Escuto passos seguirem em direção à porta
da sala. Meu corpo continua inerte, esperando o momento exato de pegar minha
mochila e me levantar. David faz o mesmo, sabendo perfeitamente o tempo que eu demoro
em sair da escola — 15 ou 20 minutos, dependendo da situação que eu me
encontro; o que não posso dizer ser propício no momento. Diferente de Helena,
que precisa se apressar para o trabalho.
— Tchau, babacas — diz
ela enquanto se desvencilha de muitos estudantes que atrapalham seu caminho. —
Sai da frente, ô merda.
Curvo minha cabeça e
apoio a testa sobre meus braços dobrados na mesa, fechando meus olhos. Ainda
consigo ouvir passos seguindo para fora da sala, assim como cadeiras sendo
arrastadas e conversas nos corredores.
Há algum tempo, quando eu
não tinha uma terapeuta com quem conversas ou amigos para compartilhar boa
parte do tempo, esperava que toda a escola se esvaziasse por completo, para
então eu poder seguir para minha casa. Não havia David para me distrair ou
esperar e nem Helena para me proteger. Apenas eu, um garoto solitário e
problemático; além do zelador, que ansiava minha saída para trancar toda
escola.
Agora percebo o quão inconveniente
eu me tornara nesses últimos anos.
Minutos depois, sinto um
toque em meu ombro, me despertando. David. Pelo visto ninguém mais está por perto,
apenas o professor, Edgar, que está sentado, com uma pilha de papéis em cima da
mesa. Ajeita os óculos na ponta do nariz e encara meus olhos por algum tempo.
— O que estão esperando?
— pergunta ele, olhando de um lado para o outro. Sua voz se mantém suave,
apesar de tudo. — Se não me engano, o sinal soou tem dez minutos. — Confere o
relógio no pulso.
Penso em respondê-lo, mas
tudo o que consigo fazer é imaginar o diálogo acontecendo em minha mente: eu
dizendo que está tudo bem e pegando minha mochila do chão, levantando-me com um
sorriso no rosto, enquanto invento uma desculpa, alegando que precisava apenas
de um tempo para respirar.
Lamento por tudo não
passar de devaneios diários.
Ele continua olhando
diretamente para mim, e eu em silêncio, sentindo minha garganta se apertar cada
vez mais.
— Não se preocupem —
responde Edgar por fim, provavelmente sem entender minha falta de resposta. —
Podem ficar o tempo que quiserem. Como costumo dizer, o tempo de estudo nunca é
o suficiente.
— Não é isso. É que o
Caio não... — começa David bem atrás mim, mas, sabendo que eu não gosto que
toque nesse assunto, não termina a frase. Ninguém precisa saber que tem um
esquisitão sentado na primeira cadeira, muito menos um professor que passará
todo o restante do ano comigo.
Sem responder, temendo
que mais perguntas possam ocorrer em minha direção, pego minha mochila e me
ponho de pé. Encaro o professor por um rápido instante antes de mirar o chão
abaixo de mim, seguindo para fora da sala. Escuto David fazer o mesmo,
empurrando a cadeira para trás.
— Desculpe — diz ele para
Edgar, que parece não entender absolutamente nada. — Caio, espera!
Merda.
— Caio! — David corre
para me ajudar. É assim que ele costuma fazer quando algo sai do controle.
Ignoro seu chamado e
cruzo o corredor, saindo pela porta da frente em questão de segundos, descendo
os poucos degraus da entrada. Não está um dia tão quente assim, mas sinto todo
meu corpo suar.
Meus passos continuam
apressados, enquanto minha cabeça se mantém curvada. Eu sabia que não era uma
boa ideia sair de casa. Nunca é uma boa ideia.
— Caio!
Alunos, ainda que poucos,
se mantém presentes, em pequenos grupos ou sentados nos bancos ao redor da
escola, repassando tudo o que aprendeu. Posso observá-los com o canto do olho e
senti-los olhando para mim.
— Caio!
Sem me dar conta do
caminho que estou seguindo, sinto uma pontada de dor atingir minha testa, assim
que meu corpo se choca com alguém. Percebo livros e cadernos caírem no chão.
Merda!
— Ai, que droga! O que
foi isso? Olha por onde anda, idiota. — Uma voz feminina ecoa em minha direção,
alta o suficiente para me deixar envergonhado. — Perdeu a visão, foi?
Ergo minha cabeça, que
continua doendo, enxergando olhos verdes, no mesmo tom que o colar em seu
pescoço. Suas sobrancelhas estão juntas, demonstrando evidentes sinais de
raiva.
Minha boca se abre, e, obviamente,
não digo nada. É uma garota que está em minha frente. Uma garota extremamente
enfurecida por eu ter batido com tudo em seu corpo, principalmente por ter derrubado
todos os seus materiais escolares.
Mais uma vez me imagino
pedindo desculpas e me ajoelhando para ajudá-la, dizendo que foi tudo culpa
minha. Mas não é o que faço.
— Perdeu alguma coisa? —
diz ela, arregalando os olhos em minha direção.
Espera,
quanto tempo eu passei encarando essa garota?
Ignoro suas perguntas e,
engolindo em seco, retorno meus passos.
— Ei, espera! — David
continua me chamando, agora próximo o suficiente para me alcançar. Aperto meus
passos e me afasto rapidamente. — Caio!
Minutos depois, cansado
de ter meu nome sendo pronunciado e com pena do meu amigo precisar me
acompanhar, interrompo meu caminhar. Estou cansado, mas não tanto quanto o
garoto atrás de mim. Posso escutar sua respiração ofegante.
Ergo minha cabeça e
constato que estamos sozinhos, sem estudantes. Meu corpo mais suado do que
deveria.
Respiro fundo.
— O que foi isso? Eu
pensei que houvesse alguma melhora em suas atitudes. — Parece raivoso e exausto
ao mesmo tempo. Apoia suas duas mãos nos joelhos e puxa o ar fortemente. — Você
não corre desse jeito desde...
Não completa. Eu o encaro
por um instante antes de desviar o olhar e encarar o chão mais uma vez. Mesmo
sendo meu amigo, eu ainda me sinto desconfortável tendo que encará-lo nos
olhos. O mesmo ocorre com minha mãe, pai e irmã. Não importa o tempo de convívio,
não importa o quão íntimo eu me torne, parece que jamais conseguirei encarar
alguém nos olhos sem medo ou receio.
David está completamente
exausto, com a testa pingando de suor.
— Eu só... — Não encontro
palavras capaz de descrever o que acabou de acontecer.
— Era apenas um professor,
Caio — diz ele, percebendo meu repentino silêncio. — Ele fez perguntas, porque
é isso que professores fazem. E você... Fugiu. Simplesmente fugiu! E depois
atropelou aquela garota sem perguntar se precisava de ajuda.
Por fim consegue se
reerguer, ainda com o peito subindo e descendo sem parar. Sabendo o que virá em
seguida, eu giro sobre meus calcanhares e volto com meus passos apressados. No
entanto, uma mão segura meu ombro, impedindo de continuar da forma que eu
pretendia.
— Nada disso. Agora irá
me explicar o que aconteceu.
Estou de costas para David,
sentindo o meu coração martelar no peito. Cansaço? Bem, aparentemente não.
Correr era um dos meus hobbies favoritos. Gostava da sensação, quando o despertador me acordava cinco horas da
manhã e me obrigava a levantar da cama. O céu escuro, rua silenciosa e frio
penetrante. Sentia como se estivesse vivo, em meio a tanto caos da mente.
— Eu não estou pronto —
digo por fim, inspirando o ar em volta.
— Não está pronto? — Parece
incrédulo. Não posso culpá-lo. — São só... pessoas, cara.
Viro-me para rebatê-lo.
Mas logo meus olhos se abaixam, não suportando seus olhos escuros diretos em
mim.
— E acha que não sei
disso?
Um breve silêncio se faz
presente. Não gosto de discussões em locais públicos. Algumas pessoas podem
estar presentes agora, observando toda a cena das janelas ou espreitando em
portas. Esse pensamento faz minha garganta se fechar por um segundo.
— E suas terapias?
Um curto sorriso surge em
meus lábios.
— Não é como se fosse um
curandeiro, e você sabe disso. Ela conversa, eu converso, mas não... é o
suficiente. Eu não estou pronto. Não posso ir às aulas. E você também não vai
querer ficar até depois do horário. Quer ter seus momentos, conversar com
pessoas no refeitório...
— Opa! Pode parando aí,
cidadão. Como assim não vou querer? Acha que quero ir para casa cedo e
conversar no refeitório com milhares de pessoas e mostrar o quão popular eu
sou? Não esquece que sou tão nerd quanto você.
— Mas...
— Não tem “mas”, cara. —
Ergo minha cabeça. Ele está perto de mim, talvez dois ou três passos de
distância. Evito desviar o olhar. — Não é tão fácil como você deve imaginar.
Temos problemas também, sabia? Só porque você não consegue conviver com pessoas
te olhando, não quer dizer que para nós seja menos complicado.
— Mas vocês não se
importam se te olham ou não.
— Não exatamente. A
questão é que aceitamos que não somos diferentes de ninguém. Até eu fico
constrangido às vezes, e você já viu minha beleza? É surreal. Pessoas me amam e
se apaixonam com um simples olhar, e nem por isso sou o cara mais confiante do
mundo.
Acho graça em seu senso
de humor, mas nenhum sorriso se abre em meu rosto. Não quero mostrar que estou
bem em poucos minutos. Fico em silêncio, escutando o bater do meu coração.
— Então, como vai ser?
Vai fugir feito um garotinho ou vai enfrentar seus problemas como um homem
selvagem que precisa ser? — pergunta ele, erguendo uma das sobrancelhas.
Faz cerca de três minutos
que estamos parados no meio da calçada. Pela décima primeira vez, desde que eu
posso me lembrar, David tenta me ajudar com suas palavras. Não é como se fosse
minha terapeuta ou um psicólogo, mas confesso que por um segundo ou mais, me
sinto motivado, como se eu pudesse mudar o mundo ou salvar uma criança de um
prédio em chamas.
— Fugir, obviamente —
respondo, não conseguindo esconder o riso. — Ou acha mesmo que serei um homem
selvagem?
— Eu confesso que
esperava que dissesse isso. Não consigo imaginar você como novo Tarzan.
Ele também não deixar de
sorrir.
— Me desculpa — sinto o
nervosismo se distanciar de mim, mas sei que sou o culpado por tudo o que
aconteceu. — Eu não... bem... você sabe. Passei um mês sem conhecer pessoas,
então... acho que acabei me desacostumando mais do que eu esperava.
— Não esquenta com isso.
Tenta não sair correndo na próxima vez. Não tenho esse ritmo todo. E também,
como eu disse, são só pessoas, elas não vão te engolir vivo por responder uma
pergunta.
— Vou tentar — concordo
com a cabeça.
David sorri em minha
direção.
— E era bem bonita.
— Quem?
— A garota que você
bateu.
— Ah. Eu não percebi.
— Não vai me enganar
assim, mocinho.
***
— E então, como se saiu
hoje, filho?
Não é uma pergunta que eu
gostaria de responder. Sendo assim, ignoro minha mãe e subo para o meu quarto,
jogando minha mochila em um canto qualquer. Retiro os sapatos e os deixo
jogados no chão, enquanto sigo para minha cama.
Escuto o barulho dos
passos pesados de minha mãe, como um robô marchando em ritmo lento. Suspiro,
observando o teto acima de mim. Branco e entediante. Costumava passar horas
encarando esse pedaço de gesso, perdido em pensamentos involuntários e
perigosos.
A porta se abre. Seu
perfume surge no ar. Adocicado. Sei o que virá em seguida. Perguntas.
Fecho meus olhos.
Ela senta perto de mim,
afundando boa parte do colchão.
— O que aconteceu, filho?
Uma mãe preocupada não é
exatamente o sinônimo de perfeição. Por muitas vezes, quando necessito de
solitude e devaneios, uma pergunta, seja direta ou não, atrapalha no meu
raciocínio. Só gostaria de fechar meus olhos, imaginar uma vida perfeita, e
esquecer tudo o que vivenciei por hoje.
Porém, ela não irá embora.
Não tão cedo assim. Sempre exige uma resposta.
— Nada — digo.
Um suspiro surge no ar.
Meus olhos se abrem.
— Então não saiu como
deveria, não é? — pergunta minha mãe, mantendo suavidade em seu tom de voz.
Imagens surgem em minha
mente. Os olhos dos alunos fixos em mim; meus passos apressados; bolinha de
papel; apelidos idiotas e agressivos; racismo; fuga inesperada; garota...
— Não, não saiu como
deveria — respondo. — Mas acho que saiu como imaginei que fosse.
— O que aconteceu de tão
ruim assim?
— Não consigo, mãe. Não
sou como você, que passa horas encarando uma pessoa.
— A boca de uma pessoa,
na verdade — ela sorri.
— Não é tão fácil assim,
sabe? O professor me olhou nos olhos e eu não tive reação. Parecia que eu
estava me apequenando, como um homem-formiga. Eu sentia minhas mãos tremerem,
minhas pernas, meus lábios... — Respiro profundamente o ar em volta. — Então me
levantei e corri, literalmente. Abaixei minha cabeça e nem sequer olhei para
frente. Até bati em uma garota sem querer.
— Então não foi tudo tão
ruim assim.
— Mãe. — Um sorriso involuntário
se abre.
— Olha, filho. — Ajeita o
corpo na cama, se aproximando de mim. — Sei que não parece ser fácil para um
garoto da sua idade sofrer de transtorno de ansiedade, muito menos se vier
acompanhado de fobia social. Você está se saindo bem, se parar para pensar.
Muito melhor do que estava há três ou quatro anos.
— Não sei. Uma hora
parece que sou capaz de caminhar e conversar com pessoas. E outras... Bem,
parece que sou tão pequeno e tão inferior, que não me sinto digno de trocar olhares
com elas. Por isso eu... você sabe, eu fujo.
— Se lembra de quando não
conseguia se abrir nem para sua própria mãe? — pergunta ela. — Eu ficava aqui e
você me mandava embora, dizendo que estava tudo bem. Mas eu sabia que não
estava. Veja agora. — Olho em seus olhos por um segundo. — Você está aqui,
dizendo o que aconteceu com você e conversando, algo que nunca ocorreu antes.
Então eu vejo como um progresso. Você aceitando ou não. — Seus dentes se
mostram visíveis, por causa do grande sorriso que se estende em seu rosto.
Enxergo o teto acima de
mim. Pequenas rachaduras marcam em sua superfície, como cicatrizes deixadas
pelo tempo. Não sinto mais o perfume que se espalhava no ar. Dessa vez, noto
que um vento fresco atinge meu corpo. Não está um dia quente, tampouco frio.
Apenas calmo. Como um fim de tarde em uma praia deserta.
— Deixarei você sozinho
agora. Espero que não pense demais, sabe perfeitamente que apenas te fará mal.
Imagine como uma grande corrida repleta de obstáculos, só porque caiu em uma
barreira, não quer dizer que não chegará ao fim.
— Diana, palestrante
motivacional.
— Não me venha com isso.
— Ela sorri. — Agora trate de descansar e depois desça para comer algo. Hoje
não ficarei tanto tempo em casa, tenho clientes e o tempo será longo. Seu pai
deve chegar em poucas horas, então espero que fique bem, filho.
Coloca-se de pé, fazendo
um estalo em seus joelhos. Sei perfeitamente que não está em uma idade saudável
para movimentos rápidos. Sua pele está enrugada, seu cabelo demonstra indícios
de branquidão e sua respiração se mostra falha em boa parte do dia. Porém, é uma
mulher forte. E não será um estalo no joelho que a fará desistir.
Novamente estou só, como
passei boa parte das minhas férias. Uma vez ou outra, em finais de semana,
recebia David ou Helena em minha casa. Passamos algumas longas horas jogando
videogame, perdidos entre realidade e simulação.
Caminho até a TV que fica
em frente à cama e coloco meu jogo preferido: Matando Dinossauros.
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Atualizado até capítulo 31
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