Capítulo 18

Escuto Bianca discutir com o namorado logo

quando meus olhos se abrem pela manhã. Ainda estou com sono. Muito sono. Sinto

o calor de mais um dia acertar meu rosto, surgindo pela janela do quarto.

Espreguiço todo o corpo e me sento na cama, coçando meus olhos ardentes. Tudo o

que eu quero é poder colocar uma fita na boca dessa menina e deixá-la calada.

Minha cabeça zune. Calço meus chinelos e me levanto, sentindo uma leve tontura

atingir meu corpo, que faz meu corpo balançar, para frente e para trás. Saio do

quarto em questão de segundos, como um zumbi que acabou de levantar do túmulo.

Não consigo enxergar tudo

com maestria, mas conheço essa casa o suficiente para não esbarrar em móveis ou

me chocar contra alguma parede.

Além da voz aguda de

Bianca e das reclamações do seu namorado, alegando que não precisa de permissão

para sair com amigos, outra voz surge em meu ouvido. Uma voz tão familiar que

me faz querer girar sobre os calcanhares e subir todos os degraus da escada.

— Filho! — minha mãe me

chama, interrompendo meu plano de voltar para o quarto.

Merda.

Lentamente, como um refém

temendo a própria vida, desço os poucos degraus que me restam. Um frio invade

minha barriga, assim que vejo um pavoroso sorriso surgir em minha frente.

— Primo, oi! — diz Tony, com

os braços cruzados, apresentando seus músculos que tanto dedicou na vida.

Dou um ligeiro sorriso,

cumprimentando-o com um simples aceno de cabeça.

— Diga oi para o seu

primo, filho. Ele estava tão empolgado em te ver — minha mãe me deixa ainda

mais constrangido.

— Oi, primo — digo, contra

minha própria vontade, engolindo em seco.

— Um passarinho me contou

que encontrou alguém para o casamento, é verdade? — seu sorriso se estende

ainda mais.

Olho para minha mãe,

ainda com sono e ainda sem enxergar perfeitamente. Tudo não passa de um borrão

sem forma e sem cor. Meus olhos estão apertados, e Tony certamente está

enxergando esse defeito em mim.

Mas

o que isso importa?

— Ainda estou trabalhando

nisso — digo, abaixando minha cabeça, envergonhado. Novamente esfrego meus

olhos.

— E é bonita?

Sinto um calor invadir

meu peito. Conversas em pleno sábado de manhã, com pessoas que fazem perguntas

e parecem entusiasmadas com tudo, nunca foi o meu forte. Com Tony não é

diferente. Sempre perguntou mais do que deveria, intrometendo-se na vida de

muitas pessoas.

— Bem — não consigo encará-lo

nos olhos, então mantenho minha cabeça baixa, mirando meus pés —, pode ser que

sim.

Sinto meu braço sendo atingido

por um soco. Confesso que pensamentos importunos e desrespeitosos toma conta da

minha mente. Porém, nada digo.

— Aí, primão! Esse é o

espírito! — outra vez me acerta com seu punho fechado. — E não se preocupe,

colocamos pessoas ótimas para sentar com você. Sabe que o primo Lucas conseguiu

bolsa de cem por cento de estudos, não é? Agora vai poder se formar em educação

física e seguir essa nossa linhagem de atletas e pessoas que nasceram para o

esporte.

— Não é ótimo, filho? —

pergunta minha mãe, como se realmente parecesse incrível essa ideia.

— Sem dúvida — respondo

em um sussurro. — Não poderia ser melhor. — Esfrego meu braço, ainda sentindo

dor.

— Foi exatamente o que

pensei! Parece que gênios se completam, não é? — sinto outra pontada de dor, dessa

vez acertando meu outro braço.

 Pela primeira vez, sem me importar com o braço

dolorido, deixo um sorriso surgir.

Gênios

se completam?

Não era bem o que eu

esperava de Tony.

— Seu primo não é

engraçado, filho? — pergunta minha mãe, rindo.

— Não faz ideia, mãe.

— Nada de elogios,

senhora Diana. Tudo o que eu faço é para o bem das pessoas que eu amo. Não é,

Caio? Vamos nos divertir muito semana que vem. — diz Tony, de bom humor,

sorrindo. — Joyce quer muito conhecer você, primo. Ela também estava morrendo

de vontade de saber quem é a misteriosa mulher que toma conta desse menino

incrível. É uma pena que não poderá comparecer, senhora Diana. Seria uma honra

tê-la em nosso casamento.

— Eu realmente sinto

muito por não poder ir — diz minha mãe. — Rebeca certamente gostaria muito de

ir nesse casamento. Mas é seu aniversário, não é mesmo? O que não fazemos pelos

nossos filhos... — Seu tom de voz muda, afinando drasticamente.

— É... — Tony se mostra

compreensível, concordando com a cabeça. — Por isso é uma mulher incrível,

senhora Diana. E não se preocupe, tomarei conta do seu filho com todo cuidado

possível.

— Não o deixe comer

camarão, Tony. Não queremos vê-lo no hospital, não é mesmo? — minha mãe sorri.

— Não se preocupe com

isso. Joyce odeia camarão — Tony exibe seus dentes brancos.

Sinto-me como uma criança

em um parque de diversões, sem poder andar sozinho e sendo impedido de visitar

brinquedos perigosos. Ainda que camarão possa me matar um dia, não é motivo

para minha mãe alertar esse perigo a alguém. Afinal, eu sei o que é camarão e

jamais comeria um.

Completamente deslocado e

ainda sem enxergar tudo com perfeição, enquanto minha mãe e meu primo conversam

sobre gostos e repulsas de Joyce — noiva de Tony —, eu saio de perto deles dois

e caminho até o banheiro, mantendo passos suaves. Fecho a porta e sigo para a

pia, abrindo a torneira. Jogo água gelada em meu rosto, o que tanto queria

quando saí do quarto. Ainda posso escutar meu primo perguntar o que aconteceu

comigo, enquanto minha mãe apenas responde que esse é o meu jeito e que ele não

deveria se preocupar com isso.

Encaro meus olhos no

reflexo do espelho. Olheiras profundas e lábios ressecados. De fato eu pareço

como um zumbi de filmes de baixa renda. O que tanto admirava em mim quando

novo, minha disposição e agilidade, simplesmente não existe mais. Mais parece

que o antigo eu fora substituído por um senhor de idade sofrendo de crises

frequentes, temendo envelhecer ainda mais e descansar profundamente.

Saio do banheiro, minutos

depois, assim que deixo de escutar a voz de Tony. Ainda estou atordoado.

— Sujando a porcelana

logo de manhã, primo? Então esse é o horário que gosta de sentar no trono, né? —

pergunta meu primo, gargalhando e caminhando para fora da casa.

— Eu não estava... — mas

ele já está longe o bastante para não ouvir minha resposta. — Sujando a

porcelana, seu idiota — sussurro.

Espero minha mãe fechar a

porta da sala para que eu possa me aproximar, já com Tony do outro lado,

distante dessa casa. Ela está sorridente, usando uma leve camisola rosa,

mostrando, de maneira delicada, seu sutiã branco. Queria não ter percebido esse

pequeno detalhe.

— Seu primo não é ótimo,

filho? — pergunta ela, passando rente ao meu corpo e seguindo em direção à

cozinha.

Eu sigo seus passos.

— Nossa, ele é mesmo

incrível — reviro meus olhos.

— Percebi ironia nessa

frase — ela diz. — O que foi? Vocês sempre foram tão amigos. Saiam juntos, se

divertiam, e ele até deixava você brincar na bicicleta dele.

— Mãe — chamo, suspirando

—, isso era apenas o lado “bom” que você via. Tony não era tão... Amigável

assim.

— O que está dizendo?

Cheiro forte de café flutua

no ar. Puxo uma cadeira e me sento, enquanto observo minha mãe caminhar até o

fogão.

— Tony sempre foi

egoísta, metido, idiota e um completo de um narcisista, para falar a verdade.

— Não fale assim do seu

primo, filho. Ele sempre te tratou tão bem — vira o corpo em minha direção, com

os olhos apertados.

— Isso porque você não estava

por perto quando ele dizia que seria eleito o mais bonito da escola. Ou quando

me deixou andar de bicicleta apenas para mostrar que era uma boa pessoa, e

depois estava lá, beijando uma garota por ser um “cara legal”. Sabe como o

chamavam na escola? Metidinho de gola

alta.

— Seu primo não era

assim... — abaixa o tom de voz. — Eu me lembro dele te ajudando no dever de

casa, principalmente educação física.

— Mãe — coço meus olhos,

que ainda estão ardentes de sono. — Quando foi que ele veio em casa sem precisar

de um favor ou algo que não envolvesse interesse próprio? Além do mais, quem

precisa de ajuda em educação física? Ele estava interessado na Bianca, por isso

ele vinha me ajudar. O que era estranho, ele já tinha dezoito anos e ela

catorze...

— O que você está

dizendo? — minha mãe parece não acreditar em mim, deixando um sorriso surgir em

seus lábios. — Ele veio aqui em casa hoje, não foi?

— Sim, isso porque ele

queria saber se eu iria mesmo para o casamento e quem iria comigo. Mãe, vai por

mim, eu o conheço o suficiente para saber que é um interesseiro e que você não

deveria colocar a mão no fogo por ele.

— É? E por quem que eu

deveria colocar minha mão no fogo?

— Por mim, é claro. Seu

filho. Que aliás, precisa de um favor seu.

— Para quem estava

reclamando agora pouco, dizendo que “certo primo” é interesseiro, até que você

mudou de ideia rápido, não foi?

— Nem tudo são flores,

Diana — respondo, sorrindo. — Preciso que me leve na casa do David hoje. Sabe

como é, primeiro sábado do mês, filmes, provavelmente algum que Helena achará

incrível pela sinopse e na verdade será de um estúdio desconhecido filmado pela

câmera do vizinho.

Minha mãe pega o bule,

com o café já preparado, e o leva até a garrafa térmica, tomando cuidado para

não derrubar.

— Não se preocupe, filho.

Sua mãe foi feita para favores, pelo visto. E o que eu já disse sobre me chamar

de Diana, em?

— Não tenho culpa se você

tem o nome da minha super-heroína favorita.

— Você não, mas minha mãe

sim.

— Até que poderia ser

pior. Tipo... — penso por um segundo. — Halle Berry, em Mulher-Gato.

Novamente gira o corpo em

minha direção, com os olhos apertados.

— Juro que um dia vou

entender o que está dizendo — diz, sorrindo.

— Nesse caso, eu espero muito

que não. — Retribuo o sorriso.

***

David não mora longe o bastante para que

eu necessite de um carro. Porém, levando em conta o calor infernal que faz na

cidade e, o quanto eu poderia chegar suado com toda essa caminhada, minha mãe

não fez um péssimo trabalho em me levar na casa dele.

— Não esquece, filho.

Nada de confusão e, se acontecer alguma coisa, ligue para o meu número

imediatamente.

Abaixo minha cabeça por

um rápido instante, constrangido. Minha mãe fala alto demais, fazendo com o que

outras pessoas, passando pela rua, possam se virar em minha direção e descobrir

quem é o garoto que precisa ser cuidado pela mãe.

— Entendeu? — aumenta o

tom de voz, obrigando-me a encará-la nos olhos.

— Sim, mãe. Eu entendi

tudo — digo, baixinho.

— Então se cuide, filho. Mamãe

te ama! Beijos!

Coço uma das minhas

sobrancelhas, em uma tentativa de esconder meu rosto perante pessoas que passam

pela rua nesse momento — uma quantidade surpreendente; principalmente por ser

uma rua tranquila e de pouco movimento. Gostaria de me tornar um avestruz e

poder enfiar minha cabeça com toda força no chão.

Algumas pessoas continuam

olhando em minha direção; posso senti-las. Mas não é momento para enxergá-las e

perceber o quão patético e dependente eu posso ser. Hoje terei um dia animado,

com dois dos meus melhores amigos por perto, não posso estragar tudo.

Bato duas vezes na porta,

respirando fundo e fechando meus olhos, imaginando que ninguém está atrás de

mim, enxergando meus defeitos. Não demora nem um segundo para que David possa

abri-la.

— Olá! — ele grita em meu

ouvido, chamando ainda mais atenção.

— Meu Deus! Como

conseguiu ser tão rápido? — pergunto, assustado.

— Não pude deixar de

escutar você e sua mamãe conversando. Tão fofos — diz ele. — Ela deixou seu

leitinho?

— Muito engraçadinho —

faço uma careta. — E não, não deixou meu leitinho.

David solta uma

gargalhada, afastando o corpo para que eu possa entrar em sua casa.

— Preparado para uma

aventura cinematográfica? — pergunta ele, fechando a porta atrás de mim.

— Contando que Helena não

tome conta dessa vez, eu estou sim.

— Cala boca, idiota! — Nem

preciso caminhar até o sofá para escutar Helena me xingar. — Meus filmes são

excelentes.

— São mesmo, excelentes

para dormir — me aproximo, sentando-me ao seu lado. Sinto um doce perfume vindo

de si. Seu rosto está levemente maquiado, com tons claros nas pálpebras e nas

bochechas; o que me pega de surpresa.

Helena

não usa maquiagens. Não nesse tom.

— Você que prefere

romances dramáticos ou cenas agitadas. Precisa de mais calma, ter uma visão

melhor do que está sendo feito. Assim que eu vejo filmes — ela diz.

Eu a encaro por um momento,

mesmo não sendo do meu hábito.

— O filme era mesmo ruim,

Helena. Fala sério!

Seus olhos também se

voltam em minha direção.

— Bom... — suspira

levemente. — Pode ser que sim. Mas eu gostei do final. Bastante surpreendente,

na verdade.

— Protagonista morrendo

com um tiro no braço? Realmente, esse final foi mesmo surpreendente.

Helena não tem costume de

sorrir, tampouco de concordar com o que digo, mas percebo uma leve curvatura em

seus lábios, indicando que achou graça em meu comentário.

Casa de David não é tão

grande assim, podendo facilmente escutar seus irmãos conversando e gargalhando

em outro cômodo da casa. Mobílias antigas e paredes já gastas, revelando boa

parte dos tijolos usados. Cheiro de desinfetante se torna comum quando o

visitamos em todos os primeiros sábados do mês. Tudo por culpa de Cecília, mãe

de David, que insiste em manter tudo organizado e aromatizado, não querendo se

mostrar uma família desleixada e desajeitada.

— Vocês estão bem,

crianças? Não precisam de nada? — pergunta Cecília, usando um avental escuro no

corpo. Seu sorriso é largo o bastante para revelar todos os dentes da boca.

— Está tudo bem, mãe.

Fizemos pipocas e agora será hora do show — responde David.

— Se precisarem de algo,

podem me chamar. Tudo bem?

Confesso que seu carisma

e generosidade sempre me conquistaram, embora David tenha alegações sobre seu

comportamento difícil e explosivo, podendo gritar e causar fortes dores em seus

ouvidos.

— Então, garoto e garota

— diz David assim que sua mãe caminha para fora da sala, respirando fundo. Dá

uma leve piscadela na direção de Helena. — Estão preparados para um filme de

tirar o fôlego?

— Espera... Você escolheu

o filme? — pergunto.

— Algum problema? — ele

cruza os braços, erguendo uma das sobrancelhas.

— Problema? Não. Problema

nenhum. Contando que não seja um filme sobre coelhos assassinos ou documentário

envolvendo vidas de baleias, como no mês retrasado, onde ficamos três horas e

meia assistindo homens em navios investigando vidas de mamíferos marinhos. Por

mim tudo bem.

— Aquele documentário foi

um saco — suspira Helena, relembrando do tedioso passado.

— Aquele documentário foi

incrível, seus merdinhas. Vão dizer que baleias não são interessantes? — David

parece mesmo incomodado com nossos comentários.

— David — eu o encaro

antes de continuar —, não, não são interessantes. São peixes gigantes que

nadam. O que tem de mais nisso?

— O que tem de mais

nisso? — sua boca se abre. — Primeiro: baleias não são peixes, para sua

informação. Elas respiram pelos pulmões, ou seja, precisam de oxigênio. Por

isso sobem para a superfície. Segundo: se baleias não são interessantes, o que

mais nesse mundo são?

— Baleias são apenas... Baleias

— digo, franzindo o cenho. — Elas nadam, comem e só. O que tem de mais nisso?

— O que tem de mais

nisso? Está me perguntando isso de novo, Caio? — se David pudesse explodir meu

cérebro com a força da mente, certamente eu estaria morto agora.

— Vamos parar com isso? —

Helena aumenta o tom de voz. — Baleias são um saco, David! Você gosta? Ótimo!

Que se dane. Agora dá pra colocar esse filme logo? Pelo amor de Deus.

David e eu nos entreolhamos,

presenciando o clima tenso que ficou no ar. Helena não parece de bom humor.

Embora esteja maquiada, como se parecesse uma líder de torcida com pretensões

de conquistar o melhor jogador do time, sua personalidade não condiz com sua aparência.

Afinal de contas, Helena sempre será Helena. Uma garota fria, sem papas na

língua e extremamente séria; mas com um coração enorme para defender seus amigos,

quando necessário.

— Tudo bem, senhorita —

diz David, deixando um ligeiro sorriso tomar conta do seu rosto. Tira um pen drive do bolso e caminha até a TV

atrás de si, conectando-o. — Estão prontos para presenciar o melhor filme do

século?

— Mas já assistimos O

Poderão Chefão, não? — pergunto.

— Não é esse filme que

estou falando, idiota — vira o rosto em minha direção, bufando. — Contemplem...

O Segredo de Brokeback Mountain.

O

Segredo...

— David — chamo —, esse é

um filme... Meio... Você sabe, né? — sorrio, sem graça.

— Sim — ele se coloca de

pé, ajeitando a camisa em seu corpo. — Um filme que fala de homens se

descobrindo sexualmente.

— E quer assistir esse

filme? — ainda continuo sorrindo. — Por quê?

David se cala. Viro-me

para encarar Helena, que também está em silêncio.

— Estou perdendo algo? —

pergunto.

Mantendo passos curtos e,

sem responder minha pergunta, David volta para o seu lugar, sentando-se ao lado

de Helena. Seu semblante não está mais o mesmo, apresentando seriedade em seu

olhar. Continuo encarando-os, tanto David quanto Helena. Nenhum dos meus amigos

faz questão de se virar em minha direção ou responder o que perguntei.

O filme se inicia, e eu

me sinto como uma formiga em um ninho de vespas, perdido.

— Então é isso? David coloca

um filme, aparentemente um filme que envolve homossexualidade, e ficamos em

silêncio, como se fosse errado alguém me responder o que está acontecendo?

— Não é nada, Caio — diz

David, ainda de forma séria. — É só um filme. Podemos assistir?

O

que está acontecendo aqui? Que mudança de humor foi esse?

— David — Helena chama

seu nome, passando algum tempo em silêncio.

— Não. — Ele responde.

— Então eu vou — ela diz.

— Não.

— Precisa. É seu amigo.

— Helena. Não.

Apenas observo eles

conversarem, de um assunto que não faço ideia do que seja.

— É para eu adivinhar o

que estão falando? — pergunto, sorrindo.

Mas ninguém me responde.

— Tudo bem então — digo,

ajeitando meu corpo no sofá e voltando minha atenção para o filme que já

começou. Cruzo meus braços no alto do peito e suspiro.

Se não fosse pelo filme, que

não consigo me concentrar, certamente o silêncio reinaria nessa casa. Nem mesmo

conversas e gargalhadas dos irmãos de David eu consigo escutar. Helena respira

alto o suficiente para que eu possa escutá-la, como um touro bufando. David está

com o maxilar rígido e os olhos apertados. O clima parece muito mais tenso do

que de minutos atrás, quando Helena se extrapolou.

Parece

que estou mesmo perdendo algo.

Algum tempo se passa, e

nada parece mudar. Dez, quinze e vinte minutos de filme, e ninguém diz uma só

palavra. Cecília surge pela segunda vez, perguntando se está tudo bem. David

concorda com um aceno de cabeça e ela vai embora. Escuto Igor, irmão de David,

gritar com sua irmã, Maria, mas depois tudo se silencia, mais uma vez.

Solto um prolongado

suspiro, em uma tentativa de demostrar meu incômodo.

— David não gosta de

garotas — diz Helena, tão rápido que nem sei se entendi perfeitamente.

— Oi? — pergunto, virando-me

para encará-la.

— Helena! — David

arregala os olhos em sua direção. Vejo sua boca se abrir, mas nada diz.

— Isso mesmo, Caio. David

não gosta de garotas. Por isso o filme. Por isso nunca se relacionou com

nenhuma garota até hoje. Por isso nunca se apaixonou por nenhuma garota até

hoje.

Assim como David, minha

boca se abre, mas claro, ela se fecha.

— Então... — sinto minha

garganta seca.

— Caio, não precisa — diz

David, interrompendo-me, após eu ficar calado por algum instante. — Eu sei. É

difícil até mesmo pra mim. Não era bem assim que eu queria... Revelar isso.

— Mas você é meu amigo,

cara — digo. — Eu...

Não

sei o que dizer.

David gosta de garotos, e

eu não sei o que dizer. Como pude não notar isso?

Encaro meu amigo. Ele

ainda se mostra sério, provavelmente constrangido, esperando que eu possa tomar

uma atitude adequada. Mas eu não sei o que posso fazer. Minha mente não

trabalha da forma que deveria.

David

gosta de garotos, penso mais uma vez, tentando entender o

que isso significa. Quer dizer, é claro que eu sei o que é. Então por que não

consigo dizer algo? Por que meu cérebro está travado?

Não

pense demais, idiota. Faça.

Helena e David já não me

encaram mais, estão virados para frente, decepcionados com minha falta de

atitude. Por que estou parado?

Coloco-me de pé, ainda

digerindo o que Helena me contou. Não preciso pensar mais. Caminho até David,

sentindo um frio em minha barriga. Estendo minha mão para que ele possa

apertá-la. Não sou bom em lidar com seres humanos. Nunca soube agir de maneira

correta. Mas acho que eu deveria fazer algo.

David encara meus olhos,

e eu vejo confusão em seu olhar. Aperta minha mão, ainda sem entender, e eu o puxo

pelo braço, fazendo-o ficar de pé, assim como eu. Abro meus braços, como uma

imitação do Cristo Redentor, e espero que ele possa entender. E ele sorri.

Mesmo me sentindo um

idiota, sem nunca ter pensado na hipótese de David gostar de garotos, eu aperto

seu corpo contra o meu.

Mas isso pouco importa.

Ele ainda é meu amigo, e sempre será.

— Obrigado — David diz.

Posso escutar seu choro, baixinho.

Não o respondo. Não

consigo dizer nada. Mas ele sabe o que eu sinto.

Estou feliz por ele.

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