É incrível como nosso cérebro consegue nos
enganar. Para ser sincero, é isso que eu ouço todos os dias. Querem me
convencer que não tem ninguém me olhando. Que não tem ninguém julgando tudo o
que eu faço, cada passo, cada respiração, cada movimento inesperado. Já me
chamaram até mesmo de egocêntrico, por acreditar que o mundo gira em volta do
meu ser. Mas não é o caso.
Eu me odeio. Eu odeio ter
que ser desse modo, com vergonha, com medo, com pessimismo em minha volta, como
se paredes estreitas pudessem me prensar em questão de segundos. Eu sei que
eles estão me observando agora. Um garoto está caminhando apressadamente pelo
corredor de uma escola, mantendo cabeça baixa, ombros curvados, e querem que eu
acredite que é normal? Que não tem dedos em minha direção? Que não falam de mim
pelas costas?
Desculpe, mas eu sei o
que acontece. E não são coisas boas.
Helena e David acompanham
meus passos, ainda que necessitem de velocidade.
— Ser mordido por um
tubarão ou levar um coice de um burro? — pergunta Helena com o máximo de
empolgação possível; ou que consegue transmitir. Durante dois anos de amizade,
eu escutei todo tipo de pergunta que alguém poderia imaginar. Criar dúvidas em
mentes humanas era especialidade da menina de cabelos coloridos e maquiagem
escura nos olhos.
— E quem irá escolher ser
mordido por um tubarão? — questiona David, ainda seguindo meus passos. — Você
está na água, com medo, fora de seu hábitat natural e indefeso. Uma mordida
certamente viraria uma comida.
— O coice poderia acertar
sua cara de pateta e te deixar ainda mais idiota do que já é. Pensa nisso. —
Por mais séria que Helena consiga parecer, seu senso de humor se mantém sempre
afiado. — E você, Caio. Qual sua opção?
Não respondo de imediato,
continuando com meus passos largos e ombros curvados. Desvencilho de alguns
alunos que atrapalham meu caminho e alcanço, em poucos minutos, meu armário.
— A mordida será na perna
ou no braço? — pergunto, digitando minha senha no cadeado.
— Caio. — Helena chama
meu nome. Parece decepcionada. — É apenas uma pergunta. Não irá acontecer de
verdade.
— Mas preciso saber qual
será o grau da mordida e onde acontecerá — respondo. — O coice, por exemplo,
vai atingir minha barriga ou meu rosto?
David bufa atrás de mim,
sabendo do risco que eu não estou tomando. Escuto Helena se aproximar.
— É apenas uma pergunta,
Caio — sussurra em meu ouvido. — Ser mordido por um tubarão ou levar um coice
de um burro, em? — Seus dentes rangem.
Sinto um calafrio
percorrer meu corpo. Minha mente não trabalha sob pressão, e ela sabe disso.
Mas parece não se importar. E, conhecendo bem Helena, ela vai fazer de tudo
para tirar essa resposta de mim.
Viro-me para encará-la,
notando suas sobrancelhas curvadas e mandíbula rígida.
— Levar um coice de um
burro, é o que eu certamente preferiria — respondo, temendo que um soco acerte
minha briga. David sabe muito bem da força que essa menina possui.
Helena exibe um largo
sorriso, deixando, em questão de segundos, toda raiva para trás.
— Obrigada — faz um aceno
com a cabeça, mudando drasticamente o tom de voz, ficando assustadoramente
calma. — Viu? Você não se machucou de verdade, bobão.
Bem atrás de Helena, caminhando
com arrogância no olhar e braços ridiculamente abertos, observo Mike. Outros
três amigos seguem seu rastro sujo e fedido. Abaixo minha cabeça imediatamente,
encarando meu tênis escuro. Não quero ser pego olhando em seus olhos.
— Sai da frente, coisa
preta — escuto Mike ofender David, que está no meio do corredor. Ele é
empurrado para trás e abre espaço para que os quatro babacas possam passar.
Helena gira o corpo em um
rápido movimento ao escutar tais ofensas.
— O que você disse,
Milk-shake? — Sinto toda raiva de Helena explodir em questão se segundos. Ninguém
responde sua pergunta. — Coisa preta, é
sério?
Um silêncio perturbador
se estende pelo corredor.
Mike é um garoto
extremamente ameaçador para sua idade, e Helena não se importa nenhum pouco com
isso. O garoto possui ombros largos, olhos pequenos e apertados, barriga
arredondada e cabelos encaracolados, deixando despenteado na grande maioria das
vezes. Um fino bigode, como se quisesse mostrar para todo mundo o quanto está
crescido, preenche a parte superior da boca. Suas roupas estão sempre amassadas
e um odor irritante exala de si. O chamamos — quando não pode nos escutar, obviamente
— de batata fedida. Helena prefere o termo “Milk-shake”, o que pode soar
engraçado quando se está com raiva.
Alguns olhares seguem em nossa
direção.
— Por acaso já se olhou
no espelho hoje, porco imundo? Ou estava ocupado demais tendo que escovar esses
dentes com merda? — Helena costuma não medir palavras com alguém. Por muito
tempo ficou conhecida como “a garota língua afiada”.
Não gosto do silêncio que
me cerca. Todo clima de tensão, esperando qualquer movimento capaz de tirar
suspiros; olhares penetrantes, respiração densa, cadernos amassados contra o
corpo e murmúrios distantes. Evito olhar nos olhos de Mike ou de qualquer outra
pessoa ao meu redor. Meu coração está prestes a explodir dentro do peito.
— Vamos, Helena. Não
compensa — diz David, em um tom extremamente baixo.
Com bastante custo ergo minha
cabeça e vejo tristeza em seu olhar. Racismo é mais do que grave, principalmente
quando risadas ecoam em sua direção e ninguém parece se importar. Se ao menos
eu tivesse coragem o suficiente...
— Me solta, David! —
rebate ela, mostrando toda ira acumulada em seu corpo. — Veja o que ele disse!
Te chamou de coisa preta. Não podemos deixar isso barato!
— Helena.
— Me solta! — grita. —
Ele vai pagar por isso.
— Helena — chama mais uma
vez.
— O que foi?
— O Caio...
Não gosto que se
preocupem comigo. Tudo bem, eu estou com respiração ofegante e contando até
três repetidas vezes. Mas sou apenas um garoto com medo de olhares; posso
suportar pressão de vez em quando.
Um...
Dois...
Três...
Helena me encara por
algum tempo antes de voltar à atenção para Mike. Porém, nada diz. Sinto meu
peito subir e descer em um ritmo acelerado. Não posso fechar meus olhos agora.
Pessoas estão me olhando. Não quero que pensem que sou um garoto esquisito.
Posso cuidar disso muito bem sozinho.
Apenas
ansiedade, não é nada. Respire fundo.
Um...
Dois...
Três...
— Está tudo bem com você?
— Helena coloca uma mecha do cabelo atrás da orelha, encontrando meus olhos
amedrontados.
David está com uma das
mãos sobre meu ombro. Não o havia sentindo antes.
— Forrest Gump — escuto Mike murmurar meu apelido, seguido por um
risinho irônico. — Terá sorte se alguma menina olhar para você um dia,
aberração.
Seguro firme no braço de
Helena, impedindo que se ela vire para ele mais uma vez.
— Não compensa, garota língua
afiada — um fraco sorriso se estende em meus lábios.
***
Quando mais novo, antes que eu pudesse
perceber o quão assustador é ter pessoas me olhando profundamente, eu não
costumava me sentar na primeira fileira. Gostava de ficar no meio da sala,
dividido entre garotos do fundo e estudiosos da frente. Escutava o que cada
aluno, de cada mesa, dizia. Futebol, cinema, festas e estudos depois da aula.
Não era como se eu fosse o centro das atenções, mas o intermediário de
conversas gerais.
Agora, porém, tudo se
perdeu. Logo no meu primeiro dia de aula, onde alunos se preocupam em conhecer
novos estudantes, formando grupos e interesses em comum, eu permaneço na
primeira fila, da primeira cadeira. Sei perfeitamente que eles estão me olhando
agora, enxergando minhas costas suadas, minhas orelhas de abano e meu cabelo
ridiculamente desajeitado.
O importante é que não
conseguirão enxergar meus olhos grandes, meu nariz de batata e meus lábios
finos; o que é um certo alívio, se parar para pensar.
Um professor, alto e de
barba branca, caminha com passos apressados até a mesa no canto, silenciando
imediatamente toda conversa que antes existia. Suas pernas são longas, tais
como seus braços. Seu cabelo é jogado para trás, grisalhos. Ajeita os óculos na
ponta do nariz e suspira, como se fosse um gesto rotineiro, ano após ano.
Seus olhos passam por mim
e, por um rápido instante, sinto um frio em minha barriga.
— Muito bem — começa ele
com uma voz rouca e sem muita pressa. Suspira profundamente antes de continuar.
— Teremos muito trabalho pela frente a partir de hoje. Então peguem seus livros
e vamos começar.
Não é aconselhável ter
medo de pessoas. Não é o mesmo que ter medo de baratas ou de cachorros
raivosos. Pessoas mudam o mundo. São responsáveis por criar e destruir, amar e
odiar. Precisamos delas, assim como elas precisam de nós. Ou pelo menos é assim
que eu acredito.
Quando perguntei para
Lara — no ensino fundamental — se ela gostaria de namorar comigo, eu tinha uma
pequena chama de esperança acesa dentro de mim. Eu a via diariamente, e sentia
uma estranha sensação percorrendo meu corpo. Por que minha boca está seca? O
que aconteceu com meu coração? Por que minhas pernas parecem derreter a
qualquer momento? Não sabia o que estava sentindo, mas doía, e não poderia
perder a chance de demostrar meus sentimentos para a garota de cabelos loiros e
olhos azuis. É assim que casais surgem em filmes.
Ainda consigo me recordar
do “não” que saiu da boca de Lara quando perguntei se gostaria de tomar sorvete
comigo, seguido por: “eca, que nojo, menino”. Eu não estava preparado para
tamanho desprezo, tampouco para os risos e piadas que chegaram até mim. Em
poucos dias, talvez em poucas horas, não havia mais nada aceso dentro do meu
peito. Uma simples frase destruiu tudo o que eu sabia sobre o sentido da vida.
Tive medo, tristeza e fraqueza.
Em questão de meses eu
não continha mais forças para encarar uma pessoa. Toda minha confiança e
autoestima simplesmente sumiram, como uma frágil poeira na estrada. Não saía de
casa e evitava olhar nos olhos de qualquer ser humano que surgia em meu caminho,
temendo que pudessem me odiar ou rir de mim. Minha mãe se tornou única pessoa
capaz de entrar em meu quarto e conversar comigo, mesmo com minha vergonha e
timidez. Videogame se tornou uma solução para os meus problemas. Não precisava
sair de casa para socializar com alguém nem encontrar uma pessoa na rua para
conversar. É muito mais fácil dialogar com alguém quando não se olha em seus
olhos.
***
O refeitório se mantém
agitado. Alunos conversam de maneira exagerada e gargalham como se cada minuto
passado fosse importante. Helena e David estão perto de mim, em uma mesa no
fundo do refeitório, isolada de toda multidão. Arroz, purê de batata, carne
cozida e maça. Confesso que sempre me interessei pela comida da escola, mas
ainda não pude experimentar o que está em minha frente, com vergonha de ser
observado e cometer um erro.
— Está dentro de um
prédio em chamas. Bombeiros demorarão minutos para chegar ao local. Sem água
para apagar o fogo e tossindo pela fumaça. Quinto andar, eu diria. Apenas uma máscara
de gás em cima de uma mesa. Uma senhora de oitenta anos está tossindo e precisando
urgentemente dessa máscara. E então? Salvar uma senhora ou você mesmo? — Helena
está brincando com o garfo em sua mão, levando-o de um lado para o outro. Parece
sem fome.
David suspira.
Eu o encaro por um
momento. Nossos olhares se cruzam e seus cenhos se franzem.
— E então, rapazes? — Ela
ergue a cabeça, impaciente.
— Bem... — começa David,
respirando fundo, temendo um passo em falso. — Uma senhora de oitenta anos já
viveu o suficiente, não acha?
— Eu não sei. Me diz você
— responde ela com um arquear de sobrancelha.— Mas está sendo egoísta.
— Não estou sendo
egoísta. Só estou dizendo que os jovens são o futuro do país. Não concorda,
Caio?
— Eu? Bem... Talvez? Não
sei. No momento do fogo acho que teremos mais empatia, não acha? É uma senhora
de oitenta anos, eu ficaria com dó.
— E não teria dó da sua
própria vida? — questiona ele.
Nossos olhares se cruzam
mais uma vez e então deixo um sorriso surgir, sem responder. Um vento fresco
atinge meu corpo, vindo de uma grande janela à direita. O pátio, do lado de
fora da escola, está praticamente vazio. Poucos alunos que insistem em sugar
fumaça para dentro do corpo se mantém presente, sentados em uma grama verde e
olhando o céu distante, perdidos. Diretores e professores não estão por pertos,
tampouco zeladores ou supervisores. Sabem perfeitamente que algo está errado,
mas preferem não tocar no assunto. Manter o nível alto da escola é algo
fundamental para eles.
Uma bolinha de papel.
Justamente quando eu
pensava que nada mais pudesse acontecer, uma bolinha de papel cai em cima de
nossa mesa. David não pensa duas vezes e logo trata de abri-la. Viro-me para
trás e percebo, no meio de toda multidão de alunos, que apenas Mike está
olhando para mim. Seus olhos estão semicerrados e um pequeno sorriso curvado se
faz em seus lábios.
— Fracassados — murmura
David, lendo o que está escrito.
Helena ergue o braço imediatamente
e mostra o dedo do meio, deixando uma careta como resposta.
— Babacas — resmunga ela.
Por mais bobo que possa
ser essa atitude, de jogar bolinhas de papel na mesa de outras pessoas e
escrever palavras desnecessárias, eu me sinto ofendido de alguma forma. Não
quero ser lembrado como um garoto fracassado. Sei que pode parecer idiotice da
minha parte, mas eu pensava que no ensino médio tudo seria diferente, que eu
deixaria todo passado para trás e escrevia novas páginas em minha vida. Era o
que eu acreditava. Era o que minha mãe me dizia. E eu fracassei.
— Vão se danar, otários!
— Helena não suporta manter a boca fechada por mais tempo e então grita, ainda
com a mão levantada.
Algumas pessoas parecem
não entender, apertando os olhos e se virando para nossa direção.
Abaixo minha cabeça e
conto até três.
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Atualizado até capítulo 31
Comments
Rayssa Oliveira
enfim
2023-03-30
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