Escuto barulho no andar debaixo da casa.
Minha mãe. Estou extremamente concentrado agora, segurando de maneira firme um
controle de videogame e olhos vidrados sobre uma grande TV, não posso pausar o
jogo para vê-la. Mas isso pouco importa, certamente ela subirá para saber como
estou.
— Acorda, Peter! — grita
Black Jack. — Deixou escapar dois Velociraptor.
— Cala boca, bundão. Não
está vendo que estou ocupado agora? Minha vó entrou no quarto. Sabe que odeio
que me vejam de cueca — rebate Peter.
— Eca, cara. — John faz
um som de nojo, assim como todos nós. — Sorte dela não enxergar muito bem.
Um sorriso se faz em meu
rosto.
— Muito engraçado, John.
Muito engraçado — ironiza Peter.
22h17. Faz uma hora e
meia que estamos matando dinossauros. Estou em segundo lugar, logo atrás de
Olhos De Aço. Uma menina desconhecida capaz de matar qualquer dinossauro que
surge em seu caminho. Confesso que tenho grande admiração por essa garota,
embora eu prefira vê-la como uma rival.
— Olhos De Aço está na
frente, galera. Acorda, Peter! — Back Jack parece mesmo incomodado com Peter.
Não esperava ser diferente, sempre escolhe um para ser o culpado da vez. — Vamos
lá, Caio, você consegue. Basta matar mais quatro dinossauros. John, me dê
cobertura. Ajude o Caio, Peter. Não deixe que morra agora. — Black Jack é o que
chamamos de líder da equipe, embora ninguém o conheça de verdade. Sem nome, sem
endereço e sem rosto. Um verdadeiro mistério, eu diria. — Atira, Peter! Atira!
Meus dedos estão ágeis. Mato
um, dois, três Tiranossauros Rex em
questão de segundos. Falta apenas um para terminarmos o jogo. Estou em primeiro
lugar, deixando Olhos De Aço para trás. Mordo minha língua, como uma forma de
focar no jogo.
— Estou fora, galera —
avisa Peter. — Pisado por um Braquiossauro. Merda!
— Não! — vocifera John
logo depois. — Pra mim já era, turma.
Respiro fundo. Dois
jogadores estão fora.
Observo Olhos De Aço bem
na minha frente, correndo na direção de um Espinossauro.
Não posso deixar que ela se aproxime dele antes de mim.
— Corre, Caio. Corre! —
grita alguém. Não consigo saber quem é agora.
Sinto meus dedos doerem,
enquanto pressiono fortemente alguns dos botões do controle. Minha língua não
para quieta em minha boca.
Rápido.
— Pega ela, Caio! — ouço
gritos em meu nome. — Pega ela!
Estou próximo. Muito
próximo. Olhos De Aço está incrivelmente armada. Toda sua armadura reluz em
ouro. Uma pesada arma dança em seus braços. Espinossauro é o um dos maiores carnívoros que já existiu, mesmo que prefira fugir a
enfrentar dois jogadores que avançam em sua direção.
— Você consegue, garoto —
sussurra Black Jack.
— Isso! Isso! — Peter
está animado. — Corre, Caio! Corre!
Dois metros. Um metro.
Estou lado a lado com Olhos De Aço. Minha armadura prateada se destaca no meio
tantas de árvores e obstáculos pelo caminho. Falta apenas trinta segundos para
o fim do jogo. Espinossauro continua
fugindo, o mais rápido possível. Não posso deixar que escape. Uma equipe está
torcendo por mim agora.
— Está quase, garoto.
Vamos lá.
Ultrapasso Olhos De Aço.
Menos de dez segundos para o fim do jogo. Ergo minha arma. Não posso vacilar
agora.
Três...
Dois...
Atiro antes da contagem
final.
Silêncio.
Escuto gritos em meu nome
e comemoração exagerada. Alvo eliminado, com apenas um tiro certeiro. Suspiro,
sentindo-me aliviado. Olhos De Aço ficou em segundo lugar, pela primeira vez
desde que entrou em nossa competição. Por algum motivo não consigo gritar
agora.
— Caio! Caio! Caio! —
dizem em um uníssono.
Estou sorrindo.
— Agora, um discurso do
nosso campeão — avisa Black Jack.
Discurso?Imediatamente
sinto suor escorrer em minha testa. Todo alívio que antes eu sentia se
transforma em nervosismo.
Logo atrás de mim, antes
que minha boca pudesse se abrir, escuto o barulho da porta se abrindo.
— Está tudo bem, filho? —
minha mãe.
— Desculpe, galera.
Preciso ir — tiro o headset da orelha
e desligo o videogame, deixando todos os meus amigos para trás. — Mãe. Então...
— Então... — Seus cenhos
se franzem em minha direção, seguido por um curto sorriso.
— Voltou mais cedo hoje —
digo, ajeitando meu corpo na cama.
Ela se aproxima. Seu
rosto está limpo, sem maquiagem. Mantém o cabelo preso em um rabo-de-cavalo.
Vejo cansaço em seus olhos.
Ela senta perto de mim,
afundando boa parte do colchão.
— Como você está? —
pergunta, suspirando.
— Bem. É, vou bem —
respondo. Fragmentos de inquietação estampam em meu rosto. — Como foi o
atendimento hoje?
— Foi um... Babado — ela
sorri. — E você? Sem problemas hoje?
Eu não tinha esse hábito.
Não gostava que tocassem em assuntos que me envolviam no meio. Nunca me achei
digno de ser o centro das atenções ou de preocupações. Sempre abaixei minha
cabeça e respondi que tudo estava bem. Me sentia constrangido quando alguém
perguntava como fora o meu dia ou o que de bom eu fiz durante toda tarde.
Porém, hoje estou bem.
Não preciso mentir nem omitir um acontecimento.
— Sem problemas hoje —
concordo. — Bem, não para mim, eu acho. Helena está saindo com um garoto, então
para ela pode ser um problema.
Minha mãe coloca uma
mecha do cabelo atrás da orelha.
— E aí? — parece curiosa.
— Não conseguiu conversar
com ele quando apareceu no cinema. Ficou atrás do balcão, encolhida.
— Tadinha. Ela está bem?
— Depois de xingar até
nossa décima futura geração, acredito que vai ficar bem sim.
— E é um rapaz digno de
ter Helena? — pergunta, sorrindo. — Sabemos como é estressada aquela menina. Certamente
ele precisa de muita paciência, eu diria.
— Não sei ainda. Estudou
comigo por algum tempo, ficando sempre no fundo da sala com um fone de ouvido.
Agora está mais... Evoluído, sabe? Cabelo grande, roupas rasgadas e camisetas
pretas com estampas de caveira.
— Assim que você vê
evolução?
Respiro fundo. Encaro uma
das minhas pernas, que movimenta em um ritmo acelerado.
— Parece que perdeu o
medo, me entende? — Ergo o olhar e enxergo os mesmos olhos escuros que tanto
admirei na vida.
— Ou pode ser que ele
apenas conseguiu uma maneira de afastar pessoas e esconder o verdadeiro medo.
— Sabe, mãe. Ainda acho
que deveria ser palestrante motivacional.
— De novo? Nem vem com
essa. — Minha mãe me dá um leve empurrão no ombro. — Estou muito bem com meus
clientes e cuidando dos dentes de todos eles. Aliás, filho, por mais que um
dente não pareça ter solução, você sempre poderá arrancar ele e colocar um
novinho. Não tenha medo de trocar de dente.
— Diana, palestrante
motivacional. Cuidando sempre do seu dente e da sua saúde mental. Não é que até
rimou? — Um sorriso se abre em meu rosto.
— Agora chega desse
assunto e é hora de você descansar. Nada de ficar matando dinossauros, em?
Estou de olho. — Coloca-se de pé. Salto alto e calça jeans. Nem mesmo trocou de
roupa para me visitar. Me sinto culpado por não a deixar descansar da melhor
maneira possível.
— Você que manda,
palestrante — respondo. — Boa noite, mãe.
— Boa noite, filho.
Pouco tempo depois, estou
só. Luz apagada e mãos entrelaçadas atrás da cabeça. Sinto um fraco vento atingindo
meu corpo, vindo de uma janela à minha direita. Por algum motivo, ausência de
luz ou silêncio absoluto, me sinto mais leve. Já faz algum tempo que não
converso com um terapeuta, desde o dia em que avisei minha mãe que eu não precisava
mais de um. Para ser sincero, eu apenas não queria causar mais problemas
financeiros para minha família.
Hoje foi meu segundo dia
de aula. Por sorte de um destino incompreendido, Mike faltou e não compareceu
para me atormentar. Seus amigos não são corajosos o bastante para enfrentar
Helena sozinhos, então sempre permanecem de boca fechada e caminham por entre
os corredores como se estivessem de luto. David aproveitou essa rara
oportunidade e contou por horas sobre seu sonho de se formar em biologia e se
aventurar em mares desconhecidos, em busca de baleias perdidas e resgatá-las do
que ele chama de mundo desvalorizado e sem coração.
Helena preferiu não tocar
no assunto sobre seu novo namorado, mesmo sendo perguntada por David. Ele optou
por não levar um soco na boca, como ela deixou bem claro se perguntasse mais
uma vez. E eu? Bem, me mantive o mesmo garoto quieto e amedrontado de sempre,
esperando um dia onde todos os meus anseios sairão de mim e poderei por fim
respirar aliviado e ser uma pessoa sem medo da vida.
Ainda não estou pronto
para enfrentar o que a vida me espera lá fora.
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Atualizado até capítulo 31
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