — grita Mike, sentando no fundo do ônibus.

Isso

não está acontecendo. Apenas uma ilusão da minha mente.

Conto até três, ainda que

não faça diferença. Suor pinga no chão do ônibus. O que está acontecendo

comigo? Por que todo esse trabalho para sair com alguém?

Escuto alguém se

aproximar. Passos pesados como chumbo.

— Sai daqui, idiota! —

Helena xinga.

Idiota?

Quem está aí?

Respiro fundo.

Um.

Dois.

Três.

Inspiro e expiro.

Sinto uma mão em minhas

costas. Minha barriga é tomada pela sensação de frio. Uma risada ecoa no ar.

Aperto meus olhos fechados, desejando que ninguém possa estar presente.

— Caio? — David me chama.

— Está tudo bem?

Não

está tudo bem. Sinto vontade em dizer, mas não consigo.

Solto o ar mais uma vez, lentamente. Penso em Maia, e não gosto do que vejo.

Não quero andar de mão dada com ela pela escola. Seria constrangedor. Não

estamos namorando de verdade. Não quero ser um fantoche. Não estou pronto para

sair com alguém, ainda que seja de mentira. Pessoas olharão meu rosto e meu

corpo, principalmente por estar acompanhando de uma garota. Uma garota bonita.

— Caio? — David chama meu

nome novamente.

Será

que estou pensando demais? Por que seria um problema andar com Maia pelos

corredores da escola?

Dois amigos. Apenas dois

amigos. Não tem porque eu temer.

Inspiro e expiro.

Calma,

idiota. Não será nada de mais.

— Caio? Está tudo bem? —

Dessa vez é Helena. — Não vai descer?

Descer?

Lentamente, abrindo meus

olhos, ergo minha cabeça. Ninguém está presente. Apenas David e Helena, de pé,

esperando-me.

— Tudo bem? — pergunta

David, abaixando-se para poder me encarar nos olhos. — Eles já foram embora. —

Um sorriso se faz presente.

Engulo em seco. Ainda

estou movido pela sensação ruim. Pelo frio ruim. Coloco-me de pé, segurando

minha mochila.

— Ela já está te

esperando — diz ele, levantando-se e apontando com a cabeça, para o lado de

fora do ônibus. Maia está com o celular na mão, na porta da escola, sorrindo.

— Então. Preparado? —

pergunta David.

Helena ergue uma das

sobrancelhas, esperando uma resposta.

— Acha que eu deveria

fazer isso? — pergunto.

— Você quer fazer isso? —

Helena se aproxima.

— Não sei se quero. Eu

quero. Mas não tenho certeza absoluta. Estou com medo.

— Caio. Respira, tudo

bem? Medo não mostra quem você é. Sabe disso. É uma sensação. Não adianta

pensar, pensar e pensar. Realidade não condiz com pensamentos. Só vai saber se

você sair por aquela porta e encontrar com aquela bela garota que está te

esperando. O que me diz? — David tenta me ajudar com suas palavras. Sempre

parece pronto para consolar ou aconselhar alguém.

Concordo com a cabeça,

engolindo em seco.

— Eu posso fazer isso,

não posso? — pergunto, tendo uma leve chama acesa em meu peito. Esperança.

— Sim, meu amigo. Você

pode. E deve fazer.

Helena está de pé, e eu

encaro seus olhos. Parece tão tranquila. Gostaria de ser como ela.

— Então. Pronto? —

pergunta David. — Uma garota precisa de você. — Sorri.

Uma

garota precisa de mim.

— Certo — respondo.

Afastando todo tipo de

pensamento importuno, caminho para fora do ônibus. Sou tomado pela luz solar,

deixando-me momentaneamente cego. Meus passos, embora trêmulos, seguem em

direção à garota de tênis escuro e cabelo solto. Retiro o suor do rosto, usando

a manga da camisa para isso. Não posso vacilar agora.

Eu

consigo. Eu consigo.

Menos de um metro de

distancia. Minha boca se abre.

— Maia. Oi — digo,

sorrindo. Muitos alunos estão em volta. Isso pouco importa.

Ela se vira em minha

direção.

— Oi — sorri.

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