Capítulo 2

É incrível como nosso cérebro consegue nos

enganar. Para ser sincero, é isso que eu ouço todos os dias. Querem me

convencer que não tem ninguém me olhando. Que não tem ninguém julgando tudo o

que eu faço, cada passo, cada respiração, cada movimento inesperado. Já me

chamaram até mesmo de egocêntrico, por acreditar que o mundo gira em volta do

meu ser. Mas não é o caso.

Eu me odeio. Eu odeio ter

que ser desse modo, com vergonha, com medo, com pessimismo em minha volta, como

se paredes estreitas pudessem me prensar em questão de segundos. Eu sei que

eles estão me observando agora. Um garoto está caminhando apressadamente pelo

corredor de uma escola, mantendo cabeça baixa, ombros curvados, e querem que eu

acredite que é normal? Que não tem dedos em minha direção? Que não falam de mim

pelas costas?

Desculpe, mas eu sei o

que acontece. E não são coisas boas.

Helena e David acompanham

meus passos, ainda que necessitem de velocidade.

— Ser mordido por um

tubarão ou levar um coice de um burro? — pergunta Helena com o máximo de

empolgação possível; ou que consegue transmitir. Durante dois anos de amizade,

eu escutei todo tipo de pergunta que alguém poderia imaginar. Criar dúvidas em

mentes humanas era especialidade da menina de cabelos coloridos e maquiagem

escura nos olhos.

— E quem irá escolher ser

mordido por um tubarão? — questiona David, ainda seguindo meus passos. — Você

está na água, com medo, fora de seu hábitat natural e indefeso. Uma mordida

certamente viraria uma comida.

— O coice poderia acertar

sua cara de pateta e te deixar ainda mais idiota do que já é. Pensa nisso. —

Por mais séria que Helena consiga parecer, seu senso de humor se mantém sempre

afiado. — E você, Caio. Qual sua opção?

Não respondo de imediato,

continuando com meus passos largos e ombros curvados. Desvencilho de alguns

alunos que atrapalham meu caminho e alcanço, em poucos minutos, meu armário.

— A mordida será na perna

ou no braço? — pergunto, digitando minha senha no cadeado.

— Caio. — Helena chama

meu nome. Parece decepcionada. — É apenas uma pergunta. Não irá acontecer de

verdade.

— Mas preciso saber qual

será o grau da mordida e onde acontecerá — respondo. — O coice, por exemplo,

vai atingir minha barriga ou meu rosto?

David bufa atrás de mim,

sabendo do risco que eu não estou tomando. Escuto Helena se aproximar.

— É apenas uma pergunta,

Caio — sussurra em meu ouvido. — Ser mordido por um tubarão ou levar um coice

de um burro, em? — Seus dentes rangem.

Sinto um calafrio

percorrer meu corpo. Minha mente não trabalha sob pressão, e ela sabe disso.

Mas parece não se importar. E, conhecendo bem Helena, ela vai fazer de tudo

para tirar essa resposta de mim.

Viro-me para encará-la,

notando suas sobrancelhas curvadas e mandíbula rígida.

— Levar um coice de um

burro, é o que eu certamente preferiria — respondo, temendo que um soco acerte

minha briga. David sabe muito bem da força que essa menina possui.

Helena exibe um largo

sorriso, deixando, em questão de segundos, toda raiva para trás.

— Obrigada — faz um aceno

com a cabeça, mudando drasticamente o tom de voz, ficando assustadoramente

calma. — Viu? Você não se machucou de verdade, bobão.

Bem atrás de Helena, caminhando

com arrogância no olhar e braços ridiculamente abertos, observo Mike. Outros

três amigos seguem seu rastro sujo e fedido. Abaixo minha cabeça imediatamente,

encarando meu tênis escuro. Não quero ser pego olhando em seus olhos.

— Sai da frente, coisa

preta — escuto Mike ofender David, que está no meio do corredor. Ele é

empurrado para trás e abre espaço para que os quatro babacas possam passar.

Helena gira o corpo em um

rápido movimento ao escutar tais ofensas.

— O que você disse,

Milk-shake? — Sinto toda raiva de Helena explodir em questão se segundos. Ninguém

responde sua pergunta.  — Coisa preta, é

sério?

Um silêncio perturbador

se estende pelo corredor.

Mike é um garoto

extremamente ameaçador para sua idade, e Helena não se importa nenhum pouco com

isso. O garoto possui ombros largos, olhos pequenos e apertados, barriga

arredondada e cabelos encaracolados, deixando despenteado na grande maioria das

vezes. Um fino bigode, como se quisesse mostrar para todo mundo o quanto está

crescido, preenche a parte superior da boca. Suas roupas estão sempre amassadas

e um odor irritante exala de si. O chamamos — quando não pode nos escutar, obviamente

— de batata fedida. Helena prefere o termo “Milk-shake”, o que pode soar

engraçado quando se está com raiva.

Alguns olhares seguem em nossa

direção.

— Por acaso já se olhou

no espelho hoje, porco imundo? Ou estava ocupado demais tendo que escovar esses

dentes com merda? — Helena costuma não medir palavras com alguém. Por muito

tempo ficou conhecida como “a garota língua afiada”.

Não gosto do silêncio que

me cerca. Todo clima de tensão, esperando qualquer movimento capaz de tirar

suspiros; olhares penetrantes, respiração densa, cadernos amassados contra o

corpo e murmúrios distantes. Evito olhar nos olhos de Mike ou de qualquer outra

pessoa ao meu redor. Meu coração está prestes a explodir dentro do peito.

— Vamos, Helena. Não

compensa — diz David, em um tom extremamente baixo.

Com bastante custo ergo minha

cabeça e vejo tristeza em seu olhar. Racismo é mais do que grave, principalmente

quando risadas ecoam em sua direção e ninguém parece se importar. Se ao menos

eu tivesse coragem o suficiente...

— Me solta, David! —

rebate ela, mostrando toda ira acumulada em seu corpo. — Veja o que ele disse!

Te chamou de coisa preta. Não podemos deixar isso barato!

— Helena.

— Me solta! — grita. —

Ele vai pagar por isso.

— Helena — chama mais uma

vez.

— O que foi?

— O Caio...

Não gosto que se

preocupem comigo. Tudo bem, eu estou com respiração ofegante e contando até

três repetidas vezes. Mas sou apenas um garoto com medo de olhares; posso

suportar pressão de vez em quando.

Um...

Dois...

Três...

Helena me encara por

algum tempo antes de voltar à atenção para Mike. Porém, nada diz. Sinto meu

peito subir e descer em um ritmo acelerado. Não posso fechar meus olhos agora.

Pessoas estão me olhando. Não quero que pensem que sou um garoto esquisito.

Posso cuidar disso muito bem sozinho.

Apenas

ansiedade, não é nada. Respire fundo.

Um...

Dois...

Três...

— Está tudo bem com você?

— Helena coloca uma mecha do cabelo atrás da orelha, encontrando meus olhos

amedrontados.

David está com uma das

mãos sobre meu ombro. Não o havia sentindo antes.

— Forrest Gump — escuto Mike murmurar meu apelido, seguido por um

risinho irônico. — Terá sorte se alguma menina olhar para você um dia,

aberração.

Seguro firme no braço de

Helena, impedindo que se ela vire para ele mais uma vez.

— Não compensa, garota língua

afiada — um fraco sorriso se estende em meus lábios.

***

Quando mais novo, antes que eu pudesse

perceber o quão assustador é ter pessoas me olhando profundamente, eu não

costumava me sentar na primeira fileira. Gostava de ficar no meio da sala,

dividido entre garotos do fundo e estudiosos da frente. Escutava o que cada

aluno, de cada mesa, dizia. Futebol, cinema, festas e estudos depois da aula.

Não era como se eu fosse o centro das atenções, mas o intermediário de

conversas gerais.

Agora, porém, tudo se

perdeu. Logo no meu primeiro dia de aula, onde alunos se preocupam em conhecer

novos estudantes, formando grupos e interesses em comum, eu permaneço na

primeira fila, da primeira cadeira. Sei perfeitamente que eles estão me olhando

agora, enxergando minhas costas suadas, minhas orelhas de abano e meu cabelo

ridiculamente desajeitado.

O importante é que não

conseguirão enxergar meus olhos grandes, meu nariz de batata e meus lábios

finos; o que é um certo alívio, se parar para pensar.

Um professor, alto e de

barba branca, caminha com passos apressados até a mesa no canto, silenciando

imediatamente toda conversa que antes existia. Suas pernas são longas, tais

como seus braços. Seu cabelo é jogado para trás, grisalhos. Ajeita os óculos na

ponta do nariz e suspira, como se fosse um gesto rotineiro, ano após ano.

Seus olhos passam por mim

e, por um rápido instante, sinto um frio em minha barriga.

— Muito bem — começa ele

com uma voz rouca e sem muita pressa. Suspira profundamente antes de continuar.

— Teremos muito trabalho pela frente a partir de hoje. Então peguem seus livros

e vamos começar.

Não é aconselhável ter

medo de pessoas. Não é o mesmo que ter medo de baratas ou de cachorros

raivosos. Pessoas mudam o mundo. São responsáveis por criar e destruir, amar e

odiar. Precisamos delas, assim como elas precisam de nós. Ou pelo menos é assim

que eu acredito.

Quando perguntei para

Lara — no ensino fundamental — se ela gostaria de namorar comigo, eu tinha uma

pequena chama de esperança acesa dentro de mim. Eu a via diariamente, e sentia

uma estranha sensação percorrendo meu corpo. Por que minha boca está seca? O

que aconteceu com meu coração? Por que minhas pernas parecem derreter a

qualquer momento? Não sabia o que estava sentindo, mas doía, e não poderia

perder a chance de demostrar meus sentimentos para a garota de cabelos loiros e

olhos azuis. É assim que casais surgem em filmes.

Ainda consigo me recordar

do “não” que saiu da boca de Lara quando perguntei se gostaria de tomar sorvete

comigo, seguido por: “eca, que nojo, menino”. Eu não estava preparado para

tamanho desprezo, tampouco para os risos e piadas que chegaram até mim. Em

poucos dias, talvez em poucas horas, não havia mais nada aceso dentro do meu

peito. Uma simples frase destruiu tudo o que eu sabia sobre o sentido da vida.

Tive medo, tristeza e fraqueza.

Em questão de meses eu

não continha mais forças para encarar uma pessoa. Toda minha confiança e

autoestima simplesmente sumiram, como uma frágil poeira na estrada. Não saía de

casa e evitava olhar nos olhos de qualquer ser humano que surgia em meu caminho,

temendo que pudessem me odiar ou rir de mim. Minha mãe se tornou única pessoa

capaz de entrar em meu quarto e conversar comigo, mesmo com minha vergonha e

timidez. Videogame se tornou uma solução para os meus problemas. Não precisava

sair de casa para socializar com alguém nem encontrar uma pessoa na rua para

conversar. É muito mais fácil dialogar com alguém quando não se olha em seus

olhos.

***

O refeitório se mantém

agitado. Alunos conversam de maneira exagerada e gargalham como se cada minuto

passado fosse importante. Helena e David estão perto de mim, em uma mesa no

fundo do refeitório, isolada de toda multidão. Arroz, purê de batata, carne

cozida e maça. Confesso que sempre me interessei pela comida da escola, mas

ainda não pude experimentar o que está em minha frente, com vergonha de ser

observado e cometer um erro.

— Está dentro de um

prédio em chamas. Bombeiros demorarão minutos para chegar ao local. Sem água

para apagar o fogo e tossindo pela fumaça. Quinto andar, eu diria. Apenas uma máscara

de gás em cima de uma mesa. Uma senhora de oitenta anos está tossindo e precisando

urgentemente dessa máscara. E então? Salvar uma senhora ou você mesmo? — Helena

está brincando com o garfo em sua mão, levando-o de um lado para o outro. Parece

sem fome.

David suspira.

Eu o encaro por um

momento. Nossos olhares se cruzam e seus cenhos se franzem.

— E então, rapazes? — Ela

ergue a cabeça, impaciente.

— Bem... — começa David,

respirando fundo, temendo um passo em falso. — Uma senhora de oitenta anos já

viveu o suficiente, não acha?

— Eu não sei. Me diz você

— responde ela com um arquear de sobrancelha.— Mas está sendo egoísta.

— Não estou sendo

egoísta. Só estou dizendo que os jovens são o futuro do país. Não concorda,

Caio?

— Eu? Bem... Talvez? Não

sei. No momento do fogo acho que teremos mais empatia, não acha? É uma senhora

de oitenta anos, eu ficaria com dó.

— E não teria dó da sua

própria vida? — questiona ele.

Nossos olhares se cruzam

mais uma vez e então deixo um sorriso surgir, sem responder. Um vento fresco

atinge meu corpo, vindo de uma grande janela à direita. O pátio, do lado de

fora da escola, está praticamente vazio. Poucos alunos que insistem em sugar

fumaça para dentro do corpo se mantém presente, sentados em uma grama verde e

olhando o céu distante, perdidos. Diretores e professores não estão por pertos,

tampouco zeladores ou supervisores. Sabem perfeitamente que algo está errado,

mas preferem não tocar no assunto. Manter o nível alto da escola é algo

fundamental para eles.

Uma bolinha de papel.

Justamente quando eu

pensava que nada mais pudesse acontecer, uma bolinha de papel cai em cima de

nossa mesa. David não pensa duas vezes e logo trata de abri-la. Viro-me para

trás e percebo, no meio de toda multidão de alunos, que apenas Mike está

olhando para mim. Seus olhos estão semicerrados e um pequeno sorriso curvado se

faz em seus lábios.

— Fracassados — murmura

David, lendo o que está escrito.

Helena ergue o braço imediatamente

e mostra o dedo do meio, deixando uma careta como resposta.

— Babacas — resmunga ela.

Por mais bobo que possa

ser essa atitude, de jogar bolinhas de papel na mesa de outras pessoas e

escrever palavras desnecessárias, eu me sinto ofendido de alguma forma. Não

quero ser lembrado como um garoto fracassado. Sei que pode parecer idiotice da

minha parte, mas eu pensava que no ensino médio tudo seria diferente, que eu

deixaria todo passado para trás e escrevia novas páginas em minha vida. Era o

que eu acreditava. Era o que minha mãe me dizia. E eu fracassei.

— Vão se danar, otários!

— Helena não suporta manter a boca fechada por mais tempo e então grita, ainda

com a mão levantada.

Algumas pessoas parecem

não entender, apertando os olhos e se virando para nossa direção.

Abaixo minha cabeça e

conto até três.

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Rayssa Oliveira

Rayssa Oliveira

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2023-03-30

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