Escuto Bianca discutir com o namorado logo
quando meus olhos se abrem pela manhã. Ainda estou com sono. Muito sono. Sinto
o calor de mais um dia acertar meu rosto, surgindo pela janela do quarto.
Espreguiço todo o corpo e me sento na cama, coçando meus olhos ardentes. Tudo o
que eu quero é poder colocar uma fita na boca dessa menina e deixá-la calada.
Minha cabeça zune. Calço meus chinelos e me levanto, sentindo uma leve tontura
atingir meu corpo, que faz meu corpo balançar, para frente e para trás. Saio do
quarto em questão de segundos, como um zumbi que acabou de levantar do túmulo.
Não consigo enxergar tudo
com maestria, mas conheço essa casa o suficiente para não esbarrar em móveis ou
me chocar contra alguma parede.
Além da voz aguda de
Bianca e das reclamações do seu namorado, alegando que não precisa de permissão
para sair com amigos, outra voz surge em meu ouvido. Uma voz tão familiar que
me faz querer girar sobre os calcanhares e subir todos os degraus da escada.
— Filho! — minha mãe me
chama, interrompendo meu plano de voltar para o quarto.
Merda.
Lentamente, como um refém
temendo a própria vida, desço os poucos degraus que me restam. Um frio invade
minha barriga, assim que vejo um pavoroso sorriso surgir em minha frente.
— Primo, oi! — diz Tony, com
os braços cruzados, apresentando seus músculos que tanto dedicou na vida.
Dou um ligeiro sorriso,
cumprimentando-o com um simples aceno de cabeça.
— Diga oi para o seu
primo, filho. Ele estava tão empolgado em te ver — minha mãe me deixa ainda
mais constrangido.
— Oi, primo — digo, contra
minha própria vontade, engolindo em seco.
— Um passarinho me contou
que encontrou alguém para o casamento, é verdade? — seu sorriso se estende
ainda mais.
Olho para minha mãe,
ainda com sono e ainda sem enxergar perfeitamente. Tudo não passa de um borrão
sem forma e sem cor. Meus olhos estão apertados, e Tony certamente está
enxergando esse defeito em mim.
Mas
o que isso importa?
— Ainda estou trabalhando
nisso — digo, abaixando minha cabeça, envergonhado. Novamente esfrego meus
olhos.
— E é bonita?
Sinto um calor invadir
meu peito. Conversas em pleno sábado de manhã, com pessoas que fazem perguntas
e parecem entusiasmadas com tudo, nunca foi o meu forte. Com Tony não é
diferente. Sempre perguntou mais do que deveria, intrometendo-se na vida de
muitas pessoas.
— Bem — não consigo encará-lo
nos olhos, então mantenho minha cabeça baixa, mirando meus pés —, pode ser que
sim.
Sinto meu braço sendo atingido
por um soco. Confesso que pensamentos importunos e desrespeitosos toma conta da
minha mente. Porém, nada digo.
— Aí, primão! Esse é o
espírito! — outra vez me acerta com seu punho fechado. — E não se preocupe,
colocamos pessoas ótimas para sentar com você. Sabe que o primo Lucas conseguiu
bolsa de cem por cento de estudos, não é? Agora vai poder se formar em educação
física e seguir essa nossa linhagem de atletas e pessoas que nasceram para o
esporte.
— Não é ótimo, filho? —
pergunta minha mãe, como se realmente parecesse incrível essa ideia.
— Sem dúvida — respondo
em um sussurro. — Não poderia ser melhor. — Esfrego meu braço, ainda sentindo
dor.
— Foi exatamente o que
pensei! Parece que gênios se completam, não é? — sinto outra pontada de dor, dessa
vez acertando meu outro braço.
Pela primeira vez, sem me importar com o braço
dolorido, deixo um sorriso surgir.
Gênios
se completam?
Não era bem o que eu
esperava de Tony.
— Seu primo não é
engraçado, filho? — pergunta minha mãe, rindo.
— Não faz ideia, mãe.
— Nada de elogios,
senhora Diana. Tudo o que eu faço é para o bem das pessoas que eu amo. Não é,
Caio? Vamos nos divertir muito semana que vem. — diz Tony, de bom humor,
sorrindo. — Joyce quer muito conhecer você, primo. Ela também estava morrendo
de vontade de saber quem é a misteriosa mulher que toma conta desse menino
incrível. É uma pena que não poderá comparecer, senhora Diana. Seria uma honra
tê-la em nosso casamento.
— Eu realmente sinto
muito por não poder ir — diz minha mãe. — Rebeca certamente gostaria muito de
ir nesse casamento. Mas é seu aniversário, não é mesmo? O que não fazemos pelos
nossos filhos... — Seu tom de voz muda, afinando drasticamente.
— É... — Tony se mostra
compreensível, concordando com a cabeça. — Por isso é uma mulher incrível,
senhora Diana. E não se preocupe, tomarei conta do seu filho com todo cuidado
possível.
— Não o deixe comer
camarão, Tony. Não queremos vê-lo no hospital, não é mesmo? — minha mãe sorri.
— Não se preocupe com
isso. Joyce odeia camarão — Tony exibe seus dentes brancos.
Sinto-me como uma criança
em um parque de diversões, sem poder andar sozinho e sendo impedido de visitar
brinquedos perigosos. Ainda que camarão possa me matar um dia, não é motivo
para minha mãe alertar esse perigo a alguém. Afinal, eu sei o que é camarão e
jamais comeria um.
Completamente deslocado e
ainda sem enxergar tudo com perfeição, enquanto minha mãe e meu primo conversam
sobre gostos e repulsas de Joyce — noiva de Tony —, eu saio de perto deles dois
e caminho até o banheiro, mantendo passos suaves. Fecho a porta e sigo para a
pia, abrindo a torneira. Jogo água gelada em meu rosto, o que tanto queria
quando saí do quarto. Ainda posso escutar meu primo perguntar o que aconteceu
comigo, enquanto minha mãe apenas responde que esse é o meu jeito e que ele não
deveria se preocupar com isso.
Encaro meus olhos no
reflexo do espelho. Olheiras profundas e lábios ressecados. De fato eu pareço
como um zumbi de filmes de baixa renda. O que tanto admirava em mim quando
novo, minha disposição e agilidade, simplesmente não existe mais. Mais parece
que o antigo eu fora substituído por um senhor de idade sofrendo de crises
frequentes, temendo envelhecer ainda mais e descansar profundamente.
Saio do banheiro, minutos
depois, assim que deixo de escutar a voz de Tony. Ainda estou atordoado.
— Sujando a porcelana
logo de manhã, primo? Então esse é o horário que gosta de sentar no trono, né? —
pergunta meu primo, gargalhando e caminhando para fora da casa.
— Eu não estava... — mas
ele já está longe o bastante para não ouvir minha resposta. — Sujando a
porcelana, seu idiota — sussurro.
Espero minha mãe fechar a
porta da sala para que eu possa me aproximar, já com Tony do outro lado,
distante dessa casa. Ela está sorridente, usando uma leve camisola rosa,
mostrando, de maneira delicada, seu sutiã branco. Queria não ter percebido esse
pequeno detalhe.
— Seu primo não é ótimo,
filho? — pergunta ela, passando rente ao meu corpo e seguindo em direção à
cozinha.
Eu sigo seus passos.
— Nossa, ele é mesmo
incrível — reviro meus olhos.
— Percebi ironia nessa
frase — ela diz. — O que foi? Vocês sempre foram tão amigos. Saiam juntos, se
divertiam, e ele até deixava você brincar na bicicleta dele.
— Mãe — chamo, suspirando
—, isso era apenas o lado “bom” que você via. Tony não era tão... Amigável
assim.
— O que está dizendo?
Cheiro forte de café flutua
no ar. Puxo uma cadeira e me sento, enquanto observo minha mãe caminhar até o
fogão.
— Tony sempre foi
egoísta, metido, idiota e um completo de um narcisista, para falar a verdade.
— Não fale assim do seu
primo, filho. Ele sempre te tratou tão bem — vira o corpo em minha direção, com
os olhos apertados.
— Isso porque você não estava
por perto quando ele dizia que seria eleito o mais bonito da escola. Ou quando
me deixou andar de bicicleta apenas para mostrar que era uma boa pessoa, e
depois estava lá, beijando uma garota por ser um “cara legal”. Sabe como o
chamavam na escola? Metidinho de gola
alta.
— Seu primo não era
assim... — abaixa o tom de voz. — Eu me lembro dele te ajudando no dever de
casa, principalmente educação física.
— Mãe — coço meus olhos,
que ainda estão ardentes de sono. — Quando foi que ele veio em casa sem precisar
de um favor ou algo que não envolvesse interesse próprio? Além do mais, quem
precisa de ajuda em educação física? Ele estava interessado na Bianca, por isso
ele vinha me ajudar. O que era estranho, ele já tinha dezoito anos e ela
catorze...
— O que você está
dizendo? — minha mãe parece não acreditar em mim, deixando um sorriso surgir em
seus lábios. — Ele veio aqui em casa hoje, não foi?
— Sim, isso porque ele
queria saber se eu iria mesmo para o casamento e quem iria comigo. Mãe, vai por
mim, eu o conheço o suficiente para saber que é um interesseiro e que você não
deveria colocar a mão no fogo por ele.
— É? E por quem que eu
deveria colocar minha mão no fogo?
— Por mim, é claro. Seu
filho. Que aliás, precisa de um favor seu.
— Para quem estava
reclamando agora pouco, dizendo que “certo primo” é interesseiro, até que você
mudou de ideia rápido, não foi?
— Nem tudo são flores,
Diana — respondo, sorrindo. — Preciso que me leve na casa do David hoje. Sabe
como é, primeiro sábado do mês, filmes, provavelmente algum que Helena achará
incrível pela sinopse e na verdade será de um estúdio desconhecido filmado pela
câmera do vizinho.
Minha mãe pega o bule,
com o café já preparado, e o leva até a garrafa térmica, tomando cuidado para
não derrubar.
— Não se preocupe, filho.
Sua mãe foi feita para favores, pelo visto. E o que eu já disse sobre me chamar
de Diana, em?
— Não tenho culpa se você
tem o nome da minha super-heroína favorita.
— Você não, mas minha mãe
sim.
— Até que poderia ser
pior. Tipo... — penso por um segundo. — Halle Berry, em Mulher-Gato.
Novamente gira o corpo em
minha direção, com os olhos apertados.
— Juro que um dia vou
entender o que está dizendo — diz, sorrindo.
— Nesse caso, eu espero muito
que não. — Retribuo o sorriso.
***
David não mora longe o bastante para que
eu necessite de um carro. Porém, levando em conta o calor infernal que faz na
cidade e, o quanto eu poderia chegar suado com toda essa caminhada, minha mãe
não fez um péssimo trabalho em me levar na casa dele.
— Não esquece, filho.
Nada de confusão e, se acontecer alguma coisa, ligue para o meu número
imediatamente.
Abaixo minha cabeça por
um rápido instante, constrangido. Minha mãe fala alto demais, fazendo com o que
outras pessoas, passando pela rua, possam se virar em minha direção e descobrir
quem é o garoto que precisa ser cuidado pela mãe.
— Entendeu? — aumenta o
tom de voz, obrigando-me a encará-la nos olhos.
— Sim, mãe. Eu entendi
tudo — digo, baixinho.
— Então se cuide, filho. Mamãe
te ama! Beijos!
Coço uma das minhas
sobrancelhas, em uma tentativa de esconder meu rosto perante pessoas que passam
pela rua nesse momento — uma quantidade surpreendente; principalmente por ser
uma rua tranquila e de pouco movimento. Gostaria de me tornar um avestruz e
poder enfiar minha cabeça com toda força no chão.
Algumas pessoas continuam
olhando em minha direção; posso senti-las. Mas não é momento para enxergá-las e
perceber o quão patético e dependente eu posso ser. Hoje terei um dia animado,
com dois dos meus melhores amigos por perto, não posso estragar tudo.
Bato duas vezes na porta,
respirando fundo e fechando meus olhos, imaginando que ninguém está atrás de
mim, enxergando meus defeitos. Não demora nem um segundo para que David possa
abri-la.
— Olá! — ele grita em meu
ouvido, chamando ainda mais atenção.
— Meu Deus! Como
conseguiu ser tão rápido? — pergunto, assustado.
— Não pude deixar de
escutar você e sua mamãe conversando. Tão fofos — diz ele. — Ela deixou seu
leitinho?
— Muito engraçadinho —
faço uma careta. — E não, não deixou meu leitinho.
David solta uma
gargalhada, afastando o corpo para que eu possa entrar em sua casa.
— Preparado para uma
aventura cinematográfica? — pergunta ele, fechando a porta atrás de mim.
— Contando que Helena não
tome conta dessa vez, eu estou sim.
— Cala boca, idiota! — Nem
preciso caminhar até o sofá para escutar Helena me xingar. — Meus filmes são
excelentes.
— São mesmo, excelentes
para dormir — me aproximo, sentando-me ao seu lado. Sinto um doce perfume vindo
de si. Seu rosto está levemente maquiado, com tons claros nas pálpebras e nas
bochechas; o que me pega de surpresa.
Helena
não usa maquiagens. Não nesse tom.
— Você que prefere
romances dramáticos ou cenas agitadas. Precisa de mais calma, ter uma visão
melhor do que está sendo feito. Assim que eu vejo filmes — ela diz.
Eu a encaro por um momento,
mesmo não sendo do meu hábito.
— O filme era mesmo ruim,
Helena. Fala sério!
Seus olhos também se
voltam em minha direção.
— Bom... — suspira
levemente. — Pode ser que sim. Mas eu gostei do final. Bastante surpreendente,
na verdade.
— Protagonista morrendo
com um tiro no braço? Realmente, esse final foi mesmo surpreendente.
Helena não tem costume de
sorrir, tampouco de concordar com o que digo, mas percebo uma leve curvatura em
seus lábios, indicando que achou graça em meu comentário.
Casa de David não é tão
grande assim, podendo facilmente escutar seus irmãos conversando e gargalhando
em outro cômodo da casa. Mobílias antigas e paredes já gastas, revelando boa
parte dos tijolos usados. Cheiro de desinfetante se torna comum quando o
visitamos em todos os primeiros sábados do mês. Tudo por culpa de Cecília, mãe
de David, que insiste em manter tudo organizado e aromatizado, não querendo se
mostrar uma família desleixada e desajeitada.
— Vocês estão bem,
crianças? Não precisam de nada? — pergunta Cecília, usando um avental escuro no
corpo. Seu sorriso é largo o bastante para revelar todos os dentes da boca.
— Está tudo bem, mãe.
Fizemos pipocas e agora será hora do show — responde David.
— Se precisarem de algo,
podem me chamar. Tudo bem?
Confesso que seu carisma
e generosidade sempre me conquistaram, embora David tenha alegações sobre seu
comportamento difícil e explosivo, podendo gritar e causar fortes dores em seus
ouvidos.
— Então, garoto e garota
— diz David assim que sua mãe caminha para fora da sala, respirando fundo. Dá
uma leve piscadela na direção de Helena. — Estão preparados para um filme de
tirar o fôlego?
— Espera... Você escolheu
o filme? — pergunto.
— Algum problema? — ele
cruza os braços, erguendo uma das sobrancelhas.
— Problema? Não. Problema
nenhum. Contando que não seja um filme sobre coelhos assassinos ou documentário
envolvendo vidas de baleias, como no mês retrasado, onde ficamos três horas e
meia assistindo homens em navios investigando vidas de mamíferos marinhos. Por
mim tudo bem.
— Aquele documentário foi
um saco — suspira Helena, relembrando do tedioso passado.
— Aquele documentário foi
incrível, seus merdinhas. Vão dizer que baleias não são interessantes? — David
parece mesmo incomodado com nossos comentários.
— David — eu o encaro
antes de continuar —, não, não são interessantes. São peixes gigantes que
nadam. O que tem de mais nisso?
— O que tem de mais
nisso? — sua boca se abre. — Primeiro: baleias não são peixes, para sua
informação. Elas respiram pelos pulmões, ou seja, precisam de oxigênio. Por
isso sobem para a superfície. Segundo: se baleias não são interessantes, o que
mais nesse mundo são?
— Baleias são apenas... Baleias
— digo, franzindo o cenho. — Elas nadam, comem e só. O que tem de mais nisso?
— O que tem de mais
nisso? Está me perguntando isso de novo, Caio? — se David pudesse explodir meu
cérebro com a força da mente, certamente eu estaria morto agora.
— Vamos parar com isso? —
Helena aumenta o tom de voz. — Baleias são um saco, David! Você gosta? Ótimo!
Que se dane. Agora dá pra colocar esse filme logo? Pelo amor de Deus.
David e eu nos entreolhamos,
presenciando o clima tenso que ficou no ar. Helena não parece de bom humor.
Embora esteja maquiada, como se parecesse uma líder de torcida com pretensões
de conquistar o melhor jogador do time, sua personalidade não condiz com sua aparência.
Afinal de contas, Helena sempre será Helena. Uma garota fria, sem papas na
língua e extremamente séria; mas com um coração enorme para defender seus amigos,
quando necessário.
— Tudo bem, senhorita —
diz David, deixando um ligeiro sorriso tomar conta do seu rosto. Tira um pen drive do bolso e caminha até a TV
atrás de si, conectando-o. — Estão prontos para presenciar o melhor filme do
século?
— Mas já assistimos O
Poderão Chefão, não? — pergunto.
— Não é esse filme que
estou falando, idiota — vira o rosto em minha direção, bufando. — Contemplem...
O Segredo de Brokeback Mountain.
O
Segredo...
— David — chamo —, esse é
um filme... Meio... Você sabe, né? — sorrio, sem graça.
— Sim — ele se coloca de
pé, ajeitando a camisa em seu corpo. — Um filme que fala de homens se
descobrindo sexualmente.
— E quer assistir esse
filme? — ainda continuo sorrindo. — Por quê?
David se cala. Viro-me
para encarar Helena, que também está em silêncio.
— Estou perdendo algo? —
pergunto.
Mantendo passos curtos e,
sem responder minha pergunta, David volta para o seu lugar, sentando-se ao lado
de Helena. Seu semblante não está mais o mesmo, apresentando seriedade em seu
olhar. Continuo encarando-os, tanto David quanto Helena. Nenhum dos meus amigos
faz questão de se virar em minha direção ou responder o que perguntei.
O filme se inicia, e eu
me sinto como uma formiga em um ninho de vespas, perdido.
— Então é isso? David coloca
um filme, aparentemente um filme que envolve homossexualidade, e ficamos em
silêncio, como se fosse errado alguém me responder o que está acontecendo?
— Não é nada, Caio — diz
David, ainda de forma séria. — É só um filme. Podemos assistir?
O
que está acontecendo aqui? Que mudança de humor foi esse?
— David — Helena chama
seu nome, passando algum tempo em silêncio.
— Não. — Ele responde.
— Então eu vou — ela diz.
— Não.
— Precisa. É seu amigo.
— Helena. Não.
Apenas observo eles
conversarem, de um assunto que não faço ideia do que seja.
— É para eu adivinhar o
que estão falando? — pergunto, sorrindo.
Mas ninguém me responde.
— Tudo bem então — digo,
ajeitando meu corpo no sofá e voltando minha atenção para o filme que já
começou. Cruzo meus braços no alto do peito e suspiro.
Se não fosse pelo filme, que
não consigo me concentrar, certamente o silêncio reinaria nessa casa. Nem mesmo
conversas e gargalhadas dos irmãos de David eu consigo escutar. Helena respira
alto o suficiente para que eu possa escutá-la, como um touro bufando. David está
com o maxilar rígido e os olhos apertados. O clima parece muito mais tenso do
que de minutos atrás, quando Helena se extrapolou.
Parece
que estou mesmo perdendo algo.
Algum tempo se passa, e
nada parece mudar. Dez, quinze e vinte minutos de filme, e ninguém diz uma só
palavra. Cecília surge pela segunda vez, perguntando se está tudo bem. David
concorda com um aceno de cabeça e ela vai embora. Escuto Igor, irmão de David,
gritar com sua irmã, Maria, mas depois tudo se silencia, mais uma vez.
Solto um prolongado
suspiro, em uma tentativa de demostrar meu incômodo.
— David não gosta de
garotas — diz Helena, tão rápido que nem sei se entendi perfeitamente.
— Oi? — pergunto, virando-me
para encará-la.
— Helena! — David
arregala os olhos em sua direção. Vejo sua boca se abrir, mas nada diz.
— Isso mesmo, Caio. David
não gosta de garotas. Por isso o filme. Por isso nunca se relacionou com
nenhuma garota até hoje. Por isso nunca se apaixonou por nenhuma garota até
hoje.
Assim como David, minha
boca se abre, mas claro, ela se fecha.
— Então... — sinto minha
garganta seca.
— Caio, não precisa — diz
David, interrompendo-me, após eu ficar calado por algum instante. — Eu sei. É
difícil até mesmo pra mim. Não era bem assim que eu queria... Revelar isso.
— Mas você é meu amigo,
cara — digo. — Eu...
Não
sei o que dizer.
David gosta de garotos, e
eu não sei o que dizer. Como pude não notar isso?
Encaro meu amigo. Ele
ainda se mostra sério, provavelmente constrangido, esperando que eu possa tomar
uma atitude adequada. Mas eu não sei o que posso fazer. Minha mente não
trabalha da forma que deveria.
David
gosta de garotos, penso mais uma vez, tentando entender o
que isso significa. Quer dizer, é claro que eu sei o que é. Então por que não
consigo dizer algo? Por que meu cérebro está travado?
Não
pense demais, idiota. Faça.
Helena e David já não me
encaram mais, estão virados para frente, decepcionados com minha falta de
atitude. Por que estou parado?
Coloco-me de pé, ainda
digerindo o que Helena me contou. Não preciso pensar mais. Caminho até David,
sentindo um frio em minha barriga. Estendo minha mão para que ele possa
apertá-la. Não sou bom em lidar com seres humanos. Nunca soube agir de maneira
correta. Mas acho que eu deveria fazer algo.
David encara meus olhos,
e eu vejo confusão em seu olhar. Aperta minha mão, ainda sem entender, e eu o puxo
pelo braço, fazendo-o ficar de pé, assim como eu. Abro meus braços, como uma
imitação do Cristo Redentor, e espero que ele possa entender. E ele sorri.
Mesmo me sentindo um
idiota, sem nunca ter pensado na hipótese de David gostar de garotos, eu aperto
seu corpo contra o meu.
Mas isso pouco importa.
Ele ainda é meu amigo, e sempre será.
— Obrigado — David diz.
Posso escutar seu choro, baixinho.
Não o respondo. Não
consigo dizer nada. Mas ele sabe o que eu sinto.
Estou feliz por ele.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 31
Comments