Capítulo 3

Escuto passos seguirem em direção à porta

da sala. Meu corpo continua inerte, esperando o momento exato de pegar minha

mochila e me levantar. David faz o mesmo, sabendo perfeitamente o tempo que eu demoro

em sair da escola — 15 ou 20 minutos, dependendo da situação que eu me

encontro; o que não posso dizer ser propício no momento. Diferente de Helena,

que precisa se apressar para o trabalho.

— Tchau, babacas — diz

ela enquanto se desvencilha de muitos estudantes que atrapalham seu caminho. —

Sai da frente, ô merda.

Curvo minha cabeça e

apoio a testa sobre meus braços dobrados na mesa, fechando meus olhos. Ainda

consigo ouvir passos seguindo para fora da sala, assim como cadeiras sendo

arrastadas e conversas nos corredores.

Há algum tempo, quando eu

não tinha uma terapeuta com quem conversas ou amigos para compartilhar boa

parte do tempo, esperava que toda a escola se esvaziasse por completo, para

então eu poder seguir para minha casa. Não havia David para me distrair ou

esperar e nem Helena para me proteger. Apenas eu, um garoto solitário e

problemático; além do zelador, que ansiava minha saída para trancar toda

escola.

Agora percebo o quão inconveniente

eu me tornara nesses últimos anos.

Minutos depois, sinto um

toque em meu ombro, me despertando. David. Pelo visto ninguém mais está por perto,

apenas o professor, Edgar, que está sentado, com uma pilha de papéis em cima da

mesa. Ajeita os óculos na ponta do nariz e encara meus olhos por algum tempo.

— O que estão esperando?

— pergunta ele, olhando de um lado para o outro. Sua voz se mantém suave,

apesar de tudo. — Se não me engano, o sinal soou tem dez minutos. — Confere o

relógio no pulso.

Penso em respondê-lo, mas

tudo o que consigo fazer é imaginar o diálogo acontecendo em minha mente: eu

dizendo que está tudo bem e pegando minha mochila do chão, levantando-me com um

sorriso no rosto, enquanto invento uma desculpa, alegando que precisava apenas

de um tempo para respirar.

Lamento por tudo não

passar de devaneios diários.

Ele continua olhando

diretamente para mim, e eu em silêncio, sentindo minha garganta se apertar cada

vez mais.

— Não se preocupem —

responde Edgar por fim, provavelmente sem entender minha falta de resposta. —

Podem ficar o tempo que quiserem. Como costumo dizer, o tempo de estudo nunca é

o suficiente.

— Não é isso. É que o

Caio não... — começa David bem atrás mim, mas, sabendo que eu não gosto que

toque nesse assunto, não termina a frase. Ninguém precisa saber que tem um

esquisitão sentado na primeira cadeira, muito menos um professor que passará

todo o restante do ano comigo.

Sem responder, temendo

que mais perguntas possam ocorrer em minha direção, pego minha mochila e me

ponho de pé. Encaro o professor por um rápido instante antes de mirar o chão

abaixo de mim, seguindo para fora da sala. Escuto David fazer o mesmo,

empurrando a cadeira para trás.

— Desculpe — diz ele para

Edgar, que parece não entender absolutamente nada. — Caio, espera!

Merda.

— Caio! — David corre

para me ajudar. É assim que ele costuma fazer quando algo sai do controle.

Ignoro seu chamado e

cruzo o corredor, saindo pela porta da frente em questão de segundos, descendo

os poucos degraus da entrada. Não está um dia tão quente assim, mas sinto todo

meu corpo suar.

Meus passos continuam

apressados, enquanto minha cabeça se mantém curvada. Eu sabia que não era uma

boa ideia sair de casa. Nunca é uma boa ideia.

— Caio!

Alunos, ainda que poucos,

se mantém presentes, em pequenos grupos ou sentados nos bancos ao redor da

escola, repassando tudo o que aprendeu. Posso observá-los com o canto do olho e

senti-los olhando para mim.

— Caio!

Sem me dar conta do

caminho que estou seguindo, sinto uma pontada de dor atingir minha testa, assim

que meu corpo se choca com alguém. Percebo livros e cadernos caírem no chão.

Merda!

— Ai, que droga! O que

foi isso? Olha por onde anda, idiota. — Uma voz feminina ecoa em minha direção,

alta o suficiente para me deixar envergonhado. — Perdeu a visão, foi?

Ergo minha cabeça, que

continua doendo, enxergando olhos verdes, no mesmo tom que o colar em seu

pescoço. Suas sobrancelhas estão juntas, demonstrando evidentes sinais de

raiva.

Minha boca se abre, e, obviamente,

não digo nada. É uma garota que está em minha frente. Uma garota extremamente

enfurecida por eu ter batido com tudo em seu corpo, principalmente por ter derrubado

todos os seus materiais escolares.

Mais uma vez me imagino

pedindo desculpas e me ajoelhando para ajudá-la, dizendo que foi tudo culpa

minha. Mas não é o que faço.

— Perdeu alguma coisa? —

diz ela, arregalando os olhos em minha direção.

Espera,

quanto tempo eu passei encarando essa garota?

Ignoro suas perguntas e,

engolindo em seco, retorno meus passos.

— Ei, espera! — David

continua me chamando, agora próximo o suficiente para me alcançar. Aperto meus

passos e me afasto rapidamente. — Caio!

Minutos depois, cansado

de ter meu nome sendo pronunciado e com pena do meu amigo precisar me

acompanhar, interrompo meu caminhar. Estou cansado, mas não tanto quanto o

garoto atrás de mim. Posso escutar sua respiração ofegante.

Ergo minha cabeça e

constato que estamos sozinhos, sem estudantes. Meu corpo mais suado do que

deveria.

Respiro fundo.

— O que foi isso? Eu

pensei que houvesse alguma melhora em suas atitudes. — Parece raivoso e exausto

ao mesmo tempo. Apoia suas duas mãos nos joelhos e puxa o ar fortemente. — Você

não corre desse jeito desde...

Não completa. Eu o encaro

por um instante antes de desviar o olhar e encarar o chão mais uma vez. Mesmo

sendo meu amigo, eu ainda me sinto desconfortável tendo que encará-lo nos

olhos. O mesmo ocorre com minha mãe, pai e irmã. Não importa o tempo de convívio,

não importa o quão íntimo eu me torne, parece que jamais conseguirei encarar

alguém nos olhos sem medo ou receio.

David está completamente

exausto, com a testa pingando de suor.

— Eu só... — Não encontro

palavras capaz de descrever o que acabou de acontecer.

— Era apenas um professor,

Caio — diz ele, percebendo meu repentino silêncio. — Ele fez perguntas, porque

é isso que professores fazem. E você... Fugiu. Simplesmente fugiu! E depois

atropelou aquela garota sem perguntar se precisava de ajuda.

Por fim consegue se

reerguer, ainda com o peito subindo e descendo sem parar. Sabendo o que virá em

seguida, eu giro sobre meus calcanhares e volto com meus passos apressados. No

entanto, uma mão segura meu ombro, impedindo de continuar da forma que eu

pretendia.

— Nada disso. Agora irá

me explicar o que aconteceu.

Estou de costas para David,

sentindo o meu coração martelar no peito. Cansaço? Bem, aparentemente não.

Correr era um dos meus hobbies favoritos. Gostava da sensação, quando o despertador me acordava cinco horas da

manhã e me obrigava a levantar da cama. O céu escuro, rua silenciosa e frio

penetrante. Sentia como se estivesse vivo, em meio a tanto caos da mente.

— Eu não estou pronto —

digo por fim, inspirando o ar em volta.

— Não está pronto? — Parece

incrédulo. Não posso culpá-lo. — São só... pessoas, cara.

Viro-me para rebatê-lo.

Mas logo meus olhos se abaixam, não suportando seus olhos escuros diretos em

mim.

— E acha que não sei

disso?

Um breve silêncio se faz

presente. Não gosto de discussões em locais públicos. Algumas pessoas podem

estar presentes agora, observando toda a cena das janelas ou espreitando em

portas. Esse pensamento faz minha garganta se fechar por um segundo.

— E suas terapias?

Um curto sorriso surge em

meus lábios.

— Não é como se fosse um

curandeiro, e você sabe disso. Ela conversa, eu converso, mas não... é o

suficiente. Eu não estou pronto. Não posso ir às aulas. E você também não vai

querer ficar até depois do horário. Quer ter seus momentos, conversar com

pessoas no refeitório...

— Opa! Pode parando aí,

cidadão. Como assim não vou querer? Acha que quero ir para casa cedo e

conversar no refeitório com milhares de pessoas e mostrar o quão popular eu

sou? Não esquece que sou tão nerd quanto você.

— Mas...

— Não tem “mas”, cara. —

Ergo minha cabeça. Ele está perto de mim, talvez dois ou três passos de

distância. Evito desviar o olhar. — Não é tão fácil como você deve imaginar.

Temos problemas também, sabia? Só porque você não consegue conviver com pessoas

te olhando, não quer dizer que para nós seja menos complicado.

— Mas vocês não se

importam se te olham ou não.

— Não exatamente. A

questão é que aceitamos que não somos diferentes de ninguém. Até eu fico

constrangido às vezes, e você já viu minha beleza? É surreal. Pessoas me amam e

se apaixonam com um simples olhar, e nem por isso sou o cara mais confiante do

mundo.

Acho graça em seu senso

de humor, mas nenhum sorriso se abre em meu rosto. Não quero mostrar que estou

bem em poucos minutos. Fico em silêncio, escutando o bater do meu coração.

— Então, como vai ser?

Vai fugir feito um garotinho ou vai enfrentar seus problemas como um homem

selvagem que precisa ser? — pergunta ele, erguendo uma das sobrancelhas.

Faz cerca de três minutos

que estamos parados no meio da calçada. Pela décima primeira vez, desde que eu

posso me lembrar, David tenta me ajudar com suas palavras. Não é como se fosse

minha terapeuta ou um psicólogo, mas confesso que por um segundo ou mais, me

sinto motivado, como se eu pudesse mudar o mundo ou salvar uma criança de um

prédio em chamas.

— Fugir, obviamente —

respondo, não conseguindo esconder o riso. — Ou acha mesmo que serei um homem

selvagem?

— Eu confesso que

esperava que dissesse isso. Não consigo imaginar você como novo Tarzan.

Ele também não deixar de

sorrir.

— Me desculpa — sinto o

nervosismo se distanciar de mim, mas sei que sou o culpado por tudo o que

aconteceu. — Eu não... bem... você sabe. Passei um mês sem conhecer pessoas,

então... acho que acabei me desacostumando mais do que eu esperava.

— Não esquenta com isso.

Tenta não sair correndo na próxima vez. Não tenho esse ritmo todo. E também,

como eu disse, são só pessoas, elas não vão te engolir vivo por responder uma

pergunta.

— Vou tentar — concordo

com a cabeça.

David sorri em minha

direção.

— E era bem bonita.

— Quem?

— A garota que você

bateu.

— Ah. Eu não percebi.

— Não vai me enganar

assim, mocinho.

***

— E então, como se saiu

hoje, filho?

Não é uma pergunta que eu

gostaria de responder. Sendo assim, ignoro minha mãe e subo para o meu quarto,

jogando minha mochila em um canto qualquer. Retiro os sapatos e os deixo

jogados no chão, enquanto sigo para minha cama.

Escuto o barulho dos

passos pesados de minha mãe, como um robô marchando em ritmo lento. Suspiro,

observando o teto acima de mim. Branco e entediante. Costumava passar horas

encarando esse pedaço de gesso, perdido em pensamentos involuntários e

perigosos.

A porta se abre. Seu

perfume surge no ar. Adocicado. Sei o que virá em seguida. Perguntas.

Fecho meus olhos.

Ela senta perto de mim,

afundando boa parte do colchão.

— O que aconteceu, filho?

Uma mãe preocupada não é

exatamente o sinônimo de perfeição. Por muitas vezes, quando necessito de

solitude e devaneios, uma pergunta, seja direta ou não, atrapalha no meu

raciocínio. Só gostaria de fechar meus olhos, imaginar uma vida perfeita, e

esquecer tudo o que vivenciei por hoje.

Porém, ela não irá embora.

Não tão cedo assim. Sempre exige uma resposta.

— Nada — digo.

Um suspiro surge no ar.

Meus olhos se abrem.

— Então não saiu como

deveria, não é? — pergunta minha mãe, mantendo suavidade em seu tom de voz.

Imagens surgem em minha

mente. Os olhos dos alunos fixos em mim; meus passos apressados; bolinha de

papel; apelidos idiotas e agressivos; racismo; fuga inesperada; garota...

— Não, não saiu como

deveria — respondo. — Mas acho que saiu como imaginei que fosse.

— O que aconteceu de tão

ruim assim?

— Não consigo, mãe. Não

sou como você, que passa horas encarando uma pessoa.

— A boca de uma pessoa,

na verdade — ela sorri.

— Não é tão fácil assim,

sabe? O professor me olhou nos olhos e eu não tive reação. Parecia que eu

estava me apequenando, como um homem-formiga. Eu sentia minhas mãos tremerem,

minhas pernas, meus lábios... — Respiro profundamente o ar em volta. — Então me

levantei e corri, literalmente. Abaixei minha cabeça e nem sequer olhei para

frente. Até bati em uma garota sem querer.

— Então não foi tudo tão

ruim assim.

— Mãe. — Um sorriso involuntário

se abre.

— Olha, filho. — Ajeita o

corpo na cama, se aproximando de mim. — Sei que não parece ser fácil para um

garoto da sua idade sofrer de transtorno de ansiedade, muito menos se vier

acompanhado de fobia social. Você está se saindo bem, se parar para pensar.

Muito melhor do que estava há três ou quatro anos.

— Não sei. Uma hora

parece que sou capaz de caminhar e conversar com pessoas. E outras... Bem,

parece que sou tão pequeno e tão inferior, que não me sinto digno de trocar olhares

com elas. Por isso eu... você sabe, eu fujo.

— Se lembra de quando não

conseguia se abrir nem para sua própria mãe? — pergunta ela. — Eu ficava aqui e

você me mandava embora, dizendo que estava tudo bem. Mas eu sabia que não

estava. Veja agora. — Olho em seus olhos por um segundo. — Você está aqui,

dizendo o que aconteceu com você e conversando, algo que nunca ocorreu antes.

Então eu vejo como um progresso. Você aceitando ou não. — Seus dentes se

mostram visíveis, por causa do grande sorriso que se estende em seu rosto.

Enxergo o teto acima de

mim. Pequenas rachaduras marcam em sua superfície, como cicatrizes deixadas

pelo tempo. Não sinto mais o perfume que se espalhava no ar. Dessa vez, noto

que um vento fresco atinge meu corpo. Não está um dia quente, tampouco frio.

Apenas calmo. Como um fim de tarde em uma praia deserta.

— Deixarei você sozinho

agora. Espero que não pense demais, sabe perfeitamente que apenas te fará mal.

Imagine como uma grande corrida repleta de obstáculos, só porque caiu em uma

barreira, não quer dizer que não chegará ao fim.

— Diana, palestrante

motivacional.

— Não me venha com isso.

— Ela sorri. — Agora trate de descansar e depois desça para comer algo. Hoje

não ficarei tanto tempo em casa, tenho clientes e o tempo será longo. Seu pai

deve chegar em poucas horas, então espero que fique bem, filho.

Coloca-se de pé, fazendo

um estalo em seus joelhos. Sei perfeitamente que não está em uma idade saudável

para movimentos rápidos. Sua pele está enrugada, seu cabelo demonstra indícios

de branquidão e sua respiração se mostra falha em boa parte do dia. Porém, é uma

mulher forte. E não será um estalo no joelho que a fará desistir.

Novamente estou só, como

passei boa parte das minhas férias. Uma vez ou outra, em finais de semana,

recebia David ou Helena em minha casa. Passamos algumas longas horas jogando

videogame, perdidos entre realidade e simulação.

Caminho até a TV que fica

em frente à cama e coloco meu jogo preferido: Matando Dinossauros.

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